sábado, 29 de janeiro de 2022

O Pavelca

Era eu ainda um ganapo quando o Pavelca apareceu na aldeia. Era um puto loiro, de estranhos olhos azuis, que vivia em casa do padre. Passado algum tempo já ele arranhava a nossa língua, já tomava parte nas nossas brincadeiras.

Um dia desapareceu, terá ido para a América, se ainda hoje por lá anda. E eu demorei muitos anos até perceber tudo.

Em 1956 houve uma bronca na terra dele, que era a Hungria. Os tipos de Moscovo entraram por ali dentro e impuseram as suas leis. Milhares de húngaros deram à sola, ou mandaram os filhos para local seguro. E o Pavelca, apenas um exemplo, veio parar à aldeia.

Tanto barulho para nada.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Manias

Fiquei algo pasmado quando o vi aparecer à primeira consulta, confesso que não reconheci nele o tipo de paciente que se dispõe a pagar o meu tempo. Era um homem na casa dos quarenta, e tinha um ar frágil e consumido. Vestia uma bata de sarja azul, dessas de operário, e trazia semeadas no cabelo desgrenhado aparas de madeira. Quando me disse que era carpinteiro tive as minhas dúvidas. Porque a profissão deixou-me esta costela de detective, e vi-lhe as mãos demasiado finas para afagos de enxó e de garlopa. Rocei de vagar a palma no queixo, e mandei-o deitar-se na marquesa.

Não foi preciso desbravá-lo muito, logo se pôs a relatar uma viagem ao egipto, há uns vinte e tal anos. Fora uma teimosia da mulher, boa tecedeira e cardadora de lãs, mas de um alevantado vezo que sempre lhe trouxera inquietações, como quem trouxesse na barriga um rei qualquer. Um dia ela apareceu a dizer que tinham de partir sem demora, era preciso poupar a criança à perseguição dos inocentes, para cumprir a voz do profeta e salvaguardar-lhe o desígnio transcendente.

Alugaram um solípede caríssimo, mas a viagem foi cheia de percalços e acabou por durar uma eternidade. Volta não volta ela dizia que era preciso calçar ao asno os cascos ao contrário, assim estava escrito, para confundir os perseguidores. O pobre do animal é que já não estava capaz de tais subtilezas, fez o que pôde para adequar o passo às profecias, mas as constantes mudanças de solias complicavam-lhe a andadura. Voltaram a casa os quatro sãos e salvos, depois de atravessarem o deserto, sabe deus como.

De resto, ele sempre olhara para este filho com algum desconforto, desde que a aparadeira confirmara a virgindade da mãe, na altura do parto. Mas os problemas com ele estavam só a começar. Desde cedo se mostrou um superdotado, atraía multidões com enigmáticas parábolas abrangentes, e ultimamente começara a constar que tinha poderes. Transformava a água em vinho, e matara a fome à multidão com meia dúzia de pães e um par de peixes do lago.

Eu não sou apostólico nem romano, e já vi muitos abismos do mundo. Não costumo perder as estribeiras com os relatos dos pacientes, mas não assim com este. Fiz logo entrar a equipa da camisa-de-forças, e mandei-o internar imediatamente. Imagino o que não seria, ter que repetir tudo outra vez.