segunda-feira, 28 de março de 2022

Sobrevivência

Em 1970, na esquadra da Ota, tudo chegava da América, ressalvando os géneros do rancho que vinham das hortas de Alenquer. Os aviões eram da guerra da Coreia, e a literatura que neles vinha inclusa tinha eficácia há muito comprovada, ou nas escolas do Texas ou em bases do Arizona. Ninguém sabia porquê, mas tudo funcionava. Obtinha-se a máxima produtividade com investimento mínimo, um conceito alienígena que só muito mais tarde assentaria arraiais no linguajar comum.

Faltava-nos treinar a sobrevivência no mar. E se a questão parece de somenos num país de marinheiros, logo adquire as dimensões duma Ilíada caseira, quando calha apagar-se o fogareiro a trinta milhas da costa. E lá veio uma equipa americana.

Fingiu-se o mar na piscina que ali estava, ao fundo da ladeira, rodeada de eucaliptos. Um cabo de aço amarrado numa copa, um rappel vertiginoso, no fim dele uma abraço de madrasta, à nossa espera nas águas de Fevereiro. Livra-te do arnês do pára-quedas, nada até ao salva-vidas que além está, a dançar ao rés das ondas, iça-te lá para dentro sem demora, verifica a pistola de sinais, os fumos e tudo o resto, não te esqueças dos anzóis que te farão muita falta, se ainda não congelaste estás muito bem assim, já que estás na mão de Deus. 

Depois era só vencer os cem metros da ladeira, as botas a chocalhar e o fato a gotejar limos, e o vento enregelado que vinha do Montejunto, a morder-nos as orelhas, a alancear-nos o peito.

A princípio ainda corri, mas aos poucos foi-me afrouxando o passo. E à porta do alojamento caí na primeira escada. Foi aí que me encontrou aquele anjinho da guarda da senhora das limpezas, que vinha a pegar no turno. Deu o alerta, pôs-se a gritar por ajuda, e soltou-me das vestes encharcadas os ossos que estalavam sem controle. Levaram-me escada acima, meteram-me num chuveiro, barafustaram que viesse o médico. E ele veio, um velho que era dentista, e estava na escala de serviço. Só o meu corpo é que não obedecia, tomado dum frenesi.

Desistiram do chuveiro que fervia, enfiaram-me na cama, e abraçaram a mim, numa esperança de milagre, o corpo generoso da femme-de-ménage, que me ofereceu o peito avantajado. Era uma pietá pagã. Mas nem ela conteve o motim dos meus ossos, nem acalmou aquela rebelião. E ainda hoje estou para decifrar o raciocínio do médico, que fez sair a mulher e lhe tomou o lugar, implorando ao meu corpo que parasse de vibrar.

Lentamente amainou o desvario, e os meus ossos deixaram de estalar. Eu voltei a tomar posse de mim mesmo e dispensei os cuidados do médico. Tudo isto contaram-mo depois, o resto dos pormenores não os sei. Mas foram por muito tempo motivo de chacota. E talvez tema dum congresso médico, ou de algum brain-storming na América. A gente sabe lá!

domingo, 27 de março de 2022

Pois é!

 



quinta-feira, 17 de março de 2022

Cândida

Vive além naquela casa grande, ao fundo da vereda. Mas nunca gostou de morar fora do povo, aqui no descampado. E agora ainda por cima está sozinha, desde que enviuvou.

Antigamente a vida era diferente e até os dias lhe pareciam mais pequenos, sempre numa fona entre a cozinha e a horta, o asseio da casa e as lixaradas que o vento juntava no pátio. Mas agora tornaram-se tão grandes, e tão pesados às vezes, que malos consegue suportar. Só a poder de tristeza e solidão.

Metade da casa não perece sua, fechou a porta que dá para o corredor e nem lá entra. Só para se defender. As latas das sardinheiras que rodeiam o pátio ficam semanas sem uma atenção. O que lhes vale é serem resistentes e saberem esperar. Agora tem muita pena, mas foi assim que as sécias lhe morreram.

Esta lembrança das sécias deixa-as numa aflição, fá-la sentir-se culpada da morte do marido naquela manhã. Ele em frente do espelho, a deixar de ver no queixo a espuma da barba, a queixar-se das tonturas. Ela chegou a correr, e ele dobrado por cima do lavatório, ele a estender a mão à procura da parede, ele a pedir-lhe que lhe limpe um suor frio na testa. E ela a ficar ali atarantada, a telefonar ao cunhado em vez de ligar para as ambulâncias, o cunhado a tirar o carro da garagem, a levar o irmão ao consultório do médico, e o médico sem atentar no que fazia, sem perceber o que se estava a passar, sem o despachar logo para as urgências, o médico a escrever uma carta vagarosa para os colegas do hospital, a mandá-lo seguir no carro do cunhado em vez de reclamar os bombeiros, o tempo a passar e os dois a gastá-lo na sala de espera, sem que nenhuma enfermeira reparasse nele, sem que a menina da bata lhe adivinhasse o nome e viesse chamá-lo, senhor Manuel dos Santos.

Ah, se ela tivesse aprendido que havia ambulâncias quando se deixa de ver a espuma da barba em frente do espelho, se ela tivesse escrito num papel o telefone dos bombeiros, se ela ao menos soubesse conduzir, Talvez o Manel não tivesse morrido de abandono, cercado de tanta gente, ali à entrada das urgências do hospital da cidade!

O certo é que o marido lhe morreu, porque o tempo foi demais. Tão comprido o tempo dele, nesse dia, conforme o dela é hoje, que só a poder de tristeza e solidão lhe consegue resistir.

A casa, grande demais, ambos a ganharam na Alemanha, há trinta anos atrás. Deixaram o filho em casa do avô e ala moleiro. Bem lhe custou, como mãe. E mais lhe custaria se soubesse o que sabe hoje, porque a criação do filho não foi bem o que devia. Sobre o mais, era aquela língua tão arrevesada que nunca foi capaz de lhe meter o dente. Mas os peixes na fábrica também não falavam, os peixes que ela amanhou anos a fio, a metê-los nas latas e nos frascos sem dizer uma palavra. Para já não falar do frio, que lhe incendiava os dedos, na água onde nadavam barbatanas e tripas. De vez em quando havia quem metesse uma krankada, mas ela nunca o fez. E se não fossem as férias que vinham em Agosto não se tinha aguentado. A bem dizer, ainda hoje não sabe se valeu a pena tanto sacrifício.

Mas este ano já prometeu à Dulce que não vai ficar aqui sozinha. Quando as vindimas vierem, já prometeu à Dulce e à Armandina que há-de ir com elas para o Doiro. Há-de apanhar, madrugada, a camionete que as vai levar e trazer. Não será  lá grande coisa. Mas pode ser que as férias em Agosto aconteçam outra vez.

Apostila: As férias em Agosto não voltaram a acontecer. Nem o Doiro lhe valeu. Ontem o povo levou-a para o cemitério.

terça-feira, 1 de março de 2022

Cicatrizes

Em Maio de 68 os generais mandaram-me para a guerra de Angola. E eu lá fui. A viagem era num velho DC6, um quadrimotor decrépito que se arrastava costa abaixo, guiando-se pelos padrões que os velhos navegadores tinham semeado nas praias.

O primeiro percalço aconteceu antes da partida. Às onze da noite, no aeroporto, os passageiros foram informados de que a partida sofrera um atraso de 24 horas. Eu lá dormi numa pensão qualquer, e o dia seguinte passei-o na Feira do Livro, que na altura acontecia na avenida da Liberdade. Comprei lá um livro dum japonês e outro dum sul-americano, um Miguel Angel qualquer. Dois prémios Nobel, nem mais.

E lá partimos, num grande estrondo por cima do Areeiro, que começava a dormir. Alheado e imprevidente, não tratei do farnel. E o que me valeu foi o salame de chocolate que a Mitina levava. (A Mitina era a mulher dum camarada que também fora mobilizado).

Quando aterrámos nos Espargos, na ilha do Sal, a tripulação informou-nos de que havia uma avaria num dos motores. Era preciso que a TAP trouxesse de Lisboa uma peça sobresselente. Tínhamos que esperar.

Nós encontrámos refúgio na enfermaria, onde dormimos duas noites. Os restantes passageiros desenrascaram-se como puderam. Na parte de trás do avião acampava um grupo de marinheiros. Mais à frente havia mulheres com filhos, e cheiro a papas e fraldas. O sol inclemente encarregava-se do resto.

Mas a peça lá chegou e acabámos por partir. Na escala da Bissalanca não chegámos a sair. Apenas nos inundou a bafósia inclemente da Guiné. E finalmente aterrámos em Luanda.

Os generais hesitaram uma semana e finalmente decidiram. Mandaram-nos para o Negage, onde só havia aeronaves que nunca conhecêramos. Nunca tínhamos feito exercícios de tiro, e lá acabámos por aprender alguma coisa com os alferes milicianos que lá estavam. O tecto da base aérea era um firmamento com as estrelas do hemisfério sul. E no grande hotel do Negage, ocupado pela Força Aérea, havia uma messe com música de luxo. Foi lá que eu conheci o Jacques Loussier, e as suas versões ligeiras do Sebastian Bach.

Um dia, passado um ano, acabou-se-me o gás. Destruí um avião e acabei no hospital. Os médicos lá fizeram o que sabiam. E eu acabei evacuado para Lisboa, com as cicatrizes que ainda guardo.