segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

Pausa


Vilancico de Natal

Fiquei algo pasmado quando o vi aparecer à primeira consulta, confesso que não reconheci nele o tipo de paciente que se dispõe a pagar o meu tempo. Era um homem na casa dos quarenta, e tinha um ar frágil e consumido. Vestia uma bata de sarja azul, dessas de operário antigo, e trazia semeadas no cabelo desgrenhado aparas de madeira. Quando me disse que era carpinteiro tive as minhas dúvidas. Porque a profissão deixou-me esta costela de detective, e vi-lhe as mãos demasiado finas para afagos de enxó e de garlopa. Rocei devagar a palma no queixo, e mandei-o deitar-se na marquesa.
Não foi preciso desbravá-lo muito, logo se pôs a relatar uma viagem ao egipto , há uns vinte e tal anos. Fora uma teimosia da mulher, boa tecedeira e cardadora de lãs, mas de um alevantado vezo que sempre lhe causara inquietações, como quem trouxesse na barriga um rei qualquer. Um dia ela apareceu a dizer que tinham de partir sem demora, era preciso poupar a criança à perseguição dos inocentes, para cumprir a voz do profeta e salvaguardar-lhe o desígnio transcendente.
Alugaram um solípede caríssimo, mas a viagem foi cheia de percalços e acabou por durar uma eternidade. Volta não volta ela dizia que era preciso calçar ao asno os cascos ao contrário, assim estava escrito, para confundir os perseguidores. O pobre do animal é que já não estava capaz de tais subtilezas, fez o que pôde para adequar o passo às profecias, mas as constantes mudanças de solias complicavam-lhe a andadura. Voltaram a casa os quatro sãos e salvos, depois de atravessarem o deserto, sabe deus como.
De resto, ele sempre olhara para este filho com algum desconforto, desde que a aparadeira confirmara a virgindade da mãe, na altura do parto. Mas os problemas com ele estavam só a começar. Desde cedo se mostrou um superdotado, atraía multidões com enigmáticas parábolas abrangentes, e ultimamente começara a constar que tinha poderes. Transformava a água em vinho, e matara a fome à multidão com meia dúzia de pães e um par de peixes do lago.
Eu não sou apostólico nem romano, e já vi muitos abismos do mundo. Não costumo perder as estribeiras com os relatos dos pacientes, mas não assim com este. Fiz logo entrar a equipa da camisa-de-forças, e mandei-o internar imediatamente. Imagino o que não seria, ter que repetir tudo outra vez.

Portugalmente (10)

(...)
- De que vivem as pessoas aqui?
- A gente é muito pouca, as mais das casas estão vazias, durante o ano inteiro. Quem tiver umas terras deixa-as por cultivar, ou vai-as lavrando a tractor, para as ervas as não comerem. E tanto custaram elas a ganhar...
O viajante pensa que muitas vezes a vida é madastra duplamente. Como neste caso. Ontem sofriam as pessoas pela falta da terra, por quererem plantar uma couve e não terem um palmo de seu. Hoje sofrem porque a têm, sem lhe poderem valer. No geral são gente idosa, alguns trouxeram uma pensão de França, outros nem isso. Da pouca gente nova, há quem esteja a receber o rendimento mínimo, e alguns vão fazer lá fora as campanhas da fruta.
- Eu acho bem, o rendimento mínimo, mas devia haver outra fiscalização!
Quem assim pensa é a dona Blandina, mas nenhum dos presentes sabe distinguir os políticos que o criaram, daqueles que só o não levam à forca enquanto não puderem. Todos acham que foi na emigração que muita gente deu um salto na vida. E nenhum sabe explicar por que razão nunca houve, em toda a eternidade, mais que um caminho de cabras para ir ao mercado, e agora tem a gente uma estradinha que dá gosto, de fazer inveja a um lisboeta.
O viajante já se prepara para partir, quando entra um fulano atarefado a pedir uma cerveja em altos berros, parece que está zangado com o mundo. A locandeira bem lhe repreende os modos, mas ele continua a falar tão alto que é impossível ouvi-lo. Como se estivesse a conversar connosco, além do cimo da serra do Galgueiro.
O homem está muito apressado, porque tem que ir abrir uma cova no cemitério duma aldeia vizinha. Para um rapaz de mota, que vinha da casa das brasileiras, às quatro da manhã. E não viria muito mal cuidado, porque, a páginas tantas, os colegas olharam para trás e já o não viram, que já estava todo estrampalhado na valeta, ali à curva da quinta do Forcas, quando se vem de Trancoso. Ficam duas filhitas, uma mulher nova...
O viajante fica impressionado só com o pouco que lhe traduz a dona Blandina, por si não entendeu uma única palavra. O falador tem um ar estranho e visionário, faz lembrar uma figura qualquer, mas o viajante não sabe qual é. E só encontra a resposta quando sai do café, ao dar com um rocinante preso a uma carroça, com duas palhas em cima. O cavalicoque está tão magro que os ossos lhe vão furar a pele. Está tão abatido e cabisbaixo que parece não aguentar o peso da cabeça, e é de temer que se fine ali mesmo. Mas o dom quixote continua lá dentro a beber a sua cerveja, indiferente à sorte do companheiro, a contar as suas histórias inaudíveis, e a barafustar contra os moinhos de vento que há no mundo.
(...)

domingo, 21 de dezembro de 2008

Ester


Sempre viveu aqui, em Almofala, mesmo à face da rua principal. Quando lhe passam à porta os carros ligeiros, levanta-se a poeirada. E ela atapetou a soleira da entrada, porque não quer lixaradas lá dentro.
Este nome que lhe deram no baptismo veio duma bíblia muito antiga. É como ela. Vive em Almofala há tantos anos, que a terra de Riba-Côa ainda era leonesa, quando ela nasceu.
Tem uma filha que mora ali ao lado, numa casa alta e moderna, onde a poeira não entra. Mas Ester gosta mais da sua casa pequena, que sempre viveu nela, e não tem escadarias que subir. Senta-se no poial ao sol da tarde e faz o seu trabalho. Hoje é este naperon para o enxoval da neta, que mora na cidade e anda para se casar.
Ester é feliz todos os dias, só ela sabe como. E está à espera de que chegue o Natal, que então há-de vir o filho, da cidade, para a ceia da Consoada.

sábado, 20 de dezembro de 2008

Portugalmente (9)

2
O viajante deixa para trás os últimos chalés de Sebadelhe, que encontraram lugar ao longo da estrada. Têm uma geometria caprichosa, e o verde pujante das latadas e trepadeiras que os enfeitam faz sobressair o ocre dos azulejos e o vermelhão pesado de algumas paredes. O último de todos, já no meio duns pinhais, seria um bom exemplar do rococó pós-moderno, se uma tal coisa existisse. E teria dimensões humanas, não fora o anexo erguido nas traseiras, que pede meças ao convento de Mafra e lhe serve de armazém.
A estradinha, que é uma fita escura de papel macio, vai descendo entre arvoredos, agora pinhais que resistem, logo soitos de castanheiros muito velhos, a deslizarem há séculos para o vale. Avistam-se chãos ao abandono, pequenos campos de cereal maduro, e ao encontrar as primeiras hortas verdes logo depara o viajante com uma tabuleta a anunciar as Corças. Lá estão as primeiras vivendas instaladas na encosta, depois de passada a estátua duma Virgem, provavelmente de Fátima. O viajante lamenta a sua desfortuna, a dela. Para além dos trabalhos de cuidar de quem passa, deixou-a o paisagista de costas eternamente voltas para o vale, proibida de assistir, alguma vez, ao milagre do nascer do sol.
A estrada conduz directamente a um pequeno largo, que é o centro da aldeia, onde há dois cafés. Bem a propósito, pensa o viajante, pois de um café vem ele precisado. Mas a esta hora a dona Blandina tem a máquina desligada. Recebe o seu cliente com ar afável, e explica-lhe que a escassa clientela não paga, as mais das vezes, a corrente que a máquina consome. O viajante tem pena, faz-lhe falta o sabor do café, e mais ainda a cafeína, mas não quer sair assim de imediato, e ir bater à porta da concorrência em frente. Terá de contentar-se com a explicação pesarosa da estalajadeira, e com o gesto curioso dos três conversadores que estão ali sentados a uma mesa, e interromperam a conversa. O mais velho é tio da dona Blandina, o outro é irmão e a mulher é cunhada. Está, assim, tudo em família. Todos andaram por França, no seu tempo, a custo se encontrará na aldeia quem o não tenha feito, e a dona Blandina nunca mais se esqueceu da aflição com que passou a fronteira de Espanha, com os dois filhos pequenos, há trinta e tal anos. Este viajante pode testemunhá-la, que a viu bem viva nos gestos espontâneos da mulher. E o viajante, que já ouviu muitas histórias de emigrantes, e viu ainda mais aventuras no cinema, conclui que não ouviu todas as histórias, nem viu os filmes todos. Nunca tinha imaginado uma mulher a saltar, de noite, a fronteira, com dois filhos ao colo. Mesmo uma mulher assim desembaraçada, como seria então, e ainda hoje é, a dona Blandina.
O marido estava do outro lado, à espera dela, e levaram dois dias a chegar ao norte da França. Viveram lá dez anos, mas as humidades do clima davam-lhe muito mau viver. De forma que um dia decidiram voltar antes do tempo, já lá vão vinte anos, por via da saúde dela. Depois de construída a casa, abriram o café e uma mercearia ali ao lado. A dona Blandina encarrega-se do atendimento, está-lhe mais no feitio despachado. O homem trata das hortas, do renovo, há uns anos ainda teve uma vaca, mas deixou-se dela. Agora só tem uns bichos para os gastos de casa, um porco, umas galinhas, que outra coisa não paga a pena, nestes tempos que correm. E a dona Blandina já decidiu fechar a sua mercearia. Por falta de clientes, e pelas complicações da contabilidade, e das papeladas que agora são obrigatórias.
- De que vivem as pessoas aqui?
(...)

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Modernismo





E tu, meu rotundo e pançudo-sanguessugo
Meu desacreditado burguês apinocado
Da rua dos bacalhoeiros do meu ódio
Co'a Felicidade em casa a servir aos dias!




Personalidade ímpar da cultura portuguesa do séc. XX, figura determinante do primeiro modernismo, Almada Negreiros foi poeta, romancista, dramaturgo, pintor, desenhador, bailarino, provocador, palhaço, agitador, futurista e tudo!
Em 1969 foi pela primeira vez mostrado na televisão nacional.
Morreu em 1970.
Folgaram os Júlios Dantas, filhos da pátria ditosa.

Dava-nos lições de filosofia e de fraternidade...


Ao Teórico, ao Naco, ao Jacinto, ao Dente Partido, ao Cavalo de Ferro, a todos!

De manhã levantávamo-nos às oito e vinte e cinco para a aula das oito e meia, apertávamos os botões no caminho e galopávamos por escadarias e vielas íngremes contra o vento aguçado que nos fazia esperas às esquinas, e nos mordia a porcelana rósea das orelhas. O maço dos cadernos abraçado ao peito baloiçava ao compasso do coração que nos trotava desenfreado, e só amainava depois de entrar na sala, antes que se esgotasse a tolerância da campainha despótica. Lá dentro a norma era a do livro único, e o saber era um testamento de verdades definitivas, a gotejar dos lábios pausados do mestre sobre a turma desatenta, perdida a imaginar a vastidão dos desertos de Gobi ou a violência do mar nas escarpas da Camecháteca.
Em Maio, quando voltava o sol que trazia ameaças de exames próximos, cortávamos em três a lombada dos compêndios, e passávamos os dias, de cadernos enrugados na mão, na passada mística de monges em retiro, a recitar a litania das revisões na estrada da Dorna ou nas curvas do matadouro. Nessa época mudava todos os dias a geografia do mundo, havia sempre o nome dum país novo a acrescentar no compêndio, riscai na página cem a colónia do Alto Volta, que passou esta noite a chamar-se Burkina Faso e tem a sua capital em Uagadugu. Mudava todos os dias a geografia do mundo, que estava simplesmente dividido em bons e maus e era menos incompreensível do que é hoje. Gentes e países maus eram aqueles que nunca se contentavam com o que Deus mandava, e passavam a vida a reclamar mudanças e transformações. Do lado dos bons estavam os que aceitavam a autoridade estabelecida e a ordem ancestral, e Portugal era o melhor de todos porque em Portugal nunca mudava nada, o povo ia cumprir as promessas a Fátima, os ministros limitavam-se a ministrar, os polícias policiavam, os doutores doutoravam, os pais faziam filhos e suavam, as mães sofriam e calavam, os trabalhadores deviam trabalhar e aos estudantes competia decorar os compêndios sublinhados, e sobre todos mandava Salazar, para Angola, rapidamente e em força.
Mas nem todos os professores se limitavam a professorar. Alguns sabiam deveras do que falavam, por isso eram homens tranquilos que vinham à rua sem gravata e passeavam connosco ao travesso da Praça Velha, a mostrar-nos que era vão o gesto de ajoelharmos na relva do Dom Sancho, a protestar de braços abertos, no ar, ali no meio da praça, como quem saúda Mafoma. Ou o gesto de assistirmos, perfilados, aos domingos, à saída da missa da Misericórdia, em guarda de honra à passagem das matronas que ameaçavam romper os espartilhos, ou das meninas que disfarçavam sorrisos, embrulhados em véus de catequista. Pena é que poucos fossem, os tais professores, pois eram tolerantes com os guinchos da campainha despótica, e até às vezes saíam do deserto do compêndio para falar connosco doutras coisas mais urgentes da vida.
Nós não sabíamos nada do mundo, que era nessa época mais agreste e menos incompreensível do que viria a ser, limitávamo-nos a vê-lo à distância a que estava duma cidade ainda mais remota do que é hoje, e bem mais acanhada e submissa. Sentávamo-nos às tardes no café Monteneve, que era o café dos doutores, estava quente lá dentro e tinha painéis de azulejo com pastores e cães da serra, discutíamos os dramas do João Barois – se o universo, a natureza, o nosso próprio corpo não é senão um campo de batalha onde se confrontam miríades de células, como pode a sociedade dos homens ser diferente e estática, ou que vamos nós fazer deste absoluto dogmático dum deus imóvel e cristalizado? – líamos Walter Scott e o Cavaleiro Andante, jogávamos xadrez à procura duma nova saída de cavalo, construíamos textos à volta dum desenho improvisado numa folha e fumávamos cigarros Impala, que o Zé Corno vendia a três por cinco tostões. À noite, nos filmes para adultos, íamos ao cinema com cédulas de amigos mais velhos, e lançávamos gatos do alto das muralhas, para comprovar se caíam de pé. No Regalo do Boi cozinhavam-nos de borla uma galinha quando entregávamos duas, era tarefa a dobrar nos quintais do Torreão, mas sempre havia alguém que soubesse resolvê-la a preceito. Havia quem estudasse hipnotismo por correspondência, o manejo de forças misteriosas abria na verdade passagem para outros mundos, e o Zé Fernandes deu mesmo um passo gigantesco nos territórios do oculto, quando recriou, misturando mezinhas com elixires de droguista, a mágica alquimia que reduziria a mel o coração das colegas de Letras. Trazia ali a fórmula no bolso, dentro dum frasco de vidro, ao menos ficou explicado o fedor medieval que irradiava do rapaz.
Nós não sabíamos nada do mundo, apenas achávamos incómoda aquela espécie de silêncio de claustro, e suspeitávamos com vaga intuição de que havia em tudo uma outra história a desvendar. Tínhamos ouvido falar no saber e no livre pensamento, que transforma cada súbdito num cidadão, e acreditávamos piamente nisso, ainda não chegara o tempo das dúvidas e das desilusões. Trotávamos como gamos pela avenida das tílias na direcção do parque, o colégio das freiras era uma fortaleza com janelas que nunca se abriam, povoada por donzelas que viviam no maior recato e que nós considerávamos prisioneiras. As nossas emoções afectivas fervilhavam em circuito fechado, a turma só tinha rapazes e tudo o mais era um grande segredo. Discutíamos estas coisas caminhando nas veredas de saibro, na altura era toda a encosta uma grande mata de abetos, e um dia alguém encontrou num recanto os restos da donzelia de uma dessas prisioneiras, resumidos a uma esfarrapada peça íntima. Logo alguém arriscou identificar o fauno, e constou que era conhecida a pecadora. Porém, se a espinhosa verdade nos ia resistindo às investigações, muito mais duro, empedernido e encrespado se havia de mostrar o coração da velha madre directora, insensível como foi à carta que lhe enviámos a defender a causa da pobre madalena, caída neste lance por tão terreno momento de fraqueza. Nunca a retórica dos bíblicos exemplos foi tão inválida e vã, aquele de entre vós que não pecou lance a pedra primeira, nem o anjo da espada de fogo teria sido mais casmurro. Ainda não tinha passado uma semana, já a arguida estava expulsa da prisão.
Um dia a universitária marcou-nos encontro no café. Chegava de Coimbra, mais que todos, para nós, um lugar mítico. Era uma bela estampa de mulher, e calçava umas botas que geraram em nós persistentes fixações fetichistas. Foi ela que nos trouxe, repetidas vezes, notícias da contestação que agitava a universidade, e nos confirmou a suspeita de que o mundo era um lugar inquieto, e nos fez tomar consciência de que ninguém podia dar corda às pessoas e deixá-las a tocar pratos toda a vida, como bonecos de feira. Nós fazíamos uso ostensivo da sua companhia, passeávamos com ela pelas praças como quem exibe um troféu, a sua atenção, afinal, dava-nos estatuto e significado, pensávamos nós. Ela aceitou claramente a vassalagem, estamos para saber quem tirou deste arranjo o proveito maior.
Terá sido dos seus incitamentos que nasceu O Riacho, quem poderá agora deslindar este caso, ela dizia que era preciso romper os espartilhos e agir, o mundo estava aí à espera de que os homens o moldassem. E nós, que ainda hoje não sabemos ao certo se isto é verdadeiro, encontrámos no saudoso Francisco Pissarra a mão que nos assegurou ser possível. Ele tinha aqueles sapatos de sete léguas, abertos, ao andar, como um relógio às dez para as duas, dava-nos lições de filosofia e de fraternidade, e estendia-nos o garrafão da aguardente quando fazíamos serão lá em casa, noite fora. Dizia-nos que um dia haveríamos de rir do que então escrevíamos, mas que tudo estava certo, no momento. O Orlando Bernardo, que era tão grande de corpo como jeitoso de mãos, gravava a canivete no linóleo as ilustrações não figurativas. E nós voltámo-nos para a produção de textos que haviam de encher as oito páginas, desafiámos outros colegas, aceitámos a iniludível tutela da Mocidade Portuguesa que pagaria as custas previsíveis, levávamos os textos à velha tipografia de chumbo, catávamos as gralhas nos linguados de provas, alinhávamos a composição das páginas, recebíamos o jornal, organizávamos a distribuição, mobilizávamos amigos para a venda, e esgotámos a primeira edição com oitocentos exemplares a dez tostões. Desses ficou uma centena no seminário maior. O velho cónego reitor recebeu-nos a embaixada com empedernida prudência. Após vasto concílio, passou-nos para a mão uma nota de cem escudos e guardou os cem jornais, por certo uma ímpia vassoura acabou a varrê-los para o caixote, vá-se lá saber agora.
Nós ainda hoje não sabemos se o mundo é transformável, já todos vivemos uma coisa e o seu contrário. O que sabemos é que as pessoas o são, pelo que fazem. Foi isso que O Riacho nos mostrou.

Energia: o que diz Obama (2)

(...)
Ao mesmo tempo, Obama quer incentivar a produção interna de petróleo e gás, obrigando as petrolíferas a acelerar a prospecção em vastas zonas off-shore, construindo o gasoduto do Alaska e aumentando a produção de gás natural. Com isto prevê que os Estados Unidos, daqui a 10 anos, possam reduzir as suas importações de petróleo, num volume correspondente ao que importam actualmente da Venezuela e do Médio Oriente.
Finalmente, Obama quer ver os americanos a preocuparem-se com as questões ambientais e climatéricas, e propõe, como meta para 2050, a redução em 80% das emissões de gases com efeito de estufa, relativamente aos níveis de 1990.
Para cumprir este programa acaba de ser anunciada a escolha para novo secretário da energia de um prestigiado cientista, o Dr. Steven Chu, prémio Nobel da Física em 1997. Alguém que está consciente da situação, como se depreende das suas recentes afirmações: "O problema energético está no centro das nossas preocupações e é o mais importante que a ciência tem que resolver. A segurança nacional está relacionada com a segurança energética, com a competitividade americana a longo prazo, e com os perigos do aquecimento global. Enfrentamos muitos problemas, mas este é o que, se não for resolvido, mudará certamente o nosso modo de viver".
A preocupação dos presidentes americanos com esta questão não é nova. Em 1977, no rescaldo do primeiro choque petrolífero, o presidente James Carter proferiu um dramático discurso televisivo, no qual se comprometia, de forma solene, a reduzir o consumo energético e a congelar, aos níveis de então, as importações americanas de petróleo. Desde aí, todos os presidentes (com a mesma solenidade com que John Kennedy, em 1962, prometeu que a América iria colocar um homem na Lua antes do final da década) anunciam como meta para a década seguinte a independência energética dos EUA. Mas se o desafio tecnológico foi vencido, o mesmo não se tem passado com o desafio energético. Desde 1977, a dependência energética da América não parou de aumentar.
Dick Chenney disse um dia, a propósito da necessidade de alterar os hábitos das pessoas como via para a solução do problema energético, que o modo de vida americano não era negociável. Ora as propostas de Obama irão mudar, e muito, o modo de vida americano. O futuro mostrará quem vai ter razão. Porque são duas concepções de vida que se vão confrontar. É essa a primeira vitória que o novo presidente precisa de assegurar, e que não vai ser fácil. O mundo tem os olhos postos na América e em Barack Obama.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Tabuleta 2

[boneco pifado a Manuel Barroco]
Continuam a apresentar-se aqui alguns textos que já viram a luz noutros lugares. São ainda dois os motivos para o fazer. Primeiro para os tanger ao lugar que lhes incumbe. Segundo porque assim ficam à disposição de eventual leitor que os não conheça.

Energia: o que diz Obama (1)

Com vénia ao Dr. Luis Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO - Portugal

Barack Obama colocou a questão energética no topo das suas prioridades de governação e anuncia uma série de medidas para o sector, a curto, médio e longo prazo. A concretizarem-se, elas irão ter um impacto significativo no modo de vida dos americanos.
O programa energético de Obama é audacioso, pois prevê a redução da importância das energias fósseis, o aumento da eficiência energética nos transportes e nos edifícios, um forte investimento nas energias renováveis e nos biocombustíveis, e a redução das emissões de gases com efeito de estufa, conseguida em parte pelos investimentos no sequestro do anidrido carbónico. Tudo isto visando três grandes objectivos: fomentar o emprego, reduzir a dependência energética externa e combater o aquecimento global. E, para compensar a bolsa dos americanos dos gastos excessivos em gasolina e no aquecimento doméstico, Obama prometeu oferecer, no imediato, um cheque de 1000 dólares a cada família americana, retirados aos lucros das petrolíferas.
As metas anunciadas são bem definidas no programa "New energy for America" e incluem, por exemplo: colocar nas estradas um milhão de carros eléctricos até 2015; aumentar em 4% por ano a eficiência dos veículos automóveis; produzir, em 2025, 25% da electricidade a partir de fontes renováveis; substituir, até 2030, 20% do consumo actual de petróleo por biocombustíveis; climatizar um milhão de casas em cada ano; e, a partir de 2030, conseguir que todos os edifícios a construir sejam energeticamente neutros. O programa aponta ainda para a urgente necessidade de renovar a rede eléctrica, não rejeitando a opção nuclear, hoje responsável por 70% da produção de electricidade não fóssil. Isto com preocupações expressas com a segurança e a armazenagem dos resíduos perigosos.
(continua)

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Despedidas

O jornalista iraquiano despachou à sapatada o presidente da América.
Tenho para mim que muitos mais sapatos andariam pelo ar, se as asneiras do rapazola do Texas não tivessem deixado tanta malta descalça, por esse mundo fora.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

Portugalmente (8)

(...)
Ao fundo da encosta esbarra o viajante numa larga rua asfaltada, que é a estrada por onde veio. Tivesse ele escolhido outro caminho na bifurcação que deixou lá atrás, e logo aqui tinha vindo parar. Ganhava tempo, em troca de perder tudo o que viu. Aqui encontraram as casas novas dos emigrantes espaço adequado, há delas uma boa meia dúzia, com hortas e jardins em volta, e árvores e muitas flores, e volumes ainda maiores que os da padeira de Aljubarrota, que ficou lá no alto.
Se for verdade que fica sem mama quem não chora, bem fez o soviete de Sebadelhe, por tanto ter chorado. Que ali abaixo, num desaterro, encontra o viajante a escola da aldeia, há trinta anos reclamada. Hoje está fechada e solitária, porque deixou de ter crianças que a animem. Pena é, chegar só a fartura quando a fome já nos passou, é o que pensa o viajante, enquanto descobre que a aldeia não se acabou aqui. Há um remate além a cem metros, para lá do ribeiro que desce da serra, e já tem o pontão que lhe fazia falta.
É aqui, neste prolongamento da aldeia, que ainda estão as casas da Corredoura, onde viveu o último morgado de Sebadelhe. São uma fábrica rústica e severa, abandonada aos séculos, e ninguém lhes pedia no seu tempo confortos impróprios. O viajante entrou no vasto quinteiro escancarado, imaginou os carros de bois a chiar na ladeira, os homens e os bichos a tresandar a cansaço, e só tem pena de que não haja aqui ninguém que lhe deixe ver a cozinha. A avaliar pela chaminé, merecia uma visita. A cozinha é o lugar melhor para viajar no tempo, através duma casa destas, pensa o viajante, que começa a sentir-se desamparado, como quem arribou a uma ilha deserta. Vai à procura da capela do anjo S. Miguel, a ver se encontra nela os santos que não quiseram um dia mudar de casa. Mas o único rasto que encontra é uma janela na parede, à beira da estrada. Sobre a capela construiu-se esta casa, porque onde os santos gostaram de viver, melhor viverá gente. Se gente houver para nela viver, e não parece o caso.
Mas o certo é que mata caça quem porfia. O viajante ouviu finalmente uns falares de homem, dobrou uma esquina e entrou nesta ruela, que vai ter a um logradouro sem saída. Entre duas casas brancas, de cimento, logo lhe deram os olhos num majestoso alpendre de granito, de vasta escadaria e corrimão de pedra a que faltam pedaços, alguns a escorregar, mal seguros num ferro. No logradouro ao fundo andam três homens ocupados, na verdade com ar de poucos amigos, e um cão que está preso a um arame ladra desaustinado. O viajante hesita, enquanto observa a cantaria espessa e regular, as flores do sabugueiro a espreitar por dois janelões, e a carranca de pedra a sair da parede, uma cabeça de carneiro já gasta e puída. Ainda a hesitar sobe as escadas e encontra duas portas, aqui viveu o juiz de paz, ali foi em tempos a casa da câmara de Sebadelhe. Isto cogita o viajante, dando asas à imaginação, enquanto desce, emocionado, sem certezas nenhumas.
- Que tem que fazer aqui?
A pergunta vem de um dos homens, que avança para o viajante com olhar torvo, e um banco de metal agressivo nas mãos. O viajante, que detesta contendas, fica desamparado. Observa outra vez o empedrado da rua, levanta as mãos em sinal de rendição, dá mais uma mirada às casas do juiz de paz.
- Quer comprar?
- Que ideia! Ando apenas a ver estas vidas antigas, julguei que era pública a rua.
E já foi, mas já deixou de ser. O homem fez dela coisa sua, porque tudo o que nela está lhe pertence, menos as casas velhas.
- Você entra por aqui, sem dizer nada... sabe-se lá o que anda pelo mundo, hoje em dia!
Por sorte sua, o viajante nunca desejou ser dono duma rua. E, se não tiver a pinta dum celerado vulgar, concorda pelo menos que não basta ver as caras para reconhecer os corações. Não está em terra sua, por isso concilia, harmoniza, pede desculpas da intrusão.
- Quer beber um copo?
Assim a quente, ainda tomado de brios, o viajante está a pontos de recusar, mas aceita. Porque beber aqui um copo em sociedade é o mesmo que assinar um tratado de paz. Preferia um copo de vinho, mas acaba a engolir um Ricard espúrio, que uma mulher trouxe lá de cima. Sentou-se, com o anfitrião, no vasto palanquim de cimento que este construiu por cima da estrada, e ambos conversaram finalmente, com o vale da Ribeirinha em frente. Nos tempos antigos o homem era jornaleiro, fazia o que calhava, aí no campo. Nunca chegou a trabalhar nas minas, que sempre lhe faltou a terceira classe. Depois andou emigrado em França, a trabalhar nos batimãs, e viveu treze anos num autocarro velho, parado num beco de Champigny. Quando lhe chegou a altura, comprou tudo o que havia nesta rua e reconstruiu a casa onde vive. Faltam-lhe as duas casas velhas, que há dezassete anos não têm habitantes. Espera vir a comprá-las, quando os donos baixarem o preço.
- Um dia põe o seu nome na rua!
A sugestão não presta ao homem, que a rua já é dele. Das eleições da Europa pouco ouviu falar, e não lhe importam. A única revolução na sua vida foi a emigração. Na sua, e na de muita gente.
O sol já declinou atrás do monte, num poente suavíssimo. Mergulhado em emoções contraditórias, pudesse ele acrescentar o que por dizer ficou, e o viajante estaria de acordo com o seu anfitrião.

domingo, 14 de dezembro de 2008

da capo - 19

TOADA NEO-REALISTA
Um grande mar foi o que deixou na campina a chuva de quarenta dias e quarenta noites.
As vinhas morreram afogadas no lodo.
Os ratos e os bois estrebucharam na torrente, e lá foram.
Os homens ficaram torcendo as mãos, desamparados.
Melhor fizeram os galos e os pardais, que assaltaram a ventana do campanário.

As Aves...



Por esta altura, há-de haver um ano, dei As Aves à estampa.
Leram-nas alguns amigos, a quem sobrou paciência para um comentário.

Um advogado: Gostei imenso do seu livro, da escrita densa, significante, pesada (no sentido mais nobre), que li de um fôlego e depois reli devagar, com respiração mais pausada...

Um professor de literatura: ...Da guerra colonial, da revolução dos cravos, das suas consequências, é disso, substantivamente, que o livro trata. Sobre a guerra colonial já muito se escreveu e já muitos livros foram publicados, alguns de grande valor documental e mérito literário. Pedissem-me, a mim, uma lista dos melhores livros que sobre tal temática me foi dado ler, colocaria, sem a menor hesitação, estas Aves que Levantam Contra o Vento a par de Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz, Os Cus de Judas, de Lobo Antunes, Cortes, de Almeida Faria, Percursos: do Luachimo ao Luena, de Wanda Ramos, Costa dos Murmúrios, de Lídia Jorge. (...) Foi para mim um verdadeiro exercício de sedução literária, a leitura desta obra...

Um linguista, professor e crítico literário: (...) o primeiro (e grande) romance... é um livro excepcional. (...) É o retrato dum Portugal que foi, mas ainda persiste em ser. Porque nós somos como somos - e aí está o nosso grande problema...

Um militar: (...) Termino com uma ponta de inveja. Inveja da boa. É que, sem lisonjas, quanto não daria eu para saber escrever assim.

Um engenheiro: Um livro a não perder, escrito com a cabeça e com o coração. Numa prosa magistral, um testemunho único de um homem que viveu o 25 de Abril por dentro. As esperanças, as angústias, as desilusões, as traições! Uma obra prima para a história!

Outro engenheiro: (...) Há alguns momentos de glória na História deste país. E o autor soube - e de que maneira! - dar voz a essa História que não se lê nos manuais. (...)

Um filósofo: Confesso-te que, perante o romance, estou siderado, rendido. (...)

Um escritor: Parabéns pelo virtuosismo no uso da nossa língua, das nossas palavras. Obrigado pela ironia, pelo humor, pela acidez estimulante. (...)

Ainda um escritor: (...) V. escreveu o melhor texto de prosa portuguesa que me foi dado ler em anos. Nele encontrei tudo: ritmo, música, vernaculidade, suspense, mistério, escuridões, desesperos, enfim... Aquilo por que o leitor espera quando abre um livro. (...)

Enfim, opiniões são o que são. Mas a que propósito vem agora a ladainha, neste exercício de risco, a lembrar a história do cesto roto? Pois a um só. É que o mercado das Letras não teve, em todo este tempo, uma letra única que fosse, para dar um sinal das Aves. Qualquer sinal! O mercado ficou imperturbável, coçando a sarna na esquina. Falta não me faz nenhuma! Mas julguei que havia mercado!

Portugalmente (7)

(...)
O viajante deixa estas perguntas no ar, ao cuidado da história, é o que pode fazer, e não é pouco. E em tais pensamentos vai descendo o labirinto que este lugar é. Não encontra uma rua principal, um largo assinalado, como era de esperar. Antes um xadrez de ruelas muito antigas que seguem o seu curso de acaso, hoje calçadas em granito, num esmero de asseio e de cuidado que surpreendem o viajante e o deixam contente. Foram por certo casas de função, em tempos idos, estas duas de alpendre rude e pesada escadaria de lajedo, que dormem na ladeira. Resta-lhes a dignidade da fachada vetusta, e numa delas tocou um dia um telefone, é o que lembra o cartaz da companhia, que ali ficou pendurado. Mas o viajante podia jurar que já não toca há muito, o telefone, tantos são os sinais de abandono. Por certo se cansou e desistiu, que um telefone a tocar é um animal aflito à espera de salvamento. A este faltou-lhe a mão que viesse salvá-lo, pois o viajante percorre as ruas todas e não encontra ninguém, tudo parece mergulhado num sono muito velho. Encontra antigos tugúrios, de divisão singela, uma abertura única de entrada e a mesma de saída, ainda negros de fuligem por dentro. Não se acredita que ali se criou gente mas é obrigatório acreditar, por força do que ficou escrito no relatório dum soviete vermelho, que respondeu ao que lhe perguntaram, em 1970.
Há também algumas casas de lida antiga, com alpendres de coluna e soleiras desgastadas por muitos pés andarilhos, e ombreiras e vergas de aparelho. Casas dum outro tempo, que hoje é pedra o que resta e vai cedendo, se em todas envelheceram cumeeiras, caíram em ruína os telhados, e vão desabando os tabiques interiores. Há outras de cantaria, mais recentes, que resistem na sua geometria silenciosa, e alguma coisa nelas lembra ao viajante os tempos do minério, quando o volfro passava a fronteira e ia alimentar as armas da guerra, e o dinheiro corria e dava para comprar anéis de bandeirinha, que eram um sinal de distinção.
Aqui é a sede da freguesia, segundo atestam uns editais expostos. Há um a anunciar as eleições da Europa, e outro da marinha de guerra, que oferece vagas de grumete a artilheiros, radaristas, torpedeiros e condutores de máquinas. Com a falta de mancebos que por aqui se vê, há forte risco de não chegarem as naus a levantar o ferro. Mas há males que vêm por bem. Por este andar, vai ter um dia a história que deixar de mentir sobre um país de marinheiros.
Assim esperançado, o viajante encontra as primeiras casas que de França vieram, e se encaixaram onde possível foi, neste canto havia antigamente um pardieiro. São construções discretas e quase improvisadas, nada como as moradias que vieram mais tarde, quando a urgência se tornou menor e o dinheiro abundou. Têm cores absurdas, que eram as mais baratas, os telhados são escuros, e nas paredes de cimento apressado alastram manchas negras e sinais de ruína precoce. Mas nesse tempo era grande a pressa, maior que o pouco dinheiro, e a febre a arder já tinha séculos.
Há, mesmo assim, construções antigas restauradas, algumas só paredes ocas, outras casas inteiras. E o viajante bem gostava de encontrar alguém com quem falar, disse-lhe a sua amiga Benvinda que neste falanstério alguém sonhou com uma fábrica de salsichas. O viajante pára onde foi o largo portal dum cabanal antigo, sobe a escadaria dum alpendre vetusto, aprecia as veneráveis paredes reconstruídas a preceito, aventura-se mesmo a pisar um sobrado que ameaça ruir, por baixo dum telhado esburacado, chega a um varandim de sacada que dá para o sol poente, e fica sem compreender, as obras e os projectos. Gostava de encontrar alguém a quem perguntar, há vozes distantes de mulheres conversando nalgum terraço, mas o viajante só avista um jumento pigarço, parado além à entrada duma horta, debaixo duma oliveira. Tem uns olhos melancólicos e imóveis, indiferentes a tudo, à espera só que regresse a sua dona, que há-de ser a D. Chama.
Repara, o viajante, nalgumas janelas que estão abertas, e têm cortinados de linho. Mas se isso era um rasto de gente viva, de rasto não passou. Talvez tenha que voltar aqui no dia da padroeira, Maria de Magdala, a que depois se tornou santa. Se cá vier quando for dia de festa e houver férias de verão, há-de encontrar alegria nestas ruas, e muita gente à janela destas casas.
(...)

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Portugalmente (6)

(...)
Lá foram, os da Cunha, de mãos a abanar. Preservaram eles a inteireza do corpo, e foi restaurada uma paz que durou. Mas essa paz não enchia barriga, por pequena que fosse. E um dia o homem da Benvinda, e mais quem tinha dez reis de génio no corpo, nesta e nas outras aldeias do concelho, todos se fartaram da paz e das duas grandes fomes que tinham, que era a fome do corpo e a fome da terra. Lembrados do bom exemplo que lhe deixaram celtas e romanos, e mouros e visigodos, armaram-se de coragem guerreira, largaram daqui a salto e foram-se a invadir a França, à procura duma sorte melhor. Nessa altura ia o mundo civilizado já numa idade crescida, enquanto por cá se vivia numa infância rude, primitiva e mesquinha, coisas maiores não cabiam nas casas que já vimos. Os figurões que mandavam no país acabaram assustados com tal debandada. E foi então, em 1970, que algum senhor de autoridade, governador lá de longe, quis saber que povo era este que assim se punha a fugir, e mandou perguntar em que casas vivia, e de que faltas padecia, e quais eram os seus três maiores desejos. Reuniu a representação de Sebadelhe, que era formada pelo pároco Madeira, e um Pinto, regedor, e outra Pinta, que era a professora, e um senhor Cruz, presidente da junta. E todos depuseram que as casas são antigas na maior parte, sem iluminação nem o mínimo de condições; e que faz falta um pontão, para passar no ribeiro que divide a terra, e um depósito de água, que a leve aos fontanários; e que os três maiores desejos são uma escola, e uma estrada, e a electrificação, podendo ser. Logo foi superiormente considerado haver ali a mão de inimigos da pátria, celerados. Pois quem ousaria dizer, e de tão clara forma, que mais parece viver este povo num remoto sertão de África, parado no tempo dos afonsinos, entregue às leis da natureza como rebanho sem pastor. O mais certo é ter-se organizado em Sebadelhe um soviete vermelho, que tomou de assalto os centros do poder, para arruinar a pátria e destruir a nossa sociedade, cristã e ocidental.
Porém, a ser assim, logo se viu que andava o concelho todo tomado de assalto por sovietes vermelhos. Porque o de Aldeia Nova diz que a maioria das casas não tem condições para uma vida decente; em Carnicães e no Feital o panorama é péssimo e sem comodidades; na Castanheira é muito mau, em Freches é lamentável, em Moimentinha é outra vez péssimo, em Moreira, que é do Rei, é muito desolador, que faria se do Rei não fosse; em Souto Maior é primitivo e do pior, e muito bem vai ele nos Tamanhos, onde é apenas primitivo; já na Torre e nos Vilares é desolador, na Granja têm as casas aspecto de abandono e de desprezo, e na Cogula boa parte da população vive em tugúrios, de que ainda por cima paga renda.
Assim elucidado, mandou o governante arquivar numa gaveta os inquéritos em que se meteu. Ele não é nenhuma fada madrinha, e a vara de que dispõe não satisfaz desejos, muito embora tenha o seu condão. Há falta de recursos, toda a gente sabe como é pobre o país. Pois pobre andará ele, a quem o dizes tu! Mas o viajante crê que faltaram ao inquérito perguntas pertinentes, e pensa que é melhor fazê-las tarde, que não as fazer nunca. E à primeira será o que andou a fazer, em séculos, este povo, que é dono do país mais antigo da Europa, e nesta idade do mundo ainda não tem casas onde possa viver, não tem estradas para se deslocar, não tem água na fonte, a não ser de mergulho, não tem electricidade nem saneamento básico, esses luxos de mundos pagãos, e as ruas onde vive são de lama, para curtirem melhor os estrumes de inverno? E à segunda será onde nos ficou o país do rei Lavrador, que secava pauis, arroteava brenhas, construía castelos, e não se queixava de ser pobre? E à terceira se dirá onde foram parar os galeões da pimenta, com que nos aguçaram a cobiça, e as naus do ouro brasileiro, que nos corromperam o íntimo da alma? Que destinos foi que nos talharam, ou que fadários assim nos tresmalharam por plagas e sertões, a encher os olhos de sonhos, enquanto o europeu libertava o pensamento nas escolas, perseguia a ciência nas universidades, experimentava a técnica nas oficinas, e organizava a vida, e fabricava, e progredia?
O viajante deixa estas perguntas no ar, ao cuidado da história, é o que pode fazer, e não é pouco.
(...)

A terceira via

No tempo em que só havia caminhos de cabras, os portugueses saíam de Lisboa e levavam sete horas até chegar a Braga. Iam de Faro a Bragança seguindo as curvas de nível, e antes acautelavam testamento, porque o diabo as tecia.
Um dia chegou a Europa e trouxe-lhes vias rápidas, e auto-estradas que rasgavam as montanhas, e tinham terceira via nas subidas. A ideia era poupar tempo, moeda primeira do caos da civilização. Era habituá-los lentamente ao moderno frenesi de quem tem pressa e um horário para cumprir. Eles, porém, deformados pela história, esquivaram-se ao conceito. E ninguém lhes tira da cabeça que a terceira via das estradas é a dos romeiros que vão a pé a Fátima. Para eles, cumprir, só as promessas à Virgem.
Assim, quando vão para a estrada, alguns ainda afivelam a máscara do frenesi moderno. Porém, atacados de piedade, oitenta por cento deles reservam a terceira via aos peregrinos. Quanto a modernidade, a faixa do meio é-lhes mais que bastante. Vivem muito bem assim, na alegre inconsciência dos cretinos. E quando calha matam-se uns aos outros, com uma tranquilidade ainda maior.

Crepúsculo?



Quando o nome nos projecta na paisagem uma sombra maior que o tamanho da obra, temos o sol no ocaso.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Donos e senhores


Desde há um século, tratam assim o mundo.
Por vezes lá dispensam o mastim.
Mas soltam-no, sempre que lhes parece.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Portugalmente (5)

(...)
Embora saiba que há sempre muitas aldeias escondidas dentro da casca da mesma aldeia, aqui o viajante vai ficar a sabê-lo melhor. Porque Sebadelhe é uma terra muito antiga, embora hoje nem venha nos mapas. Se falam verdade uns livros que ele foi consultar, a origem do povoado aconteceu num tempo em que os homens preferiam os sítios elevados, os picos dominantes da paisagem, por assim dizer, para se fixarem. A incomodidade dos lugares compensavam-na eles com a vantagem de ver ao longe o inimigo e defenderem-se. Eram tempos de gente bruta e fera, pensamos nós, e estamos enganados, que a ferocidade e a bruteza dos homens não se acabou aí, as técnicas artilheiras é que mudaram. Por isso descemos nós do monte e vivemos hoje em dia na planície, num condomínio fechado, podendo ser.
Para voltar ao ponto, foi assim que os tataravós da nossa afável padeira de Aljubarrota se fixaram um dia nas penedias de S. Gens, ali por cima das nossas cabeças. E vieram celtas e houve disputas. E vieram romanos e houve combates. E vieram suevos, e depois visigodos, e de cada vez houve batalhas. E vieram os mouros, que entraram e saíram, e outra vez houve disputas. E sempre, ganhando ou perdendo, os homens acabaram misturados uns nos outros, aprendendo ou ensinando, consoante o caso. E S. Gens foi uma vez crasto, e chegou a castelo poderoso, logo mais tarde foi ruína, e hoje é simples monte abandonado, por ter mudado a artilharia das guerras dos homens.
Há mil anos atrás já se escrevia o nome de Sebadelhe, no latinório do tabelião era chamado Sabadelli. Tão velha idade é obra, pensa o viajante, que não faz ideia do que sejam mil anos, embora tenha pena de que ninguém lhe explique donde vem este nome. E mais pena tem, por saber que se escreveu a primeira vez o nome desta terra, para fazer constar que ela tinha dono. Era uma tal senhora D. Flâmula, ou D. Châmoa, ou mais simplesmente D. Chama, todalas três a mesma criatura, que a havia recebido das mãos dum godo leonês. Por certo já antes dela tivera Sebadelhe outros donos, mas deles não ficou registo conhecido. E por estas regiões foi ela dona de tudo o que os olhos abarcavam, e mais de quanto a imaginação dos tempos alcançava. Quando se viu sem herdeiro conhecido, D. Chama distribuiu a mosteiros as vastas possessões, quem sabe se para comprar o caminho do céu. Bem precisada disso andava a alma danada, ao que se consta um barzabu situado a meio do caminho entre a azougada avó Messalina de Roma, e a estoira-vergas da neta Catarina da Rússia. Isto é o que dizem as más-línguas. Porém, como no geral é sabido, mais vale andar no mar largo do que nas bocas do mundo. E, pela sua parte, o viajante não se vai pôr aqui a atirar pedras, nem acredita à primeira em tudo o que ouve dizer.
Um dia morreu D. Chama, e um século ou dois depois estava esta terra despovoada, baste-nos ver quanto pesavam na vida daqueles cristãos os forçados chamamentos militares e outros deveres da fortificação. Tornaram estes lugares à posse da coroa real, e desta à mão de outra dona, Maria Pais, a Ribeirinha, de quem se falará, em lá chegando. Um dia veio el-rei Afonso e deu-lhes foral e importância, e Sebadelhe tornou-se vila, e foi concelho, e teve julgado e alcaide e saião, que o mesmo é dizer cabo-de-esquadra. Os antigos tributos que corriam para as tulhas do mosteiro de Entre-ambolos-Rios passaram a correr para arcazes diferentes, e cada um que lavre com um boi ou com vários dará ao rei um quarteirão de pão, e quem de seu haja uma vinha pagará ao rei um puçal de vinho e não mais. Não era ucharia nenhuma, mas de muitos poucos é feito qualquer muito, como esta ribeirinha ensina. E nesse tempo não havia isenções nem desobrigas, como agora se vêem.
Mais tarde foi esta vila ornamento da comenda de Malta, e houve então comendador, e depois morgadio, e assim passou a haver honras em Sebadelhe. Até que um dia o último morgado, que vinha da cepa dos Barbudas, pediu a abolição da distinção, pois sempre se disse que é fraca a fidalguia onde comedoria não houver.
No povo ninguém deu pela mudança, que se antes já andava o povo só, a si mesmo ficou abandonado. Escasso continuou o pão, e mais ainda o conduto, e as casas, que eram pequenas, não ganharam depois disso altura de homem. Só se turvaram os ares no dia em que o morgado vendeu a capela do anjo S. Miguel a uns da Cunha. Grande foi o arrebato por estas ruas, os compradores queriam levar para a terra deles os santos da capela, que desta terra eram. Ora, se a nenhum mortal é permitido, por sacrílego, afiançar a valia terrena do mais ínfimo santo do céu, nulos resultarão, e de nenhum efeito, quaisquer tratos de comprar e vender, como quem fora ao mercado. Parece que estamos a ouvir a retórica subtil dalgum sumo teólogo, mas quem isto diz é um simples abade já velho. E bastou, como argumento, por tão verdadeiro ser. Santos da casa não farão milagres, arcanjos sejam eles, mas só em casa conservam a virtude.
(...)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Manhã de nevoeiro


- Francisco Sá Carneiro continua a ser uma referência para este país!
Isto afirmou ontem M. Ferreira Leite, à saída duma evocação fúnebre.
- Ou não tivesse el-rei Sebastião ido morrer tão longe!
Isto acrescentamos nós, entre o muito desencanto, a neblina outonal, e algum cinismo.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Portugalmente (4)

(...)
- Bem alta, a sua casa!
E ao dizê-lo mirava o viajante um rodado de carroça encostado à parede, a escada para o minúsculo varandim ao longo da fachada, o tectozinho de alpendre incrustado no cimento, e o encume do telhado a sumir-se nas alturas. E, olhando, fica a saber que há anos é viúva esta mulher de preto, e se chama Benvinda. Foram os filhos e os genros a acabar esta construção, durante as férias, mas quem a começou foi o marido, também emigrado em França.
- Vinham para aí, depois que o meu homem fechou os olhos, não descansaram enquanto me não fecharam a obra. Agora tenho dois na Suíça, outros vivem aqui, olhe, um nesta casa, outro ali à entrada, tem lá uma oficina de carros.
O viajante pensa que esta mulher tem bons filhos e melhores genros. Lembra-se de ter visto no caminho alguém a remover a roda dum tractor, mas agora está mais interessado nas casas modernas que o cercam.
- Antes de vir para aqui morei ali abaixo, numa casa pequena. Esta ganhou-a o meu homem, mas já não se gozou dela...
Pois pena é, isto sugere o gesto do viajante, que já viu muitas casas modernas, em muitas terras do país, mas nunca tinha visto estas que agora vê. A mulher de preto fica a varrer o seu pátio, contente com a sua casa, e o viajante vai descer a encosta, para ficar a conhecer esta terra por dentro. Para ser de todo verdadeiro, o viajante está espantado com os volumes e as proporções da casa, mas não foi capaz de perguntar à mulher quantas vidas conta viver, para poder enchê-la de alguma coisa. E logo depara, à mão direita, com uma ruela antiga, das de saibro batido, que leva ao arrabalde do povoado, nas traseiras da casa da sua amiga Benvinda. Aqui estamos, por assim dizer, no mirante da aldeia, à nossa frente alarga-se a amplidão do vale. E ali nas nossas costas, colada ao monte, como se não tivessem passado aqui cem anos, permaneceu inteira uma ilustração do que a vida era, antigamente. É uma fiada de sete casas estreitas, todas vazias e da mesma altura, com baixos e sobrado, a pedra tosca nem toda rebocada, um janelico, uma porta. O viajante espreita por uma delas, vê os tabiques de madeira em ruína a separar divisões minúsculas, e fica um bom bocado a imaginar que vidas ali cresceram, que mundos ali foram sonhados, que sonhos podem ter cabido ali dentro. Ao fim da rua há hortas, há castanheiros tão velhos que parecem já cansados de viver, há um caminho que parte para a serra, e que o viajante não quer percorrer. Antes volta para trás, encantado com o que viu. O viajante acha estas casas pitorescas, acha deslumbrante o panorama que aos olhos delas se desdobra, e acaba a pensar que seria bom ficar aqui toda a vida. Aliciado por um esteticismo idealista e romântico, acha estas casas bonitas porque nunca teve que viver nelas, nem sofrer-lhes a falta de espaço, e o escasso pé-direito, e a miniatura incómoda das portas. Deixou-se levar pelo sortilégio do lugar, foi o que foi. Mas agora, que voltou a passar no adro, entendeu muito melhor a desmesura inestética destas casas modernas, sobretudo a da mulher de preto, que já acabou de varrer o pátio. Em sua casa, haverá cada um de poder albergar o corpo e os sonhos, que são tanto maiores quanto mais antigos, como é sabido. E assim abala contente o viajante, agora já sabe com que matérias vai a sua amiga, tão pequena sendo, encher uma casa tão grande.
(...)

quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Portugalmente (3)

(...)
- O que é que o senhor procura?!
A interpelação acorda-o, e vem duma mulher vestida de preto, de vassoura na mão, no gesto de quem varre o pátio de cimento. O viajante já se tinha esquecido do que um dia leu nuns livros, mas aqui se lembrou novamente de que as palavras são mais que simples pedras atiradas ao vento. São como um cristal as palavras, disse-o quem o sabia. Há que tomá-las na sua circunstância, atentar na moldura que as envolve, e observar com muito atendimento a ramagem que as enfeita. Não fora o tom cantado da voz, o sorriso aberto na cara desta miúda silhueta escura, e assim tão de surpresa interpelado, com tais palavras e uma lança nas mãos, lá ia o viajante, castelhano não sendo, pôr-se a imaginar uma padeira nova de Aljubarrota. Muita injustiça há neste mundo!
- Queria ver a sua igreja, por fora é bem bonita! Sabe quem tem a chave?
- Pois tem a porta aberta, aí ao lado! E o cemitério antigo, lá atrás, veja à sua vontade!
O viajante já viu muitas igrejas, já sentiu nelas o tempo e também o abandono, em algumas sofreu os pesados odores acumulados. Faltava-lhe ver esta, neste lugar esquecido, para ficar encantado com tamanho esmero, nas pinturas, nas talhas singelíssimas, as próprias caras dos santos, tão lavadas que estão, parece que foram postas aqui ontem, se não foi esta manhã que chegaram do céu. Tudo isto foi restaurado em Braga, há pouco tempo, há-de explicar a mulher de preto, quando o viajante voltar à conversa com ela. Mas antes vai subir as escadas da torre sineira, para ver estes dois sinos de um fundidor que houve em Trancoso, um tal João Fernandes, há um século atrás. Há-de ver, o viajante, os telhados da aldeia a despenharem-se encosta abaixo, alguns feitos de novo, e muitos outros, já velhos, a ameaçar ruína. Há-de olhar, lá em cima, as penedias do antigo castelo, ainda hoje assim o nomeiam, embora nada reste do que foi algum dia. E há-de pedir a todos os deuses que vigilem o sono de tamanhos fraguedos, se um dia dão em mover-se a casa da sua amiga informadora é a primeira a cair, a segunda é a capela mais os santos, logo a seguir lá vai a aldeia toda parar à Ribeirinha.
Não será isso por certo antes de o viajante dar uma vista de olhos ao cemitério antigo, espaço exíguo por trás da capela, que pena estarem cobertas de argamassa as pedras de granito deste velhíssimo templo doutras eras, mesmo se retocado, mesmo se levantado, mesmo se acrescentado. O viajante encontra a era de 1766 gravada numa pedra. Terá sido então que alguém fez levantar o corpo do templo, para lhe caber ao fundo um coro. Assim alteado o encume, ganharam os fiéis em espaço o que perdeu o templo em harmonia e proporção.
O velho cemitério é um jardim onde restam antigas cabeceiras, e grades de ferro pintadas de branco, e cruzes avulsas que repousam, encostadas à parede. Subitamente ouviu-se um grito de pavão, ali ao lado, por trás da sebe duma horta. E o coração do viajante deu-lhe um salto no peito, era na infância que ouvia o cantar dos pavões do senhor conde, vindo de dentro da cerca, parecia-lhe aquilo um grito desesperado, ou o ralhar dum bicho tomado de fúria, o viajante voltou à infância e viveu o mesmo sobressalto, quis outra vez subir a parede, quis espreitar de novo através da cortina dos buxos antigos mas não viu pavão nenhum, apenas umas pombas prisioneiras atrás duma rede de galinheiro. Desconsolado, voltou ao adro da capela, onde a pacífica padeira de Aljubarrota estava ainda a varrer o seu pátio.
- Bem alta, a sua casa!
(...)

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

da capo - 18

EPIFANIA
A frase primitiva é benesse dos deuses, há-de ser verdade, se o disse um francês. Aparece à hora mais acidental, e fica a iluminar o que obscuro andava, a ruminar saída na treva original. Umas vezes é primeira, outras há-de ser a última.Mas sempre definitiva e terminal.
Depois é dar as outras ao papel, que saem em torrente, antes que um vento as leve. É roçá-las nos lábios, devagar, para arredondar arestas. É impor uma cadência, sondar uma harmonia, tentear-lhes o ritmo, forçar um andamento. A língua do leitor há-de lambê-las com volúpia, e essa não é contorcionista, nem gosta de fazer saltos mortais.
Dizem que tudo parte dum bafejo dos deuses. E eu, que não sei como se avêm os ateus, já me fui deixando de ateísmos.

Portugalmente (2)

(...) No seu pensar, dá o viajante mais importância a uma ribeira, a uma árvore qualquer, do que a um estádio de futebol a rebentar de gente. E mais ainda aprecia um panorama solto entre montanhas, do que a avenida mais cosmopolita. Por isso, antes de iniciar o seu caminho, sobe a esta penedia e toma o gosto à paisagem, correm-lhe os olhos pelos verdes vários do vale, este mais tenro é o das moitas de carvalhos, aqueloutro mais vivo é o dos prados ribeirinhos bordejando a linha de água, o mais escuro é o dos pinheirais que o fogo ainda não levou, e tudo o resto é um zumbir de bichos, um festim de matizes e fragrâncias, dos matos bravios que forram o dorso dos montes.
Além, donde o sol nasce, derramam-se na encosta as escombreiras dumas minas de urânio abandonadas. Os poceirões lá ficaram abertos, e ao vê-los encontrou o viajante na memória uma figura antiga de mineiro, serra acima, o cheiro acre do carboneto a soprar a língua azul do bico do gasómetro. Dessas vidas antigas, que eram vidas mesmo se à morte lentamente levavam, ficaram a escorrer águas das galerias, tão límpidas como letais. Nada parecia mais inofensivo e ali ficaram a correr, um dia hão-de contar-se os prejuízos.
O viajante vai descendo a pendente suave, e nestes pensamentos depressa chega à entrada da aldeia, Sebadelhe é o nome na tabuleta. O topónimo já contava com ele, mas não sabe agora o que fazer desta bifurcação. Por sobre ser um estreante nestas andanças, parece que o viajante não fez bem o trabalho de casa. Porém, querendo fazê-lo, não teria por onde, demais seria esperar que houvesse um roteiro destes lugares, se noutros, importantes, vai faltando. Não avista ninguém a quem pedir inculcas, e estes que estão ali à beira da estrada, dentro daqueles muros, já não podem dar respostas, por eles só as lápides falam no seu linguajar de pedra, eterna saudade. Que tolos são os homens, quando se põem a falar de eternidades, isto é o que pensa o viajante, mas podia afirmá-lo uma lápide qualquer.
E havendo que escolher entre o caminho que pela esquerda desce e o que pela direita sobe, decidiu-se por este, mais estreito. Tão afortunada foi a decisão que logo o viajante veio dar ao adro desta igreja, ao cabo duma rua calcetada em granito. O largo, se não é exagero falar assim de tão ínfimo espaço, tem o mesmo pavimento empedrado, algumas árvores baixas, canteiros em volta improvisados e um asseio surpreendente. E a luz da tarde, a espelhar-se na alvura do velhíssimo templo de raiz românica, deixa o viajante caído em espanto, olhando em volta.
- O que é que o senhor procura?!
(...)

sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Portugalmente (1)

[Não é certo que o título seja inédito. Se o não for, santa paciência!
Menos ainda é segura a legalidade da palavra.
Já quanto ao significado... venha o diabo e escolha um deles!]

Os países da literatura são todos inventados.
Só existem se lá formos.


1
Não foi este viajante que empurrou os portugueses para a borda do mar. Terá nisso culpas no cartório, pois natural, se há muito se diz que não há inocentes no mundo, e a comprová-lo vem aqui a fábula do cordeiro e das águas enturvadas, não nos bastando a bíblia sagrada, madre das fábulas todas. Porém o viajante não se sente inculpado. Não é seu o delito de que as terras do longo litoral se hajam tornado lugares inabitáveis, iguais a formigueiros aturdidos, onde não pode já uma qualquer formiga espreguiçar em sossego as antenas, passear nelas a mão e temperar-lhes o fio delicado, para saber orientar-se nos carreiros da charneca. Não pode já, sendo formiga, seguir a sua natureza, que logo lhe esbarra o cílio no ombro dum vizinho, logo lhe empanca no ventre um quarteirão inteiro, logo lhe passa por cima um comboio suburbano.
O viajante não tem culpa de que se haja tornado o país nesta barcaça mal tareada, de peso maior todo a um lado, ousasse ela erguer o ferro e zarpar do cais peninsular, logo adornaria a estibordo. Ora o viajante há muito que detesta naufrágios, e mais ainda se teme deles. Desde menino lhe contaram que é dum país de marinheiros destemidos, mas desconfiou sempre da patranha, tão tarde que viu o mar. E quanto mais lhe foi pesando a vida, mais incréu se tornou.
Depois de andar às voltas pelo mundo, chegou um dia ao alto da Portela, viu a Ribeirinha a espraiar-se entre a serra do Galgueiro e a serra do Vidoal, ao longe o tule ténue da Estrela, mais perto, lá ao fundo, a pesada cortina do monte do Almansor, e ali se deixou ficar. É lá que esta viagem principia, assim conheça Deus onde ela levará, o viajante não o sabe. Basta-lhe por enquanto o sol manso do começo da tarde, este ar limpo de Maio, e a brisa arisca que do norte vem.
Mergulhado na crespa natureza destas serranias, é o vale da Ribeirinha um lugar ameno, assim como um regaço da mãe-terra aberto ao sul, protegido da lâmina inclemente dos ventos e das geadas negras que vêm das terras do demo. Nem admira, pois há muito se sabe que o frio almoça na Guarda, faz um alto para jantar em Trancoso, e finda a jornada a cear em Penedono.
Começa a Ribeirinha a juntar águas nas alturas da Fonte do Milho, lá vai somando arroios e regatos, mais o fio ínfimo das nascentes que lacrimejam nas encostas, mata as sedes que em seu redor achar, e acaba a entregar as demasias nos braços do Távora quando chega à lezíria, lá ao fundo. Cumpriu ela a preceito o seu papel no mundo, passou o testemunho, abençoada seja.

(Continua)

da capo - 17

LAPSO DE LINGUAGEM
Não há jogador de futebol que não dê o seu melhor. Invariavelmente. É já uma bandeira da classe.
Mas há casos em suspeita de lapso de linguagem, sob um tão elevado pensamento. Ao que se ouve dizer, o seu melhor é o salário que recebem. E o que dão é pontapés numa bola, nem sempre muito certeiros.

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Ode

- à malta da SEDES e familiares;
- a um cozinheiro naval de Quipert, que o mar congelou;

A fauna demo-crata, pós-moderna
que nos governa
vai andando contente.
Que finalmente
até parece gente!
Soltaram-na há trinta anos dum lapuz que lhe apertava a cilha
à maravilha,
e lhe mantinha a rédea curta
à fideputa.
Agora já constrói opiniões
consome fundos aos milhões
aos saxões
e até faz eleições.
Porém se o povo, um cabrão,
exige trabalho e pão,
responde-lhe que não.
Que digo eu?!
Responde o que aprendeu!

da capo - 16

PASTOR DE LABÃO
Nessa altura eu tinha namorada, e escrevia num blogue textos de circunstância. Mas a vida não corria bem. Eu há sete anos à procura dela, da vida e da namorada, e ela a persistir em esconder-se. Era uma teimosia. Eu a entregar-me cada vez mais aos textos, ela a desvanecer-se cada vez mais.
Um dia disfarçou-se de comentadora, atrás duma alcunha graciosa, sugestiva. E vinha assídua, calorosa, vinha sempre fiel, estava sempre na caixa dos comentários, quando lá fazia falta. Trazia a sua nota, deixava um incentivo, era a leitora melhor que pode haver.
Até que não resistiu e apareceu-me no e-mail, a duras penas descobrira o endereço. Exagerou na sua admiração, e sussurrou-me, no fim, que dispusesse. Eu culpei algum amigo inconfidente e fiquei sossegado.
Assim passámos a viver a três. A namorada a esvanecer-me em casa, eu a escrever textos de circunstância, e a minha fiel leitora a comentar. A própria namorada lhe sentiu a persistência - tens aqui admiradora apaixonada! - fez-me notar certa vez. De horas em quando ela aparecia no correio, porque há coisas que não cabem na caixa dos comentários. E eu deixei andar por si aquele enleio, a imaginar feitiços na literatura, a convencer-me que o verbo pode operar maravilhas.
Um dia, ao fim de sete anos, acabou por dissipar-se a namorada. Foi-se embora, exasperada, por tanto se esconder. E eu abri a corte à minha admiradora, subindo a escada emotiva costumeira. Ela acompanhava-me a escalada com reticências discretas, e sugestões nebulosas, e os véus translúcidos que um bom pudor não dispensa. As coisas chegaram a aquecer, em bom rigor havia incêndio à vista.
Certa noite chegaram dois e-mails, iguais rigorosamente. Um vinha da antiga namorada, o outro da virtual admiradora. Avisavam que eram ambas uma só, e vinham despedir-se para sempre.
Eu sorri, pus-me a pensar na vida. Se ela não fosse tão curta, quem ficava outros sete anos era eu, a escrever num blogue textos de circunstância. Não chegariam para convencer Labão. Mas ao menos acreditava eu em feitiços da literatura. E vivia a confiar que um bom verbo opera maravilhas.

quarta-feira, 12 de novembro de 2008

Nacional-quê?

Quando lho pediu a juventude inventou-se nacional-revolucionário, um rótulo que parecia cabalístico mas não tinha segredo nenhum. Era o mesmo que ser nacional-socialista, sem o fardo de o parecer. Aqui há tempos andou na televisão, a falar duma ficção recente sua, o retrato retocado dum professor de Finanças muito antigo.
Ponderou-lhe os predicados pitorescos, os cinismos de farsante, as artimanhas de frade. E alargou-se então no que chamou a sua grande inteligência patriótica. Sublinhou que o professor conduzira Portugal à glória dos eleitos. E considerou natural que, durante o seu governo, metade do país passasse fome, e outra metade fosse imolada numa guerra demente.
Achou bem que o país todo vivesse numa escuridão medieval, porque um povo é invencível se tiver a coragem de ser pobre. Isto mesmo decretara o professor. Já existir na Europa, em 1954, um campo de concentração para enjaular adversários políticos, e onde não mais que trinta portugueses foram levados à loucura e à morte, era para o nacional-revolucionário uma simples questão de equilíbrio do mundo.
Dizia ele estas coisas, assim em frente da câmara, sem levantar os olhos do soalho. É de se compreender. Desplantes deste calibre deixam vergonhas na cara, que um verniz ligeiro não disfarça. Tal como as mós de moinho penduradas ao pescoço, fazem peso na cabeça. Mesmo a um confuso nacional-revolucionário.

sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Governantes

Quando um colegial ignorante dá em ministro da defesa, o mais certo é acabar um dia em boneco falante. As cuecas às florinhas são imaginação nossa.

terça-feira, 4 de novembro de 2008

Pastiche V

A tropeçar em pedras, em raízes,
baixa da montanha o regatinho.
Tão difícil é chegar a rio!

O dilema da opção nuclear

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Maktest e membro da ASPO - Portugal

Em 22 de Dezembro de 1938, os físicos alemães Otto Hahn e Fritz Strassman conseguiram cindir um núcleo de urânio, com libertação de uma elevada quantidade de energia. Esta descoberta está na base do funcionamento das centrais nucleares, nas quais a energia libertada sob a forma de calor é usada para produzir vapor de água, que por sua vez acciona uma turbina capaz de gerar electricidade.
Construídas essencialmente nos anos 70 e 80, estão actualmente em funcionamento em todo o mundo cerca de 450 centrais nucleares, com uma potência instalada de 370 Gigawatts (GW). Elas encontram-se sobretudo nos EUA (104 centrais produzem 40% da electricidade), na França (59 produzem 78%), no Japão, na Rússia, no Reino Unido, na Coreia do Sul e na Índia. A energia eléctrica produzida por todas as centrais nucleares corresponde a 16% do total mundial. E em 2006 era próxima da produção hidroeléctrica total do planeta.
Depois do acidente de Chernobyl, em 1986, houve uma quebra na construção de novas centrais nucleares, alimentada pelos baixos preços do petróleo e pelo desenvolvimento das centrais a gás natural. Daí resulta que 90% das centrais actualmente existentes tenham mais de 15 anos e sejam de 2ª geração. Neste momento constroem-se centrais de 3ª geração, e já se prepara uma quarta, mais segura e eficiente. Em Março de 2007 estavam em construção 24 novas centrais na China, Índia, Rússia, Finlândia, Coreia e Japão. E muitos outros países têm novos projectos.
A construção de uma central nuclear constitui um longo processo, cuja fase inicial é de discussão e planeamento. A construção propriamente dita demorará pelo menos cinco anos, e o seu tempo de vida útil pode variar entre 40 e 60 anos. Isto significa que muitas terão que ser construídas nas próximas duas décadas, se se quiser repor o número das que, entretanto, irão ser desactivadas.
O custo do kWh produzido por uma central nuclear é comparável ao das centrais térmicas a carvão. Porém, se considerarmos o custo adicional a pagar pelas emissões de CO2, o kWh nuclear pode ficar mais barato do que o produzido numa central térmica. Tenha-se em conta que uma central nuclear de 1 GW evita que 6 a 7 milhões de toneladas de CO2 sejam libertadas todos os anos para a atmosfera.
O urânio, combustível das centrais nucleares, é abundante na natureza, encontrando-se as maiores jazidas na Austrália, no Cazaquistão, no Canadá, nos EUA, na África do Sul, na Namíbia, no Níger, no Brasil e na Federação Russa. Países como a França ou a Alemanha terão já esgotado as suas reservas exploráveis. Aos preços actuais do urânio, a extracção só se justifica se a concentração do minério permitir a produção a um custo inferior a 30 dólares por quilo. Porém, neste escalão, as reservas são limitadas. E a manter-se o actual consumo de urânio, de acordo com um estudo do Energy Watch Group, o mundo poderá ter de recorrer aos escalões de menor concentração já em 2030. O que significa urânio mais caro a breve prazo! Portugal ocupa neste aspecto uma modesta posição, e as suas reservas pertencem ao escalão de baixa concentração. A sua extracção só se justificará com preços acima de 130$ o quilo.
Em termos energéticos, quer nos transportes quer nas utilizações domésticas, o futuro da humanidade gravitará em torno da electricidade, a qual terá de ser produzida pelas chamadas fontes de energia primárias. Com o agravamento da crise dos combustíveis fósseis e com os problemas do aquecimento global, o recurso crescente à energia nuclear parece inevitável. As fontes de energia eléctrica renováveis (hídrica, eólica, solar) não concorrem nem poderão substituir as chamadas centrais de base. E, nestas, as opções no futuro são apenas o carvão e o nuclear.
É por isso que, para uma geração privilegiada como a nossa, que usufruiu de energia abundante e barata, discutir a opção nuclear é um dever para com as gerações vindouras, que irão experimentar a penúria energética, e as limitações e constrangimentos que ela acarreta.
Em Portugal a discussão já está aberta, e vai certamente aprofundar-se no futuro. Os prós e os contras são muitos e de peso. Mas o dilema da decisão irá certamente ter que ser enfrentado pelos nossos governantes mais cedo do que eles porventura desejariam. O afrouxamento dos drivers do crescimento económico baseado no turismo e na construção civil podem obrigar a repensar alternativas. E esta é uma questão de estado, que não pode ser deixada ao sabor dos interesses do mercado, nem à iniciativa de particulares.

segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Abraços de urso - 1

Dizem que, nas eleições da América, o sr. Dick Cheney declarou o seu apoio ao candidato republicano. Há amigos assim, que dão abraços de urso. E o mundo todo havia de condoer-se da lastimável vítima, se não fosse o candidato um dos tais ursos, que tão fatais abraços têm dado ao mundo inteiro.

quarta-feira, 29 de outubro de 2008

Sonatina de rua

Dei com ela no passeio, ao fim da tarde, saíra há pouco da caixita de rodas. À frente, num tapete sobre o empedrado, tinha a dormir um gato de peluche, abrigado a uma sombrinha de bonecas. Ao lado um bouquet de plástico e a caixa do violoncelo, para recolher as moedas.
A violoncelista lembrava os trinta anos e tinha uma flor no cabelo, a derramar-se em cachos pelos ombros. Vestia a indumentária da função, ampla saia até aos pés, uma blusa de cetim, o coletito preto a aconchegar o peito. E era diferente das outras porque tocava de pé. Fixou o espigão numa prega da calçada, acomodou no ombro o braço do instrumento, correu a mão esquerda nos bordões. E ficou ali suspensa, de arco enristado na direita, a afagar num trejeito um caracol rebelde.
O maestro é alemão, vem do Oberhammergau, vai dizer-mo no fim do recital. Ampara-se a uma muleta e reclina sobre a artista os alongados braços, a bafejar-lhe o sopro demiúrgico de quem vai repetir a criação. Das pontas dos dedos enluvados sete fios o ligam ao corpo da mulher, que volta a sujeitar o caracol. E quando liga a máquina do som, desliza ela os dedos sobre o ponto, tange nas cordas o rufar do arco, cresce na rua a melodia da Scarborough Fair.
Começou por hesitar, a multidão, apanhada de surpresa. Depois, à melopeia dum adagio sossegado, rendeu-se de encantamento. Até um grupo de catraias que passava ali ficou, a ondear os quadris. Lá para o final, mesmo com falta de naipes, o maestro aventurou uma sonata célebre. E a plateia, que lhe não sabia o nome, perdeu a compostura e desatou a aplaudir.
Nos intervalos choviam as moedas na caixa do violoncelo. Quando as ouvia cair, almofadado na caixita de rodas, um caniche abria o olho e ladrava uma alegria.

terça-feira, 28 de outubro de 2008

Mar alto e bocas do mundo

Alfredo andou aqui há tempos, pela primeira vez, nas bocas do mundo. Deixara para trás o mar alto de Quipert, ao pé de Nantes, e a traineira onde era cozinheiro. Apanhara o Sud-Expresso e vinha ver a mulher, que tinha deixado em Mira.
Embrulhado em considerandos sobre o salário que tinha, aguentou a travessia de Castela nocturna a poder de cervejas. Chegou à Pampilhosa já toldado, a muito custo encontrou a mulher. E quando lhe passou a bebedeira já estava de regresso a Quipert, outra vez a atravessar Castela.
Hoje volta Alfredo às bocas do mundo, pela última vez. Há dias a tempestade apanhou-o no mar de Nantes, afundou-lhe a traineira, e em menos de meia hora já o tinha congelado.

segunda-feira, 27 de outubro de 2008

da capo - 15

SOLSTÍCIO
A estrada serpenteia pela encosta e a aldeia é surpreendente, assim arejada e branca, no cimo da subida. Tem casitas das antigas, onde só dobrado entrava um homem. E vivendas do minério, feitas no tempo da guerra, de cantaria rude. E as casas da emigração, airosas como caixotes de marçano, e tão omnipresentes como os deuses.
A gente é pouca, mas ainda assim compõe a procissão que já vai a sair para o arrabalde, a caminho do monte. Vê-se um pombal em ruínas, hortas com almendras desgarradas, campos que já deram pão. O resto é fraguedo e matos.
Há milhares de anos que é assim. Coloca-se a vestal num côncavo da pedra, a olhar por cima do rochedo. Ao longe o sol mergulha sobre um monte. E a multidão assiste, com ramos de oliveira na cabeça e capelas de flores na mão.
O celebrante veio da cidade, a cumprir o ritual. É ele o mais pagão de todos, e tem cabelos compridos, como os cristos. Entoa poemas da Bretanha, escuta as gaitas de foles que vieram de Miranda, os bombos de pele de cabra, e pede compostura à multidão. Mas há uns noviços que vêm de moto-quatro, e tratam o sol por tu, e não ligam patavina.
Alinhado com a vestal e o rochedo, no monte para lá do vale, o sol morre lentamente, no solstício do verão.
– Agora, mais, só para o ano! – alvitra um homem careca.
– E daí, quem sabe lá! – arrisco, numa descrença.
E olhando as vinhas do vale, não sei o que me é mais comovente. Se o sol que foi dormir atrás do monte e amanhã já vai embora, se os homens debaixo dele.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Paranóias

Despejava eu, tranquilo, o carrito das compras na bagageira do panzer, no parque do hipermercado. Praticamente de costas, mostrava um perfil enviesado, difícil de analisar. Mas ele foi decidido e peremptório. Parou-me ali ao lado, abriu o vidro do Corsa, esticou o pescocil e pôs-se a chamar pelo Jorge, que é o meu nome.
Eu lá fui ao seu encontro. Debrucei-me na janela, vi-lhe o ventre dilatado a roçar-se no volante, observei-lhe as feições. Do arquivo não me saiu nada parecido.
− Desculpe, mas...
− Sou o genro do Teixeira! Tenho uns quilitos a mais, umas entradas aqui, que o tempo passa... Mas lembro-me bem de si!
E lá insistia, a apresentar-me a nuca, as misérias do cabelo. Eu voltei a mirar-lhe os trinta anos, o descair do olhar, a silhueta estranha. Voltei a remexer cá dentro nos ficheiros, e nada.
− Genro do Teixeira?! Mas qual deles?
− O funcionário do banco! Primeiro no Canidelo, mais tarde nos Francelos!
Lembrei-me do Abadesso, das traduções de alemão, mas do Teixeira do banco nem sinal.
− Não há nenhum Teixeira que eu conheça... nunca fui ao Canidelo...
− Então você onde mora?
− Lá para as Antas!
− É daí, fui lá carteiro! Você não se chama Jorge?
− É verdade!
E fui cedendo. Têm-se visto verdades mais atacadas de enigma do que as fábulas da esfinge.
− Pois é daí, eu despachava o correio!
Ele às vezes reparo nos carteiros. Trazem-me cartas do banco, os avisos dos impostos, trazem notícias longínquas de guerras administrativas que vou sustentando há décadas. Mas, de quantos conheci, nenhum carteiro era assim.
− Trabalho agora em Alverca. Conhece Alverca?
− Muito bem!
Aterrei lá muita vez. E um dia fui ver o Museu do Ar, que entre espólios mais concretos me guarda a mim bocados do canastro.
− Ele é um bocado longe, andar abaixo e acima!
− Pois compreendo...
Sinto-me à entrada do delírio. Carteiro ou não, eu nunca o vi mais gordo. Mas ele é novo demais para sofrer de paranóias. E eu, que já estou por tudo, passo em revista as últimas semanas. Tenho as côngruas em dia, não me lembro de nenhum crime maior, e pecados só os do pensamento. Ele continua prazenteiro, fala-me outra vez de Alverca, jura que lhe sou familiar.
A instâncias minhas lá nos despedimos. E eu fico-me a pensar em espiões misteriosos, em conspirações maradas, a acreditar em bruxas, eu sei lá. Não tivesse a alma sossegada, e quem entrava em paranóias era eu.

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Poliglotas

Entramos todos no 15, ele atrás dela, ali no Cais do Sodré. E muito antes de se chegar a Santos, há-de ela conceder que vem de Itália. Ele é estranhamente quarentão, a grenha hirsuta, as muletas a amparar-lhe o pé de gesso.
Falas português?
Um pocô!
− Hoje no Centro Cultural de Belém arte moderna Berardo, último dia, entrada livre!
Eu registo-lhe a fausta novidade. Ela é que não dá sinais de comoção.
Speak english?
Um pocô!
− Today Centro Cuturral Belaim, modern art Berardo, no money!
Passa a travessa das Galeotas, e ela impassível às formas.
Sprich dóitsch?
Um pocô!
− Centro Cuturral Balaim, art modern Berardo, geld nix!
Passa a travessa dos Escaleres, e ela alheada das cores.
Hablas espagniol?
Um pocô!
− Hoy Centro Cuturral Belén, arte moderna Barardo, no dinero!
Passa o beco do Chão Salgado e ela insensível a tragédias, indiferente a criatividades. E sou eu quem aproveita a borla, que eles lá seguem no torpedo cego.
O Centro Cultural tem fotos de Jorge Molder, e corredores muito frescos, e multidões no seu footing, a digerir o almoço e as emoções estéticas. Há mães aflitas a perguntas das crianças, e perplexos pagadores de impostos com ar de quem jurou calar a boca.
Eu acabo a mergulhar na luz divina do Tejo, ao fim da tarde. Arte pura há-de ser a dos dois poliglotas, numa rua qualquer da Cruz Quebrada, nalgum descampado do Jamor. Mesmo de borla, a do comendador congela excitações.

Fábula

Entraram à noitinha na taberna, mandaram encher dois copos. Vinham de longe, quiseram impressionar.
- E aquela ribeira que passámos, onde havia um moinho no bico dum choupo?! - atirou ao moço o almocreve.
- Não vá, senhor, sem resposta! Nesse lugar vi um dia dois machos eguariços, carregados de fanegas, a trepar choupo acima! – isto retorquiu um aldeão.
- Pois hoje mesmo topámos nós um ganapo de sete braços! Está aqui o moço que não me deixa em mentira!
- Minta mais a modo, meu amo! Que o rapaz de sete braços não chegámos a topá-lo. Vimos-lhe foi a camisa de sete mangas, pendurada no estendal!
Riram todos, houve rodada geral.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

Tugas

Na Guiné, em 73, nós, a eles, chamávamos-lhes turras. Era um modo abreviado de lhes chamarmos terroristas. Sorrateiro, em casos tímido. Porque não acreditávamos que o fossem. Sentíamos que o não eram. Sentíamos que eles eram, como nós, marionetas duma feira. Juntos todos num beco sem saída. A esbracejar.
A certo ponto começaram eles a chamar-nos tugas. Abreviando portugas. Havia para eles portugueses e portugas. Os portugas eram a tropa atarantada, que andava ali a maçá-los. E que eles com frequência massacravam. Com armamento melhor que o nosso. Com artilharia que nós não tínhamos. Quando chegavam os aviões de alerta, a única coisa que ainda ali mexia, recebiam-nos com mísseis de infra-vermelhos que levavam ao ombro. Calavam-se durante um quarto de hora e chamavam-nos tugas com escárnio, porque tinham perdido o respeito por nós.
Não sei quem foi o português que um dia pôs esse nome à selecção nacional, esse elixir de delírios. Não sei se é o mesmo que mandou pôr as bandeiras na guilhotina das janelas. Sei que é um terrorista que também perdeu o respeito por nós. Um onagro mentecapto que se diverte a brincar com coisas sérias. E a quem alguns portugas acham graça.
Cá por mim, como dizia o Campos, de um modo completo, de um modo total, de um modo integral: MERDA!

da capo - 14

VIRADEIRA
O facto é que depressa nos cansámos. De fazer andar as fábricas de panos, de plantar vinhas novas, de aprender alguma coisa nas escolas, de blasfemar contra a fatalidade. E de ver a espirrar o sangue azul dos Távoras, que nos enterneceu o manso coração. De modo que, morto el-rei, voltámos aos marialvas, às procissões, à fadistagem e aos pátios das cantigas.
Ele havia umas estradas, no reino, por fazer. E logo se mandou que uns alvenéis lavrassem, numa serra, uns marcos monumentais, para assinalar cada légua aos viandantes. Dispunha cada marco dum relógio de sol. Porém algumas léguas terminavam à sombra, como é frequente acontecer, quando o sol se lembra de acordar. E, ou bem que se ofendia o rigor das medições, ou se esbanjavam custas em relógios inúteis.
Não chegou o desempate a ir a cortes, nem se lhe alcançou resolução. E as estradas lá ficaram por fazer.
Veio-me à lembrança um tal aperto, a propósito dum aeroporto que também anda aí nas mãos da viradeira.

quarta-feira, 8 de outubro de 2008

O mundo feito à mão

Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO-Portugal

World made by hand é o título do último livro de James Howard Kunstler, um escritor norte-americano que se tem notabilizado pelas posições críticas relativamente ao modelo de desenvolvimento existente no seu país, baseado no desperdício energético. Trata-se de uma novela cuja acção decorre numa pequena cidade americana, na era pós-petróleo. Através dela somos transportados a um mundo novo, sem electricidade, onde o homem e os animais voltam a ocupar o lugar que as máquinas lhes roubaram, e no qual as distâncias e o tempo são de novo percepcionados à medida do homem.
Já numa obra anterior
, The Long Emergency, editada em português com o título O Fim do Petróleo, o autor mostrara a dependência que a nossa civilização criou em relação ao crude, e as dramáticas consequências do seu previsível esgotamento num futuro mais ou menos próximo. O sucesso deste livro foi espectacular. Foi muito comentado, projectou o autor para as primeiras páginas dos jornais, e terá perturbado o sono de alguns leitores. Para muitos, terá sido o despertar da consciência para a nossa quase total dependência do crude, no dia a dia. E contribuiu também para ajudar a desfazer alguns mitos sobre o futuro energético, como as apregoadas soluções milagrosas dos bio-combustíveis, ou a chamada economia do hidrogénio.
Mas este autor tem outra faceta, expressa na obra
The geography of nowhere. Nela Kunstler debruça-se sobre os problemas do urbanismo, criticando asperamente as formas de vida e as soluções arquitectónicas que contrariam a eficiência energética. Considera o crescimento dos subúrbios das cidades americanas a maior tragédia do pós-guerra no seu país. As personagens centrais desta tragédia urbana são o automóvel e o centro comercial, personificado para ele na cadeia Wal-mart. Tudo gira à volta do transporte individual, o happy motoring, como ele chama ao circuito entre a garagem da casa, a garagem do emprego e o parque de estacionamento do centro comercial. Recorda com nostalgia a cidadezinha típica americana, feita à medida das pessoas e não dos automóveis, com a sua rua central e o seu pequeno comércio tradicional. Fala da destruição do caminho de ferro, e das suas nefastas consequências para um futuro sustentável.
São muitos os escritores, pensadores e economistas que hoje se questionam sobre o futuro da nossa civilização, e sobre a sustentabilidade dos actuais padrões de consumo.Exemplos disso são Joseph Tainter, que já há anos escreveu sobre o colapso das sociedades complexas; ou o famoso "Colapso" de Jared Diamond, prémio Pulitzer que ilustra com exemplos históricos o fim de certas civilizações (Ilha da Páscoa, os Maias, etc); e mais recentemente o escritor canadiano Thomas Homer-Dixon, que escreveu
The Upside of Down, à volta da mesma temática.
Aproximadamente, é esta a linha de raciocínio: as sociedades complexas podem colapsar, quando se esgota o seu principal recurso. No caso de Roma, o colapso aconteceu quando os cereais que alimentavam o império começaram a escassear. Ou quando, em razão da distância, das guerras, ou da baixa produtividade, a sua produção se tornou tão onerosa que o seu custo de produção deixou de compensar. Já na ilha da Páscoa terá sido o esgotamento da floresta que levou ao desaparecimento dos escultores das grandes estátuas.
Os combustíveis fósseis são o principal recurso da nossa civilização, e trouxeram-nos um progresso e uma complexidade nunca antes vista. O seu esgotamento próximo é o maior desafio que a Humanidade enfrenta. A actual crise financeira mais não é do que uma forma de expressão dessa crise energética. Ou por outras palavras, o crescimento económico está directamente relacionado com o crescimento dos recursos energéticos, e estes têm vindo a diminuir. Ora sem crescimento económico não é possível manter a funcionar uma economia baseada no crescimento contínuo, nem sustentar a estrutura financeira que lhe está associada. Curiosa tem sido a posição do professor Albert Bartlett, da Universidade do Colorado, para quem o maior defeito da humanidade consiste em não entender os limites e as consequências do crescimento exponencial.
Tão preocupante como a escassez de energia é a crescente dificuldade em produzi-la. A facilidade em obter um barril de petróleo mede-se pela quantidade de barris que se produzem com um único barril. É o chamado índice de retorno da produção de energia. Este era de 60:1 nas explorações de jazidas clássicas
onshore; pode ser de 10:1 nas jazidas deep water das bacias atlânticas de Angola e do Brasil; será de 6:1 nas areias betuminosas do Canadá; de 1,5:1 nos bio-combustíveis obtidos a partir do milho nos EUA; e possivelmente inferior a 1 nas serpentes marinhas que recolhem a energia das ondas, ao largo da Póvoa do Varzim.
James Kunstler estará em Lisboa no final desta semana, para proferir algumas conferências. Na manhã do dia 16 falará na Gulbenkian sobre energia e urbanismo, num encontro promovido pela Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo.No final da tarde, a convite da ASPO-Portugal, estará no Instituto Superior Técnico para falar do pico do petróleo. Será uma oportunidade única de ouvir o maior profeta de um novo mundo,
feito à mão, o qual sucederá ao mundo tal como hoje o conhecemos, e cujo fim foi há dias anunciado pelo nosso ministro da Economia.

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Vida de cão

As nossas relações nem eram más. Seguiam a lógica duma rotina antiga que se foi instalando, depois que tomámos juízo e derrubámos os muros da nossa guerra fria. Que também a tivemos, a princípio.
Ele acampava no terraço, eu tinha aposentos na marquise. Sentindo a dona fora, montávamos arraial na sala de visitas e trocávamos gentilezas. Ele inventava-me petiscos. Eu deixava-o lamber-me a tigela do leite e dançava-lhe às vezes no lombo um crazy-horse.
Não era fácil a partilha da dona, mas lá nos arranjávamos. E, quando ela o levava ao jardim, cheguei a ter saudades dele.
Há dias a patroa saiu, a uma noite de canasta. Eu fiquei a dormir, e ela deixou ao menino a televisão ligada. Para ver as notícias, a estúpida!
Eu bem que o estranhei quando ela regressou. Pareceu-me altivo, todo ensoberbado, a olhar-me lá do alto, nas suas tamanquinhas. Roçou-se sem pudor nas pernas da patroa, e acho que lhe impôs dormir no quarto dela. No tapete, estou eu a supor!
Gastei o dia seguinte a observá-lo. E sempre que o olhava, era um tipo com direitos o que via. Eu seja cão se não era. E quanto mais o olhava, mais direitos me exibia. Recusou passar a tarde no salão, desdenhou-me a tigela... E à noite, quando me viu ir às meninas, foi logo delatar-me à dona, o acusa-cristos. Não dormi a noite toda!
Na manhã seguinte exigi um conselho. E ela, muito dengosa, a fingir-me hipocrisias nos bigodes, enquanto me sugeria imposturices, regras de precedência, protocolos... Acabou a confessar-me que ele tinha uma comenda, um dia nacional só para ele. Que finalmente alguém lhe fizera justiça.
Eu fui à minha vida, não me dei por achado, tirei informações no bairro. E quando ela saiu, ofereci ao menino uma trela. Na coleira da trela ia o pescoço do justiceiro, um deputado qualquer, pelos vistos conhecido. Ficou insuportável, de vaidoso, e quem o queria ver era na rua, a levar o político ao jardim.
Soube-se ontem que afinal a comenda era falsa, e ele teve que soltar o benfeitor. Voltou a casa sozinho e devolveu-me a trela, acabrunhado. Metia dó, coitado! Quando um tipo se fia em certa malta, é raro acabar bem.
Vai ser um rebuliço cá em casa, mas deixei de falar ao parvalhão.

quinta-feira, 2 de outubro de 2008

da capo - 13

QUESTÃO COM LÁGRIMAS
Uma veio do Brasil e por força há-de chorar todos os dias. Duas vezes. Faz-lhe bem, ajuda a alma, não sabe explicar porquê.
– As saudades da família, do calor, eu sei lá bem...
A outra veio de Angola mas não gosta de chorar, que lhe dá cabo dos olhos. E os olhos são o principal.
– O coração mais os olhos, são dois amigos leais...
Saem ambas na praça dos Combatentes. E eu fico-me sem saber se é melhor cuidar dos olhos, da alma, ou do coração.
Vem-me à ideia que sou homem, proibido de chorar. E lá me livro destas inquietações.

terça-feira, 30 de setembro de 2008

Saber antigo

A menina era gentil. E bonita, santo Deus! Da ementa que me trouxe constava xôpa grelhada.
Pareceu-me estranho. Pedi explicações.
- É um peixe do mar, sei lá!
Fiquei na mesma. E logo ela harmonizou. Abriu o menu da véspera, paspada no carvão.
- Come e cala-te! - disse eu, a rosnar com os meus botões.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Nocturno, em si, menor

Alguns dormitam, maçados, nos beliches, ele viaja a noite inteira a pé. Entre o bar e o corredor, entre uma nova cerveja e os considerandos do salário que recebe. Quase setecentos contos, mesmo quando não embarca. Como agora, que vem a casa ver a mulher. Mas isso há-de acontecer só amanhã, lá pelo meio-dia, em chegando à Pampilhosa, depois de atravessar a infindável noite basca, e leonesa, e castelhana, num Sud-Expresso lôbrego.
Alfredo tem trinta anos e deixou a escola antes do tempo, em Mira. Foi trabalhar com o pai, nesse tempo havia quarenta companhas só nas artes da xávega. A princípio puxavam a rede à unha, com juntas de bois que enterravam os cascos no areal macio. Hoje não chegam à dúzia. O peixe foi-se embora, será culpa das chuponas espanholas. E ficou tão barato na lota quanto é caro nas bancas do mercado, não se compreende Portugal. Paga-se o gazol do barco e o resto mal dá para viver. De forma que o pessoal começou a emigrar lá para fora e ele foi parar a Quipert, ao pé de Nantes. Foi há dois meses, mais um cunhado, é a primeira vez que vem a casa.
Em Quipert saem para o mar à quinzena, e Alfredo é o cozinheiro. O dono do barco é tão velho que já não navega, toda a companha de sete é contratada. Mas o peixe vai à lota ao mesmo preço para todos e toda a gente ganha dinheiro. Só não se entende o que se passa em Portugal.
Alfredo vem excitado com os considerandos do salário que recebe. Jantou no restaurante, bebeu uma garrafa de vinho, no fim pediu um conhaque e pagou quarenta euros mas valeu a pena. Depois foi aturando a noite a poder de cervejas, e é por isso que já lhe arrasta a voz, e tem este bafo choco e amargoso, e repisa outra vez os considerandos do salário que recebe. Quando chega a Vilar Formoso desce ao cais durante meia hora, o tempo de mudar a máquina ao comboio. Bebe outra cerveja na cantina, com uns camaradas negros que exercitam um hip-hop lusófono, e também chegam da Europa.
Lá pelo meio-dia, toldado como vai, Alfredo levará tempo a encontrar-se com a mulher. E quando o conseguir, vão ser horas de apanhar outra vez o comboio para voltar a Quipert, ao pé de Nantes. Onde agora é cozinheiro, sempre que sai ao mar, a pensar nos considerandos do salário que recebe.