domingo, 14 de dezembro de 2008

Portugalmente (7)

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O viajante deixa estas perguntas no ar, ao cuidado da história, é o que pode fazer, e não é pouco. E em tais pensamentos vai descendo o labirinto que este lugar é. Não encontra uma rua principal, um largo assinalado, como era de esperar. Antes um xadrez de ruelas muito antigas que seguem o seu curso de acaso, hoje calçadas em granito, num esmero de asseio e de cuidado que surpreendem o viajante e o deixam contente. Foram por certo casas de função, em tempos idos, estas duas de alpendre rude e pesada escadaria de lajedo, que dormem na ladeira. Resta-lhes a dignidade da fachada vetusta, e numa delas tocou um dia um telefone, é o que lembra o cartaz da companhia, que ali ficou pendurado. Mas o viajante podia jurar que já não toca há muito, o telefone, tantos são os sinais de abandono. Por certo se cansou e desistiu, que um telefone a tocar é um animal aflito à espera de salvamento. A este faltou-lhe a mão que viesse salvá-lo, pois o viajante percorre as ruas todas e não encontra ninguém, tudo parece mergulhado num sono muito velho. Encontra antigos tugúrios, de divisão singela, uma abertura única de entrada e a mesma de saída, ainda negros de fuligem por dentro. Não se acredita que ali se criou gente mas é obrigatório acreditar, por força do que ficou escrito no relatório dum soviete vermelho, que respondeu ao que lhe perguntaram, em 1970.
Há também algumas casas de lida antiga, com alpendres de coluna e soleiras desgastadas por muitos pés andarilhos, e ombreiras e vergas de aparelho. Casas dum outro tempo, que hoje é pedra o que resta e vai cedendo, se em todas envelheceram cumeeiras, caíram em ruína os telhados, e vão desabando os tabiques interiores. Há outras de cantaria, mais recentes, que resistem na sua geometria silenciosa, e alguma coisa nelas lembra ao viajante os tempos do minério, quando o volfro passava a fronteira e ia alimentar as armas da guerra, e o dinheiro corria e dava para comprar anéis de bandeirinha, que eram um sinal de distinção.
Aqui é a sede da freguesia, segundo atestam uns editais expostos. Há um a anunciar as eleições da Europa, e outro da marinha de guerra, que oferece vagas de grumete a artilheiros, radaristas, torpedeiros e condutores de máquinas. Com a falta de mancebos que por aqui se vê, há forte risco de não chegarem as naus a levantar o ferro. Mas há males que vêm por bem. Por este andar, vai ter um dia a história que deixar de mentir sobre um país de marinheiros.
Assim esperançado, o viajante encontra as primeiras casas que de França vieram, e se encaixaram onde possível foi, neste canto havia antigamente um pardieiro. São construções discretas e quase improvisadas, nada como as moradias que vieram mais tarde, quando a urgência se tornou menor e o dinheiro abundou. Têm cores absurdas, que eram as mais baratas, os telhados são escuros, e nas paredes de cimento apressado alastram manchas negras e sinais de ruína precoce. Mas nesse tempo era grande a pressa, maior que o pouco dinheiro, e a febre a arder já tinha séculos.
Há, mesmo assim, construções antigas restauradas, algumas só paredes ocas, outras casas inteiras. E o viajante bem gostava de encontrar alguém com quem falar, disse-lhe a sua amiga Benvinda que neste falanstério alguém sonhou com uma fábrica de salsichas. O viajante pára onde foi o largo portal dum cabanal antigo, sobe a escadaria dum alpendre vetusto, aprecia as veneráveis paredes reconstruídas a preceito, aventura-se mesmo a pisar um sobrado que ameaça ruir, por baixo dum telhado esburacado, chega a um varandim de sacada que dá para o sol poente, e fica sem compreender, as obras e os projectos. Gostava de encontrar alguém a quem perguntar, há vozes distantes de mulheres conversando nalgum terraço, mas o viajante só avista um jumento pigarço, parado além à entrada duma horta, debaixo duma oliveira. Tem uns olhos melancólicos e imóveis, indiferentes a tudo, à espera só que regresse a sua dona, que há-de ser a D. Chama.
Repara, o viajante, nalgumas janelas que estão abertas, e têm cortinados de linho. Mas se isso era um rasto de gente viva, de rasto não passou. Talvez tenha que voltar aqui no dia da padroeira, Maria de Magdala, a que depois se tornou santa. Se cá vier quando for dia de festa e houver férias de verão, há-de encontrar alegria nestas ruas, e muita gente à janela destas casas.
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