terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Portugalmente (5)

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Embora saiba que há sempre muitas aldeias escondidas dentro da casca da mesma aldeia, aqui o viajante vai ficar a sabê-lo melhor. Porque Sebadelhe é uma terra muito antiga, embora hoje nem venha nos mapas. Se falam verdade uns livros que ele foi consultar, a origem do povoado aconteceu num tempo em que os homens preferiam os sítios elevados, os picos dominantes da paisagem, por assim dizer, para se fixarem. A incomodidade dos lugares compensavam-na eles com a vantagem de ver ao longe o inimigo e defenderem-se. Eram tempos de gente bruta e fera, pensamos nós, e estamos enganados, que a ferocidade e a bruteza dos homens não se acabou aí, as técnicas artilheiras é que mudaram. Por isso descemos nós do monte e vivemos hoje em dia na planície, num condomínio fechado, podendo ser.
Para voltar ao ponto, foi assim que os tataravós da nossa afável padeira de Aljubarrota se fixaram um dia nas penedias de S. Gens, ali por cima das nossas cabeças. E vieram celtas e houve disputas. E vieram romanos e houve combates. E vieram suevos, e depois visigodos, e de cada vez houve batalhas. E vieram os mouros, que entraram e saíram, e outra vez houve disputas. E sempre, ganhando ou perdendo, os homens acabaram misturados uns nos outros, aprendendo ou ensinando, consoante o caso. E S. Gens foi uma vez crasto, e chegou a castelo poderoso, logo mais tarde foi ruína, e hoje é simples monte abandonado, por ter mudado a artilharia das guerras dos homens.
Há mil anos atrás já se escrevia o nome de Sebadelhe, no latinório do tabelião era chamado Sabadelli. Tão velha idade é obra, pensa o viajante, que não faz ideia do que sejam mil anos, embora tenha pena de que ninguém lhe explique donde vem este nome. E mais pena tem, por saber que se escreveu a primeira vez o nome desta terra, para fazer constar que ela tinha dono. Era uma tal senhora D. Flâmula, ou D. Châmoa, ou mais simplesmente D. Chama, todalas três a mesma criatura, que a havia recebido das mãos dum godo leonês. Por certo já antes dela tivera Sebadelhe outros donos, mas deles não ficou registo conhecido. E por estas regiões foi ela dona de tudo o que os olhos abarcavam, e mais de quanto a imaginação dos tempos alcançava. Quando se viu sem herdeiro conhecido, D. Chama distribuiu a mosteiros as vastas possessões, quem sabe se para comprar o caminho do céu. Bem precisada disso andava a alma danada, ao que se consta um barzabu situado a meio do caminho entre a azougada avó Messalina de Roma, e a estoira-vergas da neta Catarina da Rússia. Isto é o que dizem as más-línguas. Porém, como no geral é sabido, mais vale andar no mar largo do que nas bocas do mundo. E, pela sua parte, o viajante não se vai pôr aqui a atirar pedras, nem acredita à primeira em tudo o que ouve dizer.
Um dia morreu D. Chama, e um século ou dois depois estava esta terra despovoada, baste-nos ver quanto pesavam na vida daqueles cristãos os forçados chamamentos militares e outros deveres da fortificação. Tornaram estes lugares à posse da coroa real, e desta à mão de outra dona, Maria Pais, a Ribeirinha, de quem se falará, em lá chegando. Um dia veio el-rei Afonso e deu-lhes foral e importância, e Sebadelhe tornou-se vila, e foi concelho, e teve julgado e alcaide e saião, que o mesmo é dizer cabo-de-esquadra. Os antigos tributos que corriam para as tulhas do mosteiro de Entre-ambolos-Rios passaram a correr para arcazes diferentes, e cada um que lavre com um boi ou com vários dará ao rei um quarteirão de pão, e quem de seu haja uma vinha pagará ao rei um puçal de vinho e não mais. Não era ucharia nenhuma, mas de muitos poucos é feito qualquer muito, como esta ribeirinha ensina. E nesse tempo não havia isenções nem desobrigas, como agora se vêem.
Mais tarde foi esta vila ornamento da comenda de Malta, e houve então comendador, e depois morgadio, e assim passou a haver honras em Sebadelhe. Até que um dia o último morgado, que vinha da cepa dos Barbudas, pediu a abolição da distinção, pois sempre se disse que é fraca a fidalguia onde comedoria não houver.
No povo ninguém deu pela mudança, que se antes já andava o povo só, a si mesmo ficou abandonado. Escasso continuou o pão, e mais ainda o conduto, e as casas, que eram pequenas, não ganharam depois disso altura de homem. Só se turvaram os ares no dia em que o morgado vendeu a capela do anjo S. Miguel a uns da Cunha. Grande foi o arrebato por estas ruas, os compradores queriam levar para a terra deles os santos da capela, que desta terra eram. Ora, se a nenhum mortal é permitido, por sacrílego, afiançar a valia terrena do mais ínfimo santo do céu, nulos resultarão, e de nenhum efeito, quaisquer tratos de comprar e vender, como quem fora ao mercado. Parece que estamos a ouvir a retórica subtil dalgum sumo teólogo, mas quem isto diz é um simples abade já velho. E bastou, como argumento, por tão verdadeiro ser. Santos da casa não farão milagres, arcanjos sejam eles, mas só em casa conservam a virtude.
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