quarta-feira, 30 de maio de 2018

Corpo de Deus

Os patitos que nadam na represa, o rebanho que pasta nos salgueiros da margem, os cães que vigiam a retaguarda, tudo isto será o corpo de deus que festejam com tapetes de flores em volta da igreja, no final da tarde. Sem a Natureza nada tinha justificação!

domingo, 27 de maio de 2018

Transportes

"Os portugueses levaram o milho da América para a África, onde se adaptou de tal maneira que em fins do séc. XVI se dava ao milho americano o nome de "milho da Guiné". A laranjeira-doce foi trazida para o país depois da viagem de Vasco da Gama, e no séc. XVI generalizou-se a sua cultura na metrópole e nas colónias. A laranja da China entrou em Portugal em 1635, e foi daí difundida pelo Velho e Novo Mundo. Os portugueses encontraram o tabaco na América e espalharam-no pela África e pela Ásia. Do Brasil levaram os portugueses a batata-doce para a África, e o ananás para a África e a Ásia. Para a América levaram da África a bananeira. Há quem afirme que deles tomaram os japoneses o conhecimento da planta do chá. (...)" 

sexta-feira, 25 de maio de 2018

Bárbaros

A avezita agitava-se, tonta, no alcatrão. Parecia bêbeda mas não era nada disso.
Tinha sido vitimada por um desses energúmenos que passam a ferro tudo o que apareça pela frente: peões, cachorros, pássaros, comboios, gatos.
Hesitei ao passar-lhe um pneu por cima. Mas para quê prolongar tal agonia?! 

quarta-feira, 23 de maio de 2018

Simulacros

Foi esta, certamente, a última vez que fui a Lisboa. De comboio, que é a melhor opção.
Assim me achei na gare do Oriente, aquele palmeiral de ferro com simulacros da Índia que o Calatrava engendrou. É um belíssimo sítio para apanhar uma pneumonia!
O comboio, até à Pampilhosa, lá se vai desenrascando. Mas quando entra na linha da Beira Alta é uma desgraça. A velocidade é menor do que a da carruagem que trouxe o Jacinto a Tormes, há 150 anos!

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Miragens

"Era para a Coroa de um milhão de cruzados o produto da especiaria em cada ano, livre do custo e de todas as outras despesas, incluindo nestas as perdas marítimas. Mas todo esse dinheiro gastava o rei D. Manuel com o seu fausto particular e com o que dava loucamente a uma multidão de parasitas, que acorriam à capital de todos os pontos do reino.
Apesar de toda a riqueza da pimenta, a administração financeira era sempre deficitária. Todos em Portugal procuravam viver do comércio da Índia, directa ou reflexamente, por intermédio do monarca. O dinheiro era dado à aristocracia, e passava desta aos estrangeiros, a quem se compravam todas as coisas. O Transporte, pois, destruía a indústria do país, em vez de ser, como conviria, o fomentador da sua indústria, pela fixação da riqueza do trabalho nacional. Os portugueses traziam à Casa da Índia os produtos orientais, e os navios estrangeiros vinham buscá-los a Lisboa. Mais tarde os holandeses não procederam da mesma forma, ao despojá-los do monopólio. (...)
Os portugueses tomavam para si a parte difícil, arriscada e dispendiosíssima, do trabalho do Transporte, deixando aos outros o melhor proveito. (...)"

domingo, 20 de maio de 2018

Colonatos

"Nestes prados da quinta dos Cavalos não há cavalos nenhuns. Só João vai caminhando pela berma da estrada e o viajante para ao lado dele. Não sendo velho é uma figura antiga, delida pelo tempo, ou pela vida. E há nele uma servitude primitiva que o viajante já julgava extinta. De manhã tirou-se de cuidados e foi à vila ao médico espanhol, à boleia dum vizinho. Em breve se despachou e agora não há transportes, não tem remédio senão voltar a pé. Tem a mãe à espera em casa, já muito velha, e ainda mais achacada do que ele. Há mais irmãos, mas desgarraram todos, depois que voltaram de Angola. Foram para lá quando eram pequenos, cresceram nos colonatos do Cunene. Havia o gado e aquelas terras grandes... Agora o que lhe vale é o rendimento mínimo.
Quando o carro estaca no meio do povo, ali à beira dum salgueiro-chorão, João ainda não acreditou que o viajante parou na estrada e o trouxe para casa. O que lhe vale é o rendimento mínimo. E ao vê-lo assim, a afastar-se cabisbaixo, convence-se o viajante de que deu boleia a um símbolo de alguma coisa maior. (...)."
[in Peregrinação da Lapa a Riba-Côa]

sábado, 19 de maio de 2018

O maior filho da puta da história de Portugal

"Foi D. Duarte um rei muito bom, mas infeliz, não só por nevropata, mas também pela mágoa que lhe causou D. Henrique com a sua teimosia de uma segunda expedição a Marrocos, contra o parecer do rei e de D. Pedro, a quem tal política, excessivamente comercial ou de transporte, em prejuízo da produção, parecia "trocar uma boa capa por um mau capelo".
A expedição fez-se; e quando os portugueses cercavam Tânger, um exército mouro cercou-os a eles, cortou-lhes a comunicação com os navios, e só lhes prometeu o embarque contra a promessa de restituírem Ceuta, ficando em reféns, como garantia da execução dela, o infante D. Fernando.
Ceuta não foi restituída; D. Duarte morreu de desgosto, e a D. Fernando, martirizado em África, libertou-o a morte da sua miséria em 1443."

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Dona Elvira

Hoje em dia é a alcunha dum carro clássico, mas nesse tempo era nome de gente. E a dona Elvira subia todos os dias as inclementes ladeiras da Sobreposta para ir dar escola a Casteição.
Estava casada com o Guinemer, que foi buscar tal nome não se sabe aonde. Era uma espécie de herege, que se dava mal com o padre. E um dia construiu uma fábrica de moagem debaixo duns castanheiros. Um motor acionava a mó alveira, e isso acelerou o abandono dos moinhos de água, pela ribeira abaixo.
Um dia o Guinemer partiu para a África e a dona Elvira foi com ele. Constou que ele morreu debaixo dum tractor, que um preto fez empinar e cambulhou. E a dona Elvira regressou mais tarde, numa ponte aérea que aí houve.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

Decadência

"Essa monarquia, acostumando o povo a servir, habituando-o à inércia de quem espera tudo de cima, obliterou o sentimento instintivo da liberdade, quebrou a energia das vontades, adormeceu a iniciativa; quando mais tarde lhe deram a liberdade não a compreendeu; ainda hoje a não compreende nem sabe usar dela. (...)
A estas influências deletérias, a estas duas causas principais de decadência, uma moral e outra política, junta-se uma terceira, de carácter sobretudo económico: as Conquistas."
(...) Pois bem, meus senhores: o Cristianismo foi a Revolução do mundo antigo; a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo moderno".
Santo Antero participou desta maneira nas Conferências do Casino Lisbonense em 1871. Mais tarde deu um tiro nos miolos, num jardim açoreano.

sábado, 12 de maio de 2018

Despotismos

O Chico Preto tinha-lhe oferecido o cão. Ele trouxe-o para casa e prendeu-o numa argola para guardar o quinteiro. Se algum de nós aparecia, o cão chorava como uma criança. Às tantas reparámos que as pulgas tinham tomado conta dele e já cobriam o chão. E o que ele queria era correr, desvairado, e atirar-se à água frígida do tanque. Era o refrigério do pobre do cão.
Por isso nos proibia que alguém o soltasse. Por sadismo puro. Porque os déspotas são todos assim. Avariados dos cornos.

quinta-feira, 10 de maio de 2018

Aqueles cães

No meio dessas andanças, enquanto a conversa deslizava, entrámos pelo quinteiro. Lá ao fundo havia um cabanal, onde o Zé guardava as lenhas do Inverno. E diminuto era o lugar para elas, que a mor parte do telheiro estava atravancada por um exótico mostrengo: um prisma descomunal, coberto de ferrugens e de lixo.
O Zé confidenciou-me que já fora um depósito de gasolinas. Esta enterrado em Tete, numas bombas que ele tinha à beira da picada que dava para o Moatize. Antes de juntar as tralhas e pôr-se a mexer para a Beira, mandou vir os pretos todos, fê-los desenterrar o mastodonte, subiu-o para a caixa do camião e trouxe tudo no convés dum navio.
Agora ali estava ele, e estava ali muito bem. Não tinha deixado nada àqueles cães.

quarta-feira, 9 de maio de 2018

Marquês de Pombal

Em momentos críticos é que fazem falta homens providenciais. Foi o que aconteceu com o Marquês.
Viveu em Londres e em Viena, onde casou e aprendeu o espírito moderno. Secretário do rei D. José, ficou na história como a imagem do déspota impiedoso. O caso do jesuíta Malagrida, para quem o terramoto de Lisboa foi um castigo de deus, ajudou muito.
Ele sabia que em Portugal nada poderia ser feito sem partir os dentes à fidalguia todo-poderosa. Os Távoras esquartejados em Belém, no beco do Chão Salgado, e o duque de Aveiro que o digam.
Além disso o filão do ouro do Brasil estava esgotado. Quando veio o terramoto de Lisboa, era preciso reconstruir a baixa pombalina, coisa que ele fez notavelmente, apoiado numa equipa de arquitectos notáveis. 
Com a morte do rei veio a rainha louca, que vivia aterrorizada com a violência do Marquês. Os aristocratas procuravam apenas a vingança. E graças a ela o Marquês acabou homiziado em Pombal.

terça-feira, 8 de maio de 2018

E as tripas?!

 
 
Num tempo que se perde na infância, trabalhou lá em casa um rapaz que depois foi para a pesca do bacalhau, talvez para Ílhavo. Agora aparece este australiano armado em historiador, a contar epopeias sobre a história dos navegadores portugueses, e as índias, e os Vascos da Gama, e os pescadores dos dóris..
 "Todos os dias pequenas fragatas de Lisboa lhe traziam sal e mantimentos, ambos em grande quantidade, e homens descalços, de cesto à cabeça, lançavam montes de sal para dentro do enorme porão. (...)". Faltam as tripas!

segunda-feira, 7 de maio de 2018

sábado, 5 de maio de 2018

O Angústias

Nesta altura o céu mostra-o abundantemente. As chamadas nuvens de desenvolvimento vertical elevam-se por vezes a grandes altitudes. E lá dentro é um cafarnaum. Um avião que não tenha radar e seja apanhado numa coisa dessas parece um brinquedo.
Aconteceu ao Angústias, de tal maneira que ele saiu na vertical, com o solo a dois passos. Agarrou no manche a duplas mãos e puxou por ele desvairadamente para não embater no solo.
Apanhou um tal cagaço que nunca mais quis voar. Foi dirigir uma repartição qualquer de pessoal, onde eu mais tarde o encontrei. Mas isso não vem agora ao caso.

quinta-feira, 3 de maio de 2018

Deserto

O burgo já viveu tempos diferentes. Primeiro foi quando nele viveram os judeus, há muitos anos, quando alinharam a corredoura como hoje ainda é.
Mais tarde, quando era habitado, tinha uma livraria no largo da Avenida. Comprei lá ao Caramelo as mais antigas coisas de que me lembro: a 25ª Hora e A Ponte sobre o Drina.
Hoje o burgo é um deserto como outros.

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Abrir os olhos

Em Maio de 68 tinha eu acabado de chegar ao sertão do norte de Angola. Mas os ecos dos acontecimentos de Paris chegaram lá, através da Paris-Match. É proibido proibir!
Em Praga o estudante Ian Palach imolou-se pelo fogo na praça Venceslau.
A vida é longa e muitas vezes confusa. E abrir os olhos leva muito tempo.

terça-feira, 1 de maio de 2018

Coração

Tinha por animais um grande apreço, ao contrário dos irmãos. Um dia o cachorrito que tinha foi atropelado na picada pelo machimbombo. Ela teve um enorme desgosto, e o funeral foi um caso nunca visto. O caso tocou o próprio motorista, que dias depois lhe trouxe um cãozito novo. E as lágrimas acabaram por passar.