quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Era uma vez...

Era uma vez uma família muito pobre. Vivia numa aldeia em que as noites eram escuras, e mais longas ainda quando a fome se punha a cantar nas barrigas, antes de chegar a manhã.

Certa noite, num serão de pão escasso, lembrou-se o pai de contar uma história. E vai ele, que bom seria, mulher, termos dinheiro para comprar uma cabra. Havíamos de levá-la à vez a pastar pelos caminhos, para ela encher a barriga dos botões de silvas bravas, quando o sol, na primavera, constrói jardins nas paredes. E quando anoite chegasse, e a cabra voltasse a casa, íamos colher-lhe o leite, e as noites seriam longas, e a família cresceria, já viste mais alegria. Mas eu não gosto de leite, tornou o filho mais novo. E quando o outono chegar, e as silvas ficarem duras, subo ao freixo do valado, e domais dourado ramo se há-de fartar nosso gado, disse o outro, confiado. Mas eu não gosto de leite, insistiu o desgraçado.

Numa breve conclusão, perde o pai o seu vagar, e ali mesmo obriga o revel e obstinado filho a engolir duas grandes tigelas de leite na companhia dos irmãos, que assim dormiram toda a santa noite, de barriguinha calada.

É claro que tudo isto aconteceu num tempo muito antigo, enquanto havia milagres e cabras que davam leite.

quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Sinais

Não tenho lembrança de alguma vez ter visto tão baixo o nível de água da barragem. Dela se alimentam a vila inteira e as aldeias todas do município. Por este andar, lá tem que voltar a malta toda a encher a cantarinha na fonte de mergulho.

sexta-feira, 12 de novembro de 2021

Sinais

Na aldeia terminou a campanha das castanhas. Há cinquenta anos saíam daí comboios delas, vinham ranchos de mulheres de longe para as apanhar. Os soitos cobriam toda a encosta e as árvores duravam séculos. Aos poucos foram morrendo, da tinta, do cancro americano, da nova vespa das galhas. Os ouriços já nem abrem ao toque do martelo de madeira, que perdeu utilidade. Recolhem-se em grandes  baldes, passam-se num moinho tocado a tractor, quem o tiver. Escolhem-se os frutos e devolvem-se ao campo os ouriços vazios. Uma trabalheira.

As castanhas já não têm a qualidade antiga, depressa criam bicho. E quem planta castanheiros novos logo vê secar metade. Um jogo de cabra-cega, uma tramoia. Tudo sinais dum mundo que já foi.

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Famas boas

A dona Belisanda tinha a dimensão duma catedral gótica, o próprio nome o dizia. Numa sala duma casa da aldeia albergava cinquenta ganapos, da primeira à quarta classe. Cuidava-lhes da higiene física e da limpeza mental. E não hesitava em mandar um infractor lavar os pés no ribeiro que passava próximo. 

Ainda hoje não entendo como ela fazia aquilo. Primeiro dava a aula da primeira classe. Depois era a da segunda. Por fim lá chegavam os da terceira e da quarta. E mantinha tudo em ordem.

Numa pequena horta, à entrada, havia um damasqueiro. E não há notícia de que alguma vez um ratoneiro tivesse metido a mão à fruta. Lá atrás, no cabanal, alguns perús grasnavam de horas em quando. Mas quem cuidava deles era a criada, a Maria, que os calava com urtigas cozidas. Muitas vezes eu lhas trouxe, que havia muitas lá no quintal, debaixo da nogueira grande.

Um dia, pelo Natal, ia eu na quarta classe, a mestra claudicou. Adoeceu de surpresa. E a ganapada viu nisso uma prenda de Natal. Temendo, porém, uma baixa demorada, e o atraso de um anito, os meus pais resolveram conversar com a professora da Torre, ali a três quilómetros. E ela aceitou receber-me. De formas que eu ia todos os dias, pela estrada velha, de sacola ao ombro, e uma cabacinha com refresco de café, que a minha mãe me dava sempre de presente.

Nesse tempo os castanheiros do Vale Azedo ainda não tinham morrido. E eu lá ia, todo contente na sua companhia, metendo o nariz em todo o lado. Um dia descobri, debaixo dum silvado, um ninho de perdiz com uma catrefada de ovos. E passei a visitá-lo todas as manhãs. Até que alguém armou um laço com pelo de cavalo, no corredor da entrada. A perdiz enjeitou o ninho, e os ovos lá ficaram. 

Os meus novos colegas, vendo-me de cabacinha, cuidaram que era vinho. E passaram a olhar-me como um homem. Mas um dia, algum mais aventureiro achou-me distraído e foi-me ao vinho. Não faltou nada para uma risada. E assim se desfizeram as minhas boas famas.

sábado, 11 de setembro de 2021

Caloteiro

 Acabo de reler o romance Ernestina, de José Rentes de Carvalho. Uma edição de há muito (Março 2001) da falecida editora Escritor, cujo número 439 o autor me presenteou em momento oportuno.

Estou-lhe em dívida dupla, que não sei como remir:

- a um lado, pelo prazer desta leitura;

- a outro lado, porque em tempos que lá vão, o José me deu a confiança de convencer um seu amigo a levar-nos ao Cabeço, num jipe que ele tinha.

Tenho que ficar inadimplente, caro José. Se não caloteiro.

sexta-feira, 10 de setembro de 2021

Nem mais!

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terça-feira, 7 de setembro de 2021

Brasis

 Na estrada a tabuleta anuncia o Solar dos Brasis, na aldeia chamam-lhe a casa das fidalgas. Seja ele como for é um insólito lugar. E este viajante já por aqui andou alguma vez, atraído pela gala das talhas, pela febre das cores a gritar nas madeiras, pelo mistério simétrico das janelas, a fingir horizontes pintados nas paredes. 

O viajante empurra um portão carcomido. Mas não encontra o Gastão, sentado atrás da bancada, a fazer bonecos de madeira a canivete, e flautas de cana para vender aos turistas. O anexo do solar está fechado, a cumeeira mestra já ruiu, e quem recebe o viajante é uma assistente que anda por ali, de mau feitio e pior catadura. Logo lhe dispara a novidade da morte do feitor.

Antigamente o Gastão habitava estes anexos e olhava pelo conjunto. Ele era neste lugar a única coisa viva, e queixava-se do IPPAR, e das águas no telhado, dos roubos das imagens e da segurança escassa. Mostrava ao viajante as palmeiras do jardim, as japoneiras em flor quando era o tempo, levava-o à mãe-de-água de pedra à beira do ribeiro, nas terras que um fidalgo arrematou ao fisco, à vinda do Brasil, há muitos anos atrás. Tinham sido confiscadas a um marrano qualquer pela Santa Inquisição.

Subia depois ao belvedere, virado às doçuras do poente, e mostrava o salão de honra nos altos do torreão. Era um deslumbramento inusitado, olhava o viajante a paisagem lá fora e não acreditava no que estava ali, à frente dos seus olhos. O tecto era um céu de caixotões pintados, com o brasão do fidalgo no lugar central. O resto em volta eram painéis de santos e naturezas mortas. E tão mortos estavam, as naturezas e os santos, que uns prometiam a ruína e as outras já desabavam, comidas da humidade. O todo apoiava-se, nos cantos, em anjos-cariátides, empenachados como índios do Brasil.

Finalmente o Gastão conduzia à capela um viajante estonteado, cativo do esplendor dos ouros, do jogo das simetrias barrocas, dos exotismos da flora mineira, com crocodilos, e palmeiras, e coqueiros. A Senhora da Penha de França lá estava em apoteose, entre prodígios de arte e opulência, cercada de querubins, envolta em festões e grinaldas. À direita uma porta a fingir, reflectindo a entrada verdadeira na parede da esquerda. E em cima, à esquerda, uma janela pintada, a espelhar a verdadeira, que à direita abria para a ruela.

Depois contava ao viajante a história do fidalgo, que ali se mostrava em dois retratos de tamanho natural. Dum lado o escralate da labita cortesã, do outro o hábito escuro das ordens que tomou, já sexagenário. Luís de Figueiredo Monterroyo foi-se ao Brasil, ao ouro, no tempo dele. Era capitão da armada real e provedor dos quintos de el-rei em Vila Rica de Ouro Preto, nas minas de Sabará. E à desmedida fortuna acumulava uma filha, a mulatinha Angélica, que fez numa escrava da Mina por quem tomou paixões. "Mercê que fez Nossa Senhora, no Instituidor, vendo-se em perigo de morte no sertão do Brasil, em jornada de 900 léguas às Minas do Ouro". E o Gastão mostrava, num ex-voto, um dragão pintalgado, a soprar fogo ao fidalgo em terror. "Milagre que fez Nosso Senhor... no mar da Baía...". E era um barco a adornar, a vela já perdida, o fidalgo no convés a amparar a mulatinha. 

Ao ver-se em aflições, implorou D. Luís a protecção da Santa, jurou construir-lhe uma capela que não tivesse igual. Em 1727 cumpriu-se o voto aqui, ao lado dum solar que ninguém concluiu, e dum convento franciscano que não chegou a existir. Onde o meu cavalo parar, aí o santuário hei-de levantar. O cavalo é que escolheu este lugar, concluía o Gastão, antes de mostrar ao viajante, num livro dum letrado, que a mulatinha se finou solteira, sem deixar descendência, no ano em que assaltaram a Bastilha. E que o Solar dos Brasis é testemunho da boa aplicação em Portugal do ouro de Sabará.

Agora o Gastão foi-se embora e com ele a sorte deste viajante, que se limita a uma ronda exterior do Solar dos Brasis. O IPPAR pôs-lhe um telhado novo, e trancou as portas e as janelas com grades de ferro chumbadas na ombreira.

Ao contrário do letrado, o viajante só vê neste lugar um tempo triste da história, que  deixou aqui um túmulo, mais um, onde embalsamaram Portugal. Chegavam rios de ouro nos porões, a um país sangrado pelo império. E acabavam aqui, neste espavento, sem deixar outro sinal nas vidas. Mas este viajante nunca o disse ao Gastão, e ele foi-se embora sem saber a verdade. Ao menos foi em paz.

segunda-feira, 23 de agosto de 2021

Dia 9

O bartolomeu não sabe explicar por que tomou a decisão de subir ao chiado, naquele dia à tarde. Certo está apenas de já não guardar esperanças no peito, à medida que ia subindo a rua nova do almada. Dormia há três meses nas arcadas do ministério das finanças, encostado a um pilar que os pombos ainda respeitavam. Esmolava no sul e sueste, quotidianamente posto em  risco pelas avalanches de pernas que desaguavam de cacilhas, e aventurava-se a um almoço na económica dos anjos, quando as forças lhe deixavam subir a avenida, o que era raro. Nesse dia trepou ao chiado como quem vai de férias.

Olhai as aves do céu, que não semeiam nem colhem! - Soletrou o cartaz pendur ado ao cimo das escadas da igreja dos mártires, que no íntimo sentiu como sua, porém sem cogitar o milagre que ali estava à espera. Atravessou o guarda-vento, tacteou ao longo da parede e lançou os dedos à pia de água benta, num gesto que desenterrou duma memória antiga. E foi quando a mão direita lhe transitava, canhestra, entre o pai e o espírito santo, que os olhos se afizeram à obscuridade e decifraram o peixe picotado no lioz da coluna, mesmo por cima do tanque.

 Pouco dado a leituras cabalísticas, o bartolomeu ficou surpreendido. Mas logo saltou da surpresa para o espanto, quando viu o peixe desprender-se da pedra e mergulhar na água benta, num encarpado perfeito.

Arqueou as sobrancelhas, roçou um punho nos olhos, não queria acreditar. Procurou assento num dos bancos corridos e ali ficou, de queixo nas mãos, enquanto a fresca atmosfera da nave central lhe assentava lentamente na cumeada dos ombros. À saída foi espreitar a concha da água benta. O pequeno dorso do peixe evolucionava lá dentro, a lavrar, cuidadoso, as lodagens do fundo.

Oito dias depois regressou à igreja, e lá encontrou o vulto escuro a remexer as águas. Mas o que via agora eram dois palmos de lombada sólida e carnuda, de barbatana inchada, abrindo as guelras ávidas ao maná da água benta. Logo ali capturou o robalo a mãos ambas, fê-lo desaparecer no bolso e foi tratar do jantar.

No dia seguinte foi à igreja de são roque e saiu-lhe uma carpa enorme. Na sé teve direito a salmão. Nos jerónimos ia-se empanturrando de besugos, de linguados, de azevias. O bartolomeu tem o futuro assegurado. Levará muitos anos a percorrer as pias de água benta de lisboa. Depois há-de vir o porto, santarém, a idolátrica braga... E o bartolomeu olhará, sem cobiça, os pássaros do céu, enquanto for correndo as capelas do minho, à espera duma lampreia.

|O Mensário do Corvo]

sexta-feira, 20 de agosto de 2021

Burro

 

Jumento queixoso por ter ido à Caparica de óculos escuros e máscara no focinho.

quarta-feira, 18 de agosto de 2021

Feira de Agosto

 Há um sobressalto na paisagem. Do céu fugiu a cor. A brisa bate à porta. Vem entrando Saturno, o melancólico.

terça-feira, 10 de agosto de 2021

Pardais ao ninho!

 Um alferes artilheiro numa base aérea não trazia vantagem que se visse. Mas este era apreciador de música e estava atento às notícias. E assim eu soube que, no domingo, a Olga Prats e o Pizzamillo davam em Carmona um recital.

O que faria um jeitão era o comandante da esquadra dispensar-me um Auster. Muito mais fácil do que fazer de jipe cinquenta quilómetros para lá e outros tantos para cá. É certo que a passarola não tinha sequer o painel iluminado, quanto mais ser capaz de fazer voo nocturno. Mas porém... E eu lá fui, depois do almoço. 

As coisas correram bem, com ganhos múltiplos. Porém, sendo tão cedo, resolvi eu fazer uma visita a uma cinturinha de vespa que conhecia na cidade. E assim o resto da tarde se escoou num ai.

Quando dei por mim caía a noite. Despedi-me à francesa, corri a apanhar um táxi e fui para o aeroporto. Meti-me na passarola, dispensei procedimentos, rolei para a pista e descolei de seguida. Durante a subida, ainda acendi o isqueiro para ver a pressão do óleo. À minha volta era tudo escuridão.

A minha referência principal eram as luzes dum carro ou outro, lá em baixo, na estrada. E eu lá fui, sempre a subir, confiando que o motor fizesse a sua parte. A certa altura comecei a ouvir no rádio chamadas insistentes da torre de controlo do Negage. Eu respondi, com um tempo estimado em rota muito escasso, para acalmar o pessoal.

Às tantas lá vi ao longe uma pista iluminada e pude respirar fundo. Afinal a passarola não fazia voo nocturno mas era o tanas! Benzi-me, falei para a torre e fiz aproximação directa.

O mecânico orientou-me na placa, tinha um ar preocupado. E eu corri para a esquadra, onde o chefe me aguardava. Não me restava outra coisa que não fosse pôr o cachaço no cepo.

Foi assim que o desarmei. E lá fomos todos, cada um à sua vida. Ao ninho. 

terça-feira, 22 de junho de 2021

Acto Primeiro

Já o pai era um cabeça de vento. Um dia achou maneira de ir para a África e foi parar a Benguela. Lá ficou. E a mãe, que era tecedeira, fraca conta poderia dar dos filhos. Foi por isso que ele, ainda cachopo, foi servir de pastor no Frontelheiro.

A patroa aviava-lhe a merenda numa meia das dela. Até que ele se fartou daquela vida e pensou voltar a casa.

Sempre a pé, por trilhos mal conhecidos, levou três dias para chegar à aldeia. Isto antes de alguém o levar para Matosinhos a servir de marçano. Nunca mais lhe saiu da cabeça essa experiência. Mas isso é o acto seguinte.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Boqueira

As vitaminas da alimentação, miserável e monótona, eram escassas. Imagine-se a desgraça da higiene. De forma que as mães, coitadas, acorriam ao pátio com os crianços ao colo, os cantos da boca em ferida. Tinham boqueira.

Ela trazia numa tijela uma mistura de sal e algumas ervas. Aplicava a mezinha com um trapo húmido na face do cachopo, enquanto murmurava uma prece misteriosa. E era remédio santo, ou um milagre.

terça-feira, 13 de abril de 2021

Ao menino e ao borracho...

Em Fevereiro de 1976 atravessei a ribeira dos Tourões e passei a salto a fronteira na Alta Rasa. Tinham-me prometido dez anos de exílio. Mas em Fevereiro de 78 já se tornara claro que, a haver um julgamento do 25 de Novembro, as regras normais seriam tidas em conta. Ora assim sendo havia que regressar. Porque a guerra era aqui e não lá fora.

E eu não tive qualquer dúvida. Mas também não tinha um passaporte válido, nem era lógico pedi-lo em Berlim. E lá se decidiu que o lugar adequado era o Maputo. Havia que ir até lá, depois de apanhar em Moscovo o voo da Aeroflot que dava a volta a meio mundo.

Nessa época eu tinha problemas com as amígdalas. E surgiam com frequência umas crises danadas, que me exigiam pesados antibióticos injectáveis. Dois ou três dias antes da partida... lá estava mais uma delas.

Preocupado fui ao hospital, onde uma Frau Doktor já madura me ouviu sem se condoer. Ficou-se por umas pastilhitas de chupar!

Era inverno. E eu vesti o sobretudo, apanhei o voo para Moscovo, passei umas horas numa sala de trânsito, e à noitinha parti no avião russo.

A infecçãozita fazia o seu caminho. E eu deixei de conseguir engolir, perante o espanto da hospedeira russa a quem recusei sempre as laranjas e outras vitualhas. A meio da noite aterrámos no Cairo, que se estendia lá em baixo num mar de luzes e noutro de mistérios. Milenares. Pouco depois descolámos, rumo à noite. E quando a manhã rompia achámo-nos em Aden, à entrada do Mar Vermelho.

Aí pudemos sair e estender as pernas. Lembro-me do sol macio, duns indígenas que andavam por ali, mas nenhum deles me pareceu ser o fantasma do Afonso de Albuquerque. Verdadeiro só o leme de direcção dum Mig russo, emboscado atrás das dunas. E ao longe, no horizonte, via-se um monte escuro, que bem ou mal me fez lembrar a Canção do Camões. Junto dum seco, fero e estéril monte...

A etapa seguinte seria Mogadiscio, onde as coisas não deviam andar muito católicas com os etíopes. Ninguém saiu, e a hospedeira russa encostou-se a um tabique, silenciosa, enquanto uma agente local entrou com ar de poucos amigos. Percorreu lentamente a coxia, viu o que havia que ver e pôs-se a andar.

Foi sem demora que nos fomos dali, rumo a Dar-es-Salam, e quando lá chegámos era Verão. Despi o sobretudo, desembarquei, e fiz uma bela passeata lá num parque, com hibiscos, trepadeiras e palmeiras. A fome nem a sentia, que tinha mais que fazer.

Restava um último salto até Maputo. Mas quando quis sair do aeroporto vi-me proibido de o fazer. E com imensa razão, já que não trazia qualquer visto de entrada. Sentei-me lá num banco, livrei-me do sobretudo e deixei-me desabar. As dores na garganta pareceram aumentar, e a cabeça entrou-me em roda livre, à espera duma saída. Até que ela chegou. Pedi ao hospedeiro o favor de telefonar para a embaixada alemã. E de lá chegou um funcionário que me safou da embrulhada.

O homem deixou-me num hotel surpreendente, que era redondo e moderno e se chamava girassol. Ora eu nunca estivera no Maputo, o que conhecera a palmo fora Angola e a Guiné. Não conhecia nada da cidade, nem das surpresas que ela me guardava. Logo que fiquei sozinho vim à rua e pus-me a andar à toa, alguma farmácia havia de encontrar. E encontrei-a. Atendeu-me um farmacêutico branco, de bata imaculada, a quem contei a história. A quem pedi que me vendesse sem receita o antibiótico de nome já esquecido.

Caiu-me o queixo de espanto quando o homem foi lá dentro e voltou com as pílulas na mão. Ao menino e ao borracho... e era mesmo verdade! Voltei para casa, contente como é de imaginar, e de caminho encontrei um vendedor a quem comprei um enorme abacaxi.

Levei para o quarto um prato e uma faca, que me dariam um jeitão. E deitei-me muito cedo, em vista das circunstâncias. 

Depois é que foram elas. Passei a noitada em claro, já se vê. As amígdalas estavam mais que maduras, e quando engoli as pílulas foi efeito fulminante. Passei toda a madrugada a escarrar num cinzeiro umas matérias castanhas, ensanguentadas e podres, que me faziam lembrar nem sei o quê. 

De manhã dei-me conta de estar novo. As dores desapareceram e finalmente a fome pôs-se a gritar. Fui-me ao abacaxi, comi-o todo.

Restava-me procurar o consulado, que encontrei na avenida Mao-tse-Tung, e pedir um  passaporte. Atendeu-me uma mulher que estava grávida, e me pediu uma certidão de nascimento de narrativa completa. Voltei lá quinze dias depois, com a certidão na mão. E nesse mesmo dia a mulher que estava grávida entregou-me o documento.

Confesso que fiquei emocionado, até lhe beijei a mão. Depois fui marcar o avião da TAP, que me traria a Lisboa. Informei o Conselho da Revolução da chegada à capital. E lá tinha à minha espera um senhor que era major, e me entregou em Caxias. Estive lá, se tanto, quinze dias. Fui presente a um juiz que me mandou aguardar o julgamento. Em casa.

Ora casa era coisa que eu não tinha. E o julgamento também nunca aconteceu. A história é que deixou de ser a mesma, com a ressalva de sempre. Ao menino e ao borracho...