O sr. Dias Loureiro, que já foi, no cavaquismo, um pau para toda a colher, foi constituído arguido pelo Ministério Público pelos crimes de burla agravada, falsificação de documento, fraude fiscal e branqueamento de capitais, no âmbito do processo SLN/BPN.
Recentemente foi alvo de um mandato de buscas domiciliárias. Veio uma equipa de investigadores, veio um juiz de instrução conforme as leis determinam, veio mesmo um representante da Ordem dos Advogados. E o semanário SOL, que não foi chamado à diligência, veio depois titular que foram descobertos em porta oculta, documentos relevantes para o processo.
Quais sejam tais documentos não é dito nem faz falta, que à opinião pública não competirá julgar. Quaisquer dados da investigação deverão estar reservados na mão que deles carece, para desempenhar a sua função de forma justa e não condicionada. Do que o país precisa, isso sim, é que a justiça faça o que tem a fazer, com eficácia e prontidão.
A pergunta inevitável é a seguinte: dando como certo que o SOL ainda não trabalha com bruxos nem adivinhos, donde veio a dica para o jornal? Do arguido é provável que não tenha sido. Então só pode vir dos agentes envolvidos: dos investigadores, do juiz de instrução, ou do representante da O.A.
E a quem poderá servir a fuga de informação?
Servirá ela o arguido? Não sabemos nem parece, mas impossível não é!
Serve a investigação? É claríssimo que não!
Serve a justiça? Não serve, só pode prejudicá-la!
Serve algum dos seus agentes? É mais que certo, mas quem poderá jurá-lo a pés juntos!
Serve o jornal e os seus accionistas? Obviamente que sim, porque lhes vende o papel!
Serve o leitor e o país? Serve a consciência, o esclarecimento e a sanidade mental dos portugueses? Nem de perto nem de longe!
De forma que só uma conclusão é ajustada. Tudo isto é uma mixórdia pantanosa em que chafurdam interesses de escroques, em prejuízo da justiça e do país. O seu único objectivo é distrair o pagode, lançar cortinas de fumo, perturbar o exercício da justiça e deixar que a lixívia do tempo faça o resto. É a Santa Aliança conhecida entre arguidos poderosos, agentes mafiosos da justiça e jornalistas que não merecem o nome. A máfias dessas não há país que resista. Muito menos Portugal, que de país só já utiliza o nome.
segunda-feira, 31 de agosto de 2009
segunda-feira, 24 de agosto de 2009
Cuidado com a besta!
Além de ser um homem das arábias, o avô Germano era perdido por caça. Não juro agora que respeitasse o defeso. Mas nesse tempo havia bicharada, não era o que hoje se vê. Saía um homem de casa de escopeta em bandoleira, e logo duas lebres lhe saltavam ao caminho, a ensaiar uma quadrilha. E era assim que avô Germano, quando lhe dava na gana, pegava no bacamarte, prendia à cintura o polvorinho, e ala para a serrania.
Quando cheirava a Outono, logo ao dia da abertura, lá estava a malta do Porto. E durante um par de dias, monte cá, monte lá, não havia brejo que escapasse à fuzilada. Traziam grandes matilhas, e usavam carabinas que cuspiam cinco tiros. Um dia à noite partiam, com rosários de perdizes a pendular nas janelas das carripanas escuras. M'amigo, desta maneira, qualquer um bota figura!
Um dia o avô Germano resolveu tentar-lhes o exemplo. E na escopeta, que atulhava pela boca, despejou cinco vezes a colher do polvorinho. Atacou as estopas com cuidado, multiplicou por cinco os bagos da chumbada, esmerou-se na bucha de cobertura. E emboscou-se à beira do ribeiro.
Quando enfim deu ao gatilho foi ali o fim do mundo. Um relâmpago fatal entrou-lhe pelos ouvidos, e o coice foi de tal ordem que o avô Germano foi aterrar de costas a dez metros de lonjura.
Com tamanho estardalhaço, lá foram dar com ele por baixo dumas giestas, mal dava acordo de si. Porém, ao dar-se conta da aflição dos camaradas, avisou:
- Cuidado com a besta, que ainda tem quatro lá dentro!
E aos poucos voltou a pôr-se de pé.
Quando cheirava a Outono, logo ao dia da abertura, lá estava a malta do Porto. E durante um par de dias, monte cá, monte lá, não havia brejo que escapasse à fuzilada. Traziam grandes matilhas, e usavam carabinas que cuspiam cinco tiros. Um dia à noite partiam, com rosários de perdizes a pendular nas janelas das carripanas escuras. M'amigo, desta maneira, qualquer um bota figura!
Um dia o avô Germano resolveu tentar-lhes o exemplo. E na escopeta, que atulhava pela boca, despejou cinco vezes a colher do polvorinho. Atacou as estopas com cuidado, multiplicou por cinco os bagos da chumbada, esmerou-se na bucha de cobertura. E emboscou-se à beira do ribeiro.
Quando enfim deu ao gatilho foi ali o fim do mundo. Um relâmpago fatal entrou-lhe pelos ouvidos, e o coice foi de tal ordem que o avô Germano foi aterrar de costas a dez metros de lonjura.
Com tamanho estardalhaço, lá foram dar com ele por baixo dumas giestas, mal dava acordo de si. Porém, ao dar-se conta da aflição dos camaradas, avisou:
- Cuidado com a besta, que ainda tem quatro lá dentro!
E aos poucos voltou a pôr-se de pé.
sexta-feira, 21 de agosto de 2009
Portugalmente (51)
(...)
A rua do mesmo conde, que um dia se tornou republicano, leva o viajante para fora das muralhas, num lanço que desapareceu. As pedras não foram longe, se com elas se fizeram umas casas que além estão, e as paredes que as circundam, e uns merlões que as enfeitam, debaixo duns arvoredos. De uma torre das portas do Carvalho construíram esta praça, que pede restauro urgente. E o viajante conclui que são antigas as guerras do património, e mais ainda as rapinas. Lá ao fundo, sobre a esquerda, vêem-se as Portas de El-Rei. Daqui até lá não há muralhas há muito.
Pela sombra duns freixos velhos, o viajante chega ao rossio da feira. Assim cercado de tapumes de lata, é um lugar indescritível. E anda nele uma pequena multidão, na azáfama das montagens. O viajante é que já lá vai, mais interessado em chegar ao Alto dos Frades, e às frescuras do parque municipal.
Em tempos houve aqui um convento franciscano, hoje apenas resta dele o nome do lugar, o corpo desta igreja e uma torre sineira. E a câmara municipal, num momento de boa inspiração, aproveitou os fundos europeus e construiu aqui um centro cultural. Do corpo maior da igreja fez um auditório, que um dia há-de vir a ser teatro municipal. E ao lado construiu um de raiz, onde se pode ver cinema. Conquanto sejam recentes, os filmes do cartaz não agradam ao viajante. São fitas de aventuras explosivas, de efeitos mirabolantes, contam guerras de galáxias inventadas, para esconder as guerras verdadeiras que nunca faltam no mundo.
Logo ao lado fica a biblioteca, que há muito fazia falta e está aberta a esta hora. No átrio há uma mostra de pintura, de cores quentes a gritar nos painéis, e ao viajante seduzem as harmonias delas. Já o mesmo não dirá dos temas em que o pintor esbanja o seu talento. Tudo são cavernames de naus, e miragens de velas enfunadas, e perfis de heróis do mar, e arcazes de tesouros inventados, e muitas cruzes de Cristo, e mitos a surgir dos nevoeiros. O viajante leva consigo a harmonia destas cores e deixa atrás os destroços ao cuidado das marés, que é o seu destino natural.
A moderna sala de leitura tem ligações à Internet. E de bibliotecárias está ela bem servida, que são simpáticas e muito numerosas, e ouvem música moderna para se distraírem. As lombadas dos livros ressonam nas estantes, por faltar quem as acorde. Mas este viajante não vive fora do mundo. Dá-se por muito contente com estas instalações, que são funcionais e discretas, e não suscitam reparos estéticos. E os livros a ressonar, as belas adormecidas da história que aqui se conta, algum príncipe há-de vir para os acordar um dia.
Cá fora o largo fronteiro é agradável de ver, só lhe falta o arvoredo que já teve. Sobrou algum freixo antigo, dos que fizeram as glórias deste campo. Porém dos cedros do Líbano encostados à capela não resta nem um sinal. Parece que também chegou aqui a conspiração da pedra, que tomou conta do mundo, o largo tem pedra a mais. Não sabe este viajante, ou andará esquecido, de que mais mandam no mundo os interesses que as paisagens.
Empurrado pelo calor, fugiu para a fresca do parque, bastou-lhe cruzar a estrada. Com a prisão que tem por árvores, veio-lhe mesmo a calhar. O parque não é exemplo de bom gosto, nem espelho de cuidados, nem parece ser objecto de paixões desenfreadas. Não é caso de admirar. O viajante deixa-se levar pelas ruelas de saibro, de cabeça no ar, pelas várias naves desta catedral pagã. São altíssimas as copas, sempre a disputar o sol, que não pode esta faia chegar-se àquela tília, ó vizinha dê-me lume. Lá tem a natureza as suas regras, assim as cumprissem todos.
O viajante leu os seus roteiros, mas eles pouco dizem do tesouro que aqui está. Foi pedir informações e algumas encontrou. Em tempos mais antigos era aqui um viveiro das estradas, e todo o vilão que manejasse enxada havia de plantar três árvores por ano, sob pena de multa. As carreteiras de então eram lentas e molestas, a circundar esses montes à torreira do verão. Não havia mais refrigério, para andarilhos e alimárias, que bordejá-las de sombras. Ainda hoje um tal cuidado é cativante. Mas não explica donde vieram estas faias, e os vários tipos de cedros, e os bordos da Noruega, e os castanheiros da Índia, e as tuias americanas, e os variados carvalhos, e os teixos, e os mostajeiros, e as sequóias wellingtónias, e os múltiplos abetos, pinheiros bravos e mansos, e freixos, e azinheiras, e plátanos, e robínias, e os loureiros, e ulmeiros, castanheiros e sobreiros, e o mais que este viajante não sabe identificar.
Afinal um tal milagre, este, sim, dos verdadeiros, chegou pela mão dum homem, um autarca de há cem anos que ainda serve de exemplo. Bravo do nome que tinha, e mais ainda do génio que o animava, transformou o tal viveiro num parque municipal. O viajante havia de guardá-los na mesma caixa de jóias, o parque e o António Bravo, se soubesse onde ela está. E fica a pedir aos deuses que nenhum aventureiro volte a descobrir a Índia, pois foram troncos assim os mastros reais das caravelas. Gastaram-se oito milhões. Ora a história já mostrou, a quem o quiser saber, que a Índia toda inteira não valeu a majestade deste carvalho alvarinho.
(...)
A rua do mesmo conde, que um dia se tornou republicano, leva o viajante para fora das muralhas, num lanço que desapareceu. As pedras não foram longe, se com elas se fizeram umas casas que além estão, e as paredes que as circundam, e uns merlões que as enfeitam, debaixo duns arvoredos. De uma torre das portas do Carvalho construíram esta praça, que pede restauro urgente. E o viajante conclui que são antigas as guerras do património, e mais ainda as rapinas. Lá ao fundo, sobre a esquerda, vêem-se as Portas de El-Rei. Daqui até lá não há muralhas há muito.
Pela sombra duns freixos velhos, o viajante chega ao rossio da feira. Assim cercado de tapumes de lata, é um lugar indescritível. E anda nele uma pequena multidão, na azáfama das montagens. O viajante é que já lá vai, mais interessado em chegar ao Alto dos Frades, e às frescuras do parque municipal.
Em tempos houve aqui um convento franciscano, hoje apenas resta dele o nome do lugar, o corpo desta igreja e uma torre sineira. E a câmara municipal, num momento de boa inspiração, aproveitou os fundos europeus e construiu aqui um centro cultural. Do corpo maior da igreja fez um auditório, que um dia há-de vir a ser teatro municipal. E ao lado construiu um de raiz, onde se pode ver cinema. Conquanto sejam recentes, os filmes do cartaz não agradam ao viajante. São fitas de aventuras explosivas, de efeitos mirabolantes, contam guerras de galáxias inventadas, para esconder as guerras verdadeiras que nunca faltam no mundo.
Logo ao lado fica a biblioteca, que há muito fazia falta e está aberta a esta hora. No átrio há uma mostra de pintura, de cores quentes a gritar nos painéis, e ao viajante seduzem as harmonias delas. Já o mesmo não dirá dos temas em que o pintor esbanja o seu talento. Tudo são cavernames de naus, e miragens de velas enfunadas, e perfis de heróis do mar, e arcazes de tesouros inventados, e muitas cruzes de Cristo, e mitos a surgir dos nevoeiros. O viajante leva consigo a harmonia destas cores e deixa atrás os destroços ao cuidado das marés, que é o seu destino natural.
A moderna sala de leitura tem ligações à Internet. E de bibliotecárias está ela bem servida, que são simpáticas e muito numerosas, e ouvem música moderna para se distraírem. As lombadas dos livros ressonam nas estantes, por faltar quem as acorde. Mas este viajante não vive fora do mundo. Dá-se por muito contente com estas instalações, que são funcionais e discretas, e não suscitam reparos estéticos. E os livros a ressonar, as belas adormecidas da história que aqui se conta, algum príncipe há-de vir para os acordar um dia.
Cá fora o largo fronteiro é agradável de ver, só lhe falta o arvoredo que já teve. Sobrou algum freixo antigo, dos que fizeram as glórias deste campo. Porém dos cedros do Líbano encostados à capela não resta nem um sinal. Parece que também chegou aqui a conspiração da pedra, que tomou conta do mundo, o largo tem pedra a mais. Não sabe este viajante, ou andará esquecido, de que mais mandam no mundo os interesses que as paisagens.
Empurrado pelo calor, fugiu para a fresca do parque, bastou-lhe cruzar a estrada. Com a prisão que tem por árvores, veio-lhe mesmo a calhar. O parque não é exemplo de bom gosto, nem espelho de cuidados, nem parece ser objecto de paixões desenfreadas. Não é caso de admirar. O viajante deixa-se levar pelas ruelas de saibro, de cabeça no ar, pelas várias naves desta catedral pagã. São altíssimas as copas, sempre a disputar o sol, que não pode esta faia chegar-se àquela tília, ó vizinha dê-me lume. Lá tem a natureza as suas regras, assim as cumprissem todos.
O viajante leu os seus roteiros, mas eles pouco dizem do tesouro que aqui está. Foi pedir informações e algumas encontrou. Em tempos mais antigos era aqui um viveiro das estradas, e todo o vilão que manejasse enxada havia de plantar três árvores por ano, sob pena de multa. As carreteiras de então eram lentas e molestas, a circundar esses montes à torreira do verão. Não havia mais refrigério, para andarilhos e alimárias, que bordejá-las de sombras. Ainda hoje um tal cuidado é cativante. Mas não explica donde vieram estas faias, e os vários tipos de cedros, e os bordos da Noruega, e os castanheiros da Índia, e as tuias americanas, e os variados carvalhos, e os teixos, e os mostajeiros, e as sequóias wellingtónias, e os múltiplos abetos, pinheiros bravos e mansos, e freixos, e azinheiras, e plátanos, e robínias, e os loureiros, e ulmeiros, castanheiros e sobreiros, e o mais que este viajante não sabe identificar.
Afinal um tal milagre, este, sim, dos verdadeiros, chegou pela mão dum homem, um autarca de há cem anos que ainda serve de exemplo. Bravo do nome que tinha, e mais ainda do génio que o animava, transformou o tal viveiro num parque municipal. O viajante havia de guardá-los na mesma caixa de jóias, o parque e o António Bravo, se soubesse onde ela está. E fica a pedir aos deuses que nenhum aventureiro volte a descobrir a Índia, pois foram troncos assim os mastros reais das caravelas. Gastaram-se oito milhões. Ora a história já mostrou, a quem o quiser saber, que a Índia toda inteira não valeu a majestade deste carvalho alvarinho.
(...)
quinta-feira, 20 de agosto de 2009
Almendra
No tempo do Eça, passaram por aqui Jacinto e Zé Fernandes.
Vinham da cidade às serras, de Paris a Tormes.
Hoje só vêm aqui visitantes nostálgicos e ladrões de carris.
Muitos deles são agora travejamentos de vivendas patuscas.
Na década de 80, cem anos depois do Eça, chegou a saloiada cavaquista e uns quantos primos bastardos. Fecharam o comboio de Barca de Alva em favor da rodovia, porque isso é que era o pugresso.
Agora ouvem-se dizer que seria vantajoso recuperar a linha.
Mas Portugal é que já não recupera, nas mãos desta canalha.
Filhos da terra
Filhos da terra há muitos neste mundo, são mais os filhos da terra que as mães deles. Napoleão foi um filho da sua terra, e bem pequenos eram, uma e outro. O próprio Al Capone o terá sido, embora não saibamos bem qual era a mãe.
A maior parte dos filhos da terra dão em benfeitores das mães. Antigamente inauguravam fontanários, hoje em dia financiam paragens de autocarro, onde os cachorros vadios urinam a recato. E além da generosidade benemérita, o que nos filhos da terra mais espanta é o currículo das acções. Uns distinguem-se pelo mais, outros pelo menos. Estes por aquilo que fizeram, aqueles pelo que deixaram de fazer. E todos eles nasceram gente pobre. Os ricos nunca são filhos da terra, por serem normalmente os donos dela. Um dia sobem na vida, enriqueceram, umas vezes as mães entendem como, e outras não. Mas o orgulho das mães dos filhos da terra nunca diminui por isso. É sempre respeitoso e enlevado.
Os filhos das várias terras conhecem-se uns aos outros, à distância. E dão-se bem entre eles, mesmo quando nada parece ligá-los. Será por faro ínvio. É o caso exemplar de Pereira Dias e o caso notável de Dias Loureiro. Nada os aproximaria, além do vago pormenor da onomástica.
Pereira Dias nasceu numa família exemplar, pois sempre fez o que pôde para não morrer à fome. Possuía uma carroça e um cavalo, vendia miudezas nos mercados, usava a lenha alheia dos pinhais. Quando lhe chegou o tempo, o rapaz foi para a Europa a governar melhor vida. Mas voltou pouco depois. Fez-se empresário de múltiplas empresas, muitas máquinas, terraplenos, estufas de pepinos, cavalos de volteio. Diz-se que tinha ao serviço umas parelhas de mulas, por causa das exigências da agricultura intensiva. Tão fastos lhe eram os ventos, e tão disponível o dinheiro, que nem havia o que fazer com ele. Nas comemorações de aniversário, toda a vereação municipal lhe vinha comer à mão. E às festas íntimas acorria gente grada, pares de indústria, ex-ministros, caso de Dias Loureiro, outro exemplo notável de filho da terra dele.
Cresceu a ver medir chitas, ao comprido duma vara. E quando lhe chegaram os ventos do sucesso foi deputado, ministro, conselheiro da nação, homem de armas, eu sei lá, um dínamo empreendedor. São de então as amizades.
Mas a roda da fortuna é pouco de confiar. E a boa fada, que os reunia ao serão, deu lugar à fada má, que tratou de os separar. Hoje preferiam, um e outro, que não se falasse nisso. Pois aquilo de que já ninguém se lembra dispensa as explicações. E é mesmo por causa disso que aqui se fala do caso.
A maior parte dos filhos da terra dão em benfeitores das mães. Antigamente inauguravam fontanários, hoje em dia financiam paragens de autocarro, onde os cachorros vadios urinam a recato. E além da generosidade benemérita, o que nos filhos da terra mais espanta é o currículo das acções. Uns distinguem-se pelo mais, outros pelo menos. Estes por aquilo que fizeram, aqueles pelo que deixaram de fazer. E todos eles nasceram gente pobre. Os ricos nunca são filhos da terra, por serem normalmente os donos dela. Um dia sobem na vida, enriqueceram, umas vezes as mães entendem como, e outras não. Mas o orgulho das mães dos filhos da terra nunca diminui por isso. É sempre respeitoso e enlevado.
Os filhos das várias terras conhecem-se uns aos outros, à distância. E dão-se bem entre eles, mesmo quando nada parece ligá-los. Será por faro ínvio. É o caso exemplar de Pereira Dias e o caso notável de Dias Loureiro. Nada os aproximaria, além do vago pormenor da onomástica.
Pereira Dias nasceu numa família exemplar, pois sempre fez o que pôde para não morrer à fome. Possuía uma carroça e um cavalo, vendia miudezas nos mercados, usava a lenha alheia dos pinhais. Quando lhe chegou o tempo, o rapaz foi para a Europa a governar melhor vida. Mas voltou pouco depois. Fez-se empresário de múltiplas empresas, muitas máquinas, terraplenos, estufas de pepinos, cavalos de volteio. Diz-se que tinha ao serviço umas parelhas de mulas, por causa das exigências da agricultura intensiva. Tão fastos lhe eram os ventos, e tão disponível o dinheiro, que nem havia o que fazer com ele. Nas comemorações de aniversário, toda a vereação municipal lhe vinha comer à mão. E às festas íntimas acorria gente grada, pares de indústria, ex-ministros, caso de Dias Loureiro, outro exemplo notável de filho da terra dele.
Cresceu a ver medir chitas, ao comprido duma vara. E quando lhe chegaram os ventos do sucesso foi deputado, ministro, conselheiro da nação, homem de armas, eu sei lá, um dínamo empreendedor. São de então as amizades.
Mas a roda da fortuna é pouco de confiar. E a boa fada, que os reunia ao serão, deu lugar à fada má, que tratou de os separar. Hoje preferiam, um e outro, que não se falasse nisso. Pois aquilo de que já ninguém se lembra dispensa as explicações. E é mesmo por causa disso que aqui se fala do caso.
sábado, 8 de agosto de 2009
Portugalmente (50)
(...)
Estes campos do irracionalismo, em que o viajante caiu, são-lhe agrestes e penosos. Quase tanto como o sol, que lhe desaba nas costas como um castigo do inferno. O taxista aceita de bom grado uma cerveja onde a houver. E ambos acabam à mesa dum bar, que guarda o nome dum conde, a falar sobre o Bandarra. Um dia destes vai ter um museu na terra, dizem os planos da câmara, acrescenta o taxista. Porque têm, para gastar, dinheiro a mais, insiste o inconformado viajante, que não sabia de nada.
O Bandarra, conforme a alcunha o crismou, pouco mais foi do que um pobre diabo. Andou aos baldões por este mundo e foi jogado por ele. E jogado sobretudo por quem mais se demonstrou seu ferrenho amador. Era uma dessas cabeças atiladas, que às vezes nascem do povo, e vivem aprisionadas numa condição em que não cabem, sem lhe poderem escapar. De espírito aguçado e uma invejável memória, cumpria bem ou mal o seu ofício, lia e relia uma bíblia emprestada, a pontos de lhe saber de cor longas passagens. E do que não sabia tirava analogias, já discorria como grandíssimo teólogo.
Os marranos, que abundavam no seu mundo, eram uma gente em cerco desesperado. Mais que na aflição da miséria, viviam na angústia do transitório, na incerteza dos haveres, na insegurança das vidas. Ecoavam-lhes no peito as promessas do Messias, de que lhes falava O Livro, e não tardaram a buscá-lo nas concordâncias do Bandarra. Visionário como todos os profetas, tinha aquele ar de ovelheiro, a quem Deus é bem capaz de confiar os segredos do mundo. E vinham de longe, a consultas, ouviam-no como a oráculo, alguns o tratavam como rabino dos seus. Tal e qual como faz quem vai à bruxa, hoje em dia.
O viajante não escolhe as palavras, não pode fazer doutra maneira. Mas ao taxista não falha a compreensão, sobretudo ao ouvir falar de bruxas. Não há semana em que lhes não leve carradas de devotos, à procura de milagres.
Em Espanha tinham os judeus vivido transes parecidos. E foi de lá que vieram umas coplas proféticas, duns troveiros visionários, a prometer a salvação pela mão dum príncipe, que chamavam Encoberto. É de crer que foi a partir delas que o Bandarra começou a fazer trovas. Ninguém sabe quem as passou a limpo, andavam por aí copiadas à mão, com letra de cada um. E prometiam aos judeus o Messias, um encoberto que ainda hoje não veio. Ninguém as conheceu no seu original, por todas as versões serem diferentes. E alguma delas foi parar à mão da Inquisição, que não podia tolerar semelhantes despautérios. Chamou o Bandarra a capítulo, vestiu-lhe o sambenito, levou-o à procissão dos condenados. Mas perdoou-lhe a fogueira, por não trazer no rústico semblante qualquer sombra de pecado. O pobre voltou para casa vedado de fazer trovas, de voltar a ler a bíblia ou falar dela. Quem sabe se foi então que acabou a recolher-se na casa do Nogueirão, para se afastar do mundo. Pois tão bem lhe assentou a lição que ninguém mais o ouviu.
Um dia o Bandarra morreu mas ficaram as trovas, que um povo já naufragado só nelas guardava esperança. O rei lunático desaparecera em África e o reino ficara sem cabeça, sujeito ao inimigo de Castela. Só nas trovas havia consolação. Foi por isso que apareceu a primeira edição delas, pela mão dum fidalgo importante. Para dar esperanças ao povo, pôs o Bandarra a dizer que el-rei um dia havia de voltar, saído do nevoeiro.
Mas o rei não apareceu, em seu lugar ficaram os castelhanos. E a clerezia, que metera o sapateiro num inferno por causa dumas trovas, começou a realçá-las nos sermões, e a exaltá-lo nos púlpitos. Fizeram-lhe um mausoléu em pedra lavrada na igreja de S. Pedro, encheram-no de ar e vento. Um dia expuseram-lhe o retrato na catedral de Lisboa, trataram-no como a um santo. E logo um outro fidalgo fez nova edição das trovas, agora acrescentadas de umas outras que se disseram achadas em poder dum tal Pacheco, da idade do sapateiro, há uns cem anos atrás. Desta vez o Bandarra anunciava a restauração dos Braganças.
Um século depois ainda apareciam trovas novas, que uns pedreiros vindos da Galiza foram descobrir na capela-mor da igreja de S. Pedro. E lá punham o Bandarra a adivinhar as guerras do Napoleão, depois de elas terem vindo.
O importante desta história não é o que deixou dito o sapateiro, mas o que na boca lhe puseram os poderosos, para melhor conduzirem o rebanho. Primeiro foi messiânico, depois foi sebastianista, e acabou a adivinhar incertas restaurações. Mas tudo o que o Bandarra fez, e outros fizeram por ele, foram uns versos de sapateiro remendão. Davam para explicar tudo, consoante as aflições. Se ele pudesse imaginar o que iam fazer das trovas, não as contava a ninguém. Ainda hoje enchem barriga a muita gente, pelos vistos vão pô-las num museu. Que Portugal habituaram-no a charadas, e já não vive sem elas.
- Você acredita nessas patranhas? - perguntou, no final, o viajante.
- O mal da gente é o fraco saber! - concedeu o taxista.
- É devagar que o diz! - conclui o viajante, sem outras explicações.
(...)
Estes campos do irracionalismo, em que o viajante caiu, são-lhe agrestes e penosos. Quase tanto como o sol, que lhe desaba nas costas como um castigo do inferno. O taxista aceita de bom grado uma cerveja onde a houver. E ambos acabam à mesa dum bar, que guarda o nome dum conde, a falar sobre o Bandarra. Um dia destes vai ter um museu na terra, dizem os planos da câmara, acrescenta o taxista. Porque têm, para gastar, dinheiro a mais, insiste o inconformado viajante, que não sabia de nada.
O Bandarra, conforme a alcunha o crismou, pouco mais foi do que um pobre diabo. Andou aos baldões por este mundo e foi jogado por ele. E jogado sobretudo por quem mais se demonstrou seu ferrenho amador. Era uma dessas cabeças atiladas, que às vezes nascem do povo, e vivem aprisionadas numa condição em que não cabem, sem lhe poderem escapar. De espírito aguçado e uma invejável memória, cumpria bem ou mal o seu ofício, lia e relia uma bíblia emprestada, a pontos de lhe saber de cor longas passagens. E do que não sabia tirava analogias, já discorria como grandíssimo teólogo.
Os marranos, que abundavam no seu mundo, eram uma gente em cerco desesperado. Mais que na aflição da miséria, viviam na angústia do transitório, na incerteza dos haveres, na insegurança das vidas. Ecoavam-lhes no peito as promessas do Messias, de que lhes falava O Livro, e não tardaram a buscá-lo nas concordâncias do Bandarra. Visionário como todos os profetas, tinha aquele ar de ovelheiro, a quem Deus é bem capaz de confiar os segredos do mundo. E vinham de longe, a consultas, ouviam-no como a oráculo, alguns o tratavam como rabino dos seus. Tal e qual como faz quem vai à bruxa, hoje em dia.
O viajante não escolhe as palavras, não pode fazer doutra maneira. Mas ao taxista não falha a compreensão, sobretudo ao ouvir falar de bruxas. Não há semana em que lhes não leve carradas de devotos, à procura de milagres.
Em Espanha tinham os judeus vivido transes parecidos. E foi de lá que vieram umas coplas proféticas, duns troveiros visionários, a prometer a salvação pela mão dum príncipe, que chamavam Encoberto. É de crer que foi a partir delas que o Bandarra começou a fazer trovas. Ninguém sabe quem as passou a limpo, andavam por aí copiadas à mão, com letra de cada um. E prometiam aos judeus o Messias, um encoberto que ainda hoje não veio. Ninguém as conheceu no seu original, por todas as versões serem diferentes. E alguma delas foi parar à mão da Inquisição, que não podia tolerar semelhantes despautérios. Chamou o Bandarra a capítulo, vestiu-lhe o sambenito, levou-o à procissão dos condenados. Mas perdoou-lhe a fogueira, por não trazer no rústico semblante qualquer sombra de pecado. O pobre voltou para casa vedado de fazer trovas, de voltar a ler a bíblia ou falar dela. Quem sabe se foi então que acabou a recolher-se na casa do Nogueirão, para se afastar do mundo. Pois tão bem lhe assentou a lição que ninguém mais o ouviu.
Um dia o Bandarra morreu mas ficaram as trovas, que um povo já naufragado só nelas guardava esperança. O rei lunático desaparecera em África e o reino ficara sem cabeça, sujeito ao inimigo de Castela. Só nas trovas havia consolação. Foi por isso que apareceu a primeira edição delas, pela mão dum fidalgo importante. Para dar esperanças ao povo, pôs o Bandarra a dizer que el-rei um dia havia de voltar, saído do nevoeiro.
Mas o rei não apareceu, em seu lugar ficaram os castelhanos. E a clerezia, que metera o sapateiro num inferno por causa dumas trovas, começou a realçá-las nos sermões, e a exaltá-lo nos púlpitos. Fizeram-lhe um mausoléu em pedra lavrada na igreja de S. Pedro, encheram-no de ar e vento. Um dia expuseram-lhe o retrato na catedral de Lisboa, trataram-no como a um santo. E logo um outro fidalgo fez nova edição das trovas, agora acrescentadas de umas outras que se disseram achadas em poder dum tal Pacheco, da idade do sapateiro, há uns cem anos atrás. Desta vez o Bandarra anunciava a restauração dos Braganças.
Um século depois ainda apareciam trovas novas, que uns pedreiros vindos da Galiza foram descobrir na capela-mor da igreja de S. Pedro. E lá punham o Bandarra a adivinhar as guerras do Napoleão, depois de elas terem vindo.
O importante desta história não é o que deixou dito o sapateiro, mas o que na boca lhe puseram os poderosos, para melhor conduzirem o rebanho. Primeiro foi messiânico, depois foi sebastianista, e acabou a adivinhar incertas restaurações. Mas tudo o que o Bandarra fez, e outros fizeram por ele, foram uns versos de sapateiro remendão. Davam para explicar tudo, consoante as aflições. Se ele pudesse imaginar o que iam fazer das trovas, não as contava a ninguém. Ainda hoje enchem barriga a muita gente, pelos vistos vão pô-las num museu. Que Portugal habituaram-no a charadas, e já não vive sem elas.
- Você acredita nessas patranhas? - perguntou, no final, o viajante.
- O mal da gente é o fraco saber! - concedeu o taxista.
- É devagar que o diz! - conclui o viajante, sem outras explicações.
(...)
Portugalmente (49)
(...)
O burgo de Trancoso devia estar numa redoma, já o disse o viajante. Para o resguardar do tempo e das distracções dos homens. E ao dizê-lo era da vetusta geometria que falava, da respiração que há nela, dos jogos da pedra antiga, das vidas que ali estão guardadas nas muralhas. Não há no planalto outro lugar assim. Mas o viajante estava a pensar no burgo e não nas pessoas dele, que mais remédio não têm senão obedecer à lei das glórias que passam, tudo tem um fim na vida. Não parece ser o caso desta câmara, cujo comando é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. Com razão se vai dizer que o poder ganhou cama e deitou-se a dormir nela.
Um espírito simplório ou apressado há-de ver nisto um sinal de bom governo, com geral satisfação dos eleitores. Ou que não há em Trancoso alternativa, por ser tão pouca a gente. Ora o viajante há muito que perdeu a ingenuidade, e não é o que tem visto. Quando o poder se sente em casa sua, é como o vilão em casa do sogro. Aperta as rédeas do mando, embaralha e torna a dar no jogo das influências, condiciona os eleitores. Há-de ser o que aqui acontece. A câmara é o maior empregador, em assessorias caprichosas, em burocracias próprias, em mão-de-obra menor. E nos equipamentos colectivos como é a biblioteca, e o centro cultural, e o pavilhão multiusos, e as piscinas municipais, e os espaços da Internet, e a oficina do turismo, para não falar do desporto. Depois vem a Misericórdia, as creches, o lar de idosos, os serviços de apoio ao domicílio. Seguem as empresas municipais e a associação comercial, que remam para o mesmo lado. Nem a escola profissional há-de escapar ao garrote. Num quadro destes, qualquer ideia de serviço público se torna um mito risível. Resta apenas a ideia linear de governar a vida, distribuindo benesses a clientes, como quem reparte um bolo.
Ganha afinal o partido e alguns nele, e quem perde é o país. Isto fica a protestar o viajante. Mas bem pode protestar quem assim canta de galo, que mora longe e veio aqui em romagem. Num tal colete de forças, quem quiser comprar no cemitério uma sepultura perpétua, para guardar um dia os ossos, pedirá duas vezes conselho ao travesseiro antes de se alistar na oposição. Vão dizer que são assim as artes da política, que no final o povo é quem mais ordena, chegando à urna dos votos. Mas este viajante não se dá por convencido.
Fedeiro como é e lhe compete, vai ler o viajante os dizeres duma placa, à esquina do edifício. É uma homenagem aos militares do concelho, que lutaram nas províncias ultramarinas pela continuidade de Portugal e pela integridade da Pátria. Ao viajante deslumbra esta linguagem e já renova a leitura. A ver se Portugal continua afinal, a ver se terá ficado inteira a Pátria. Outra vez leu, e outra vez ficou sem certezas nenhumas. Assim atingido pela bala desta surpresa, termina a conciliar. Em terra onde as trovas abundaram, não fica mal uma nova, mesmo que não seja do Bandarra.
Há-de parecer de propósito, anda-lhe à volta um fulano a esmiuçar a estátua, no jardinzito do largo. Tem a altura do sapateiro, o curioso, e agrada-se da figura, do mais puro filão naturalista. Já reparou na folha de metal, por baixo do maçadoiro.
- Ou foi o céu que baixou, ou a terra levantou! Como é que o homem sabia?
- Você acredita nisso?!
O homem é taxista numa aldeia, não diz que sim nem que não. Olha a forma de sapato que ali está, e o maço de bate-solas, dois símbolos realistas que muito bem compreende. Sobe o olhar pela figura, que saiu agora mesmo dum encontro de salão, os borzeguins num primor, o calção listrado de janota, a golinha do gibão, o chapeirão sobraçado, a aparada cabeleira. Não entende o pergaminho enrolado que a figura tem na mão, e lhe simboliza as trovas. Lê na barra do poial uma legenda: Gonçalo Anes Bandarra, poeta, profeta e sapateiro de Trancoso.
- Sapateiro foi, por certo, e poeta terá sido. Já do profeta, duvido! Você acredita nisso?
- É como quem vai à bruxa, a gente sabe lá! Numa aldeia que é perto da minha, no sítio do Nogueirão, diz-se que até lá viveu!
Em baixo, no rodapé, já escrito ao rés-do-chão, uma frase de Pessoa: Bandarra, símbolo eterno do que o povo pensa de Portugal. Rigorosamente nada, faltou aqui rematar.
(...)
O burgo de Trancoso devia estar numa redoma, já o disse o viajante. Para o resguardar do tempo e das distracções dos homens. E ao dizê-lo era da vetusta geometria que falava, da respiração que há nela, dos jogos da pedra antiga, das vidas que ali estão guardadas nas muralhas. Não há no planalto outro lugar assim. Mas o viajante estava a pensar no burgo e não nas pessoas dele, que mais remédio não têm senão obedecer à lei das glórias que passam, tudo tem um fim na vida. Não parece ser o caso desta câmara, cujo comando é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. Com razão se vai dizer que o poder ganhou cama e deitou-se a dormir nela.
Um espírito simplório ou apressado há-de ver nisto um sinal de bom governo, com geral satisfação dos eleitores. Ou que não há em Trancoso alternativa, por ser tão pouca a gente. Ora o viajante há muito que perdeu a ingenuidade, e não é o que tem visto. Quando o poder se sente em casa sua, é como o vilão em casa do sogro. Aperta as rédeas do mando, embaralha e torna a dar no jogo das influências, condiciona os eleitores. Há-de ser o que aqui acontece. A câmara é o maior empregador, em assessorias caprichosas, em burocracias próprias, em mão-de-obra menor. E nos equipamentos colectivos como é a biblioteca, e o centro cultural, e o pavilhão multiusos, e as piscinas municipais, e os espaços da Internet, e a oficina do turismo, para não falar do desporto. Depois vem a Misericórdia, as creches, o lar de idosos, os serviços de apoio ao domicílio. Seguem as empresas municipais e a associação comercial, que remam para o mesmo lado. Nem a escola profissional há-de escapar ao garrote. Num quadro destes, qualquer ideia de serviço público se torna um mito risível. Resta apenas a ideia linear de governar a vida, distribuindo benesses a clientes, como quem reparte um bolo.
Ganha afinal o partido e alguns nele, e quem perde é o país. Isto fica a protestar o viajante. Mas bem pode protestar quem assim canta de galo, que mora longe e veio aqui em romagem. Num tal colete de forças, quem quiser comprar no cemitério uma sepultura perpétua, para guardar um dia os ossos, pedirá duas vezes conselho ao travesseiro antes de se alistar na oposição. Vão dizer que são assim as artes da política, que no final o povo é quem mais ordena, chegando à urna dos votos. Mas este viajante não se dá por convencido.
Fedeiro como é e lhe compete, vai ler o viajante os dizeres duma placa, à esquina do edifício. É uma homenagem aos militares do concelho, que lutaram nas províncias ultramarinas pela continuidade de Portugal e pela integridade da Pátria. Ao viajante deslumbra esta linguagem e já renova a leitura. A ver se Portugal continua afinal, a ver se terá ficado inteira a Pátria. Outra vez leu, e outra vez ficou sem certezas nenhumas. Assim atingido pela bala desta surpresa, termina a conciliar. Em terra onde as trovas abundaram, não fica mal uma nova, mesmo que não seja do Bandarra.
Há-de parecer de propósito, anda-lhe à volta um fulano a esmiuçar a estátua, no jardinzito do largo. Tem a altura do sapateiro, o curioso, e agrada-se da figura, do mais puro filão naturalista. Já reparou na folha de metal, por baixo do maçadoiro.
- Ou foi o céu que baixou, ou a terra levantou! Como é que o homem sabia?
- Você acredita nisso?!
O homem é taxista numa aldeia, não diz que sim nem que não. Olha a forma de sapato que ali está, e o maço de bate-solas, dois símbolos realistas que muito bem compreende. Sobe o olhar pela figura, que saiu agora mesmo dum encontro de salão, os borzeguins num primor, o calção listrado de janota, a golinha do gibão, o chapeirão sobraçado, a aparada cabeleira. Não entende o pergaminho enrolado que a figura tem na mão, e lhe simboliza as trovas. Lê na barra do poial uma legenda: Gonçalo Anes Bandarra, poeta, profeta e sapateiro de Trancoso.
- Sapateiro foi, por certo, e poeta terá sido. Já do profeta, duvido! Você acredita nisso?
- É como quem vai à bruxa, a gente sabe lá! Numa aldeia que é perto da minha, no sítio do Nogueirão, diz-se que até lá viveu!
Em baixo, no rodapé, já escrito ao rés-do-chão, uma frase de Pessoa: Bandarra, símbolo eterno do que o povo pensa de Portugal. Rigorosamente nada, faltou aqui rematar.
(...)
Portugalmente (48)
(...)
Não contando com a feira, que uma vez por ano vem ao campo dela, e os mercados semanais fora de portas, este é o coração comercial da vila. Sempre foi, desde que o fizeram os judeus, outra das famas da terra. Não era então o que é hoje, claro está. Nem o recto alinhamento desta rua, nem a arquitectura de três pisos, descuidada nalguns casos. Esses vieram depois, só é original o coração.
Bem a propósito, queria o viajante ver a casa do Gato Preto e não calhou. É o leão da tribo de Judá, uma pedra ali atrás numa fachada, numa praceta onde judeus viveram. Caçados como gamos em Castela, vieram aos milhares a procurar refúgio, em Penamacor, em Belmonte, na Guarda e noutras terras do reino. A Foz-Côa trouxeram eles os cultivos do cânhamo, donde vinha a cordoagem que aparelhou muitas naus que à Índia foram. Ao mesmo engano arribaram a Trancoso. E muitos eram eles nos tempos de D. Pedro, o luminoso príncipe das sete partidas, que à falsa-fé mataram em Alfarrobeira, e do rei João II, que terá indultado o padre Costa, como estamos lembrados. Foram a mais-valia desta terra, enquanto cá viveram. Mas logo veio um rei oportunista e caça-noivas, e outros ainda piores. Uns judeus foram postos a ferro, outros metidos a fogo, os mais acabaram a fugir. E conta o Herculano que trezentas crianças vaguearam aí por esses montes, sem abrigo, sem rumo e sem consolo, clamando em alto choro pelos pais. Algumas foram parar à ilha de S. Tomé.
Mas o viajante está cansado destas histórias tristes e de ruas desertas, e não foi ver o bairro dos judeus. Prefere andar aqui na Corredoura, no meio do burburinho, a espreitar as lojas de pronto-a-vestir, e os placares de fotógrafo, e as montras com fatos de casamento que é agora o tempo deles, e os expositores de vinhos, e as casas de ferramentas e ferragens, e as mercearias finas, e os enchidos regionais, e a papelaria geral, e um barbeiro muito antigo que ainda dura. Prefere misturar-se com os passantes e observar-lhes o gesto compassado, e bisbilhotar conversas, e ver as compras que trazem, eles de chinelos e bermuda curta, elas aos berros às Sabines e às Denises, que se tresmalham na confusão. O viajante prefere ser um bebe-água entre tantos.
Entra num café para matar a sede, acaba a puxar conversa para o negócio. Que já não é o que foi, logo explica a locandeira. Porque o negócio caiu a metade, do ano passado a este. As pessoas passam e não gastam, tanto velhos como novos, que a crise vai a todo o lado. Isso mesmo faz este viajante, quando pode e lho permitem. Vai a todo o lado, e agora veio parar a este largo da câmara.
Os paços do concelho estão aqui há cem anos. O largo fronteiro é um recanto aprazível, que o desleixo de algumas fachadas não beneficia. Tem no meio um quadrado de jardim, e o viajante resiste a dar-se conta de que lhe plantaram no meio uma estátua do Bandarra, em tamanho natural. Lá irá, quando tiver que ser. O edifício tem presença bastante, e um rosto que mistura lembranças do românico e uns ares neo-clássicos, se uma tal coisa existe. Apenas o elevado encume o desfigura um tanto. Possui um avultado frontão e sacada de pedra a meio da fachada. E seria um bom lugar para discursar ao povo e anunciar uma nova república, que bem precisa era, se um tal exercício ainda estivesse em uso e o milagre acontecesse. Não é o que parece a este viajante, e o mais útil da sacada há-de ser o mastro da bandeira, nos dias assinalados.
Em todo o caso é de ver enquanto é tempo, o edifício e o largo. O viajante foi encontrar num boletim uns alçados tri-dimensionais que são aterradores. Acrescentam ao dorso do paço um albardão de burro, com alforge lateral a pender-lhe do flanco. Como um caracol endoidecido que engendrou duas conchas, e arrasta, de castigo, uma casa devoluta.
Um cidadão cordato, que sem protesto paga os seus impostos, há-de entender que tudo se faz velho, que este mundo cresceu e as instalações da câmara se tornaram exíguas. E há-de faltar espaço onde acomodar assentos e labores, e as modernas e muitas assessorias, não venham outra vez os emigrantes sonhar com varandas para a rua à altura dum pescoço, como já temos visto. Porém, sendo esse o caso, não faltam edifícios supletivos com a nobreza exigida a dois passos daqui. E não os havendo feitos construam-se de raiz, poupando estardalhaço e custos. Serão isto projectos sem data marcada, isso o viajante não o sabe. Mas não há fumo sem fogo. E tudo é de temer, num país que já teve um rei magnânimo e o ouro dos Brasis, e volta agora a ter a ilusão dele, com os fundos europeus. Se o tal albardão vier, adeus paços do concelho, adeus meu largo, adeus justa medida.
(...)
Não contando com a feira, que uma vez por ano vem ao campo dela, e os mercados semanais fora de portas, este é o coração comercial da vila. Sempre foi, desde que o fizeram os judeus, outra das famas da terra. Não era então o que é hoje, claro está. Nem o recto alinhamento desta rua, nem a arquitectura de três pisos, descuidada nalguns casos. Esses vieram depois, só é original o coração.
Bem a propósito, queria o viajante ver a casa do Gato Preto e não calhou. É o leão da tribo de Judá, uma pedra ali atrás numa fachada, numa praceta onde judeus viveram. Caçados como gamos em Castela, vieram aos milhares a procurar refúgio, em Penamacor, em Belmonte, na Guarda e noutras terras do reino. A Foz-Côa trouxeram eles os cultivos do cânhamo, donde vinha a cordoagem que aparelhou muitas naus que à Índia foram. Ao mesmo engano arribaram a Trancoso. E muitos eram eles nos tempos de D. Pedro, o luminoso príncipe das sete partidas, que à falsa-fé mataram em Alfarrobeira, e do rei João II, que terá indultado o padre Costa, como estamos lembrados. Foram a mais-valia desta terra, enquanto cá viveram. Mas logo veio um rei oportunista e caça-noivas, e outros ainda piores. Uns judeus foram postos a ferro, outros metidos a fogo, os mais acabaram a fugir. E conta o Herculano que trezentas crianças vaguearam aí por esses montes, sem abrigo, sem rumo e sem consolo, clamando em alto choro pelos pais. Algumas foram parar à ilha de S. Tomé.
Mas o viajante está cansado destas histórias tristes e de ruas desertas, e não foi ver o bairro dos judeus. Prefere andar aqui na Corredoura, no meio do burburinho, a espreitar as lojas de pronto-a-vestir, e os placares de fotógrafo, e as montras com fatos de casamento que é agora o tempo deles, e os expositores de vinhos, e as casas de ferramentas e ferragens, e as mercearias finas, e os enchidos regionais, e a papelaria geral, e um barbeiro muito antigo que ainda dura. Prefere misturar-se com os passantes e observar-lhes o gesto compassado, e bisbilhotar conversas, e ver as compras que trazem, eles de chinelos e bermuda curta, elas aos berros às Sabines e às Denises, que se tresmalham na confusão. O viajante prefere ser um bebe-água entre tantos.
Entra num café para matar a sede, acaba a puxar conversa para o negócio. Que já não é o que foi, logo explica a locandeira. Porque o negócio caiu a metade, do ano passado a este. As pessoas passam e não gastam, tanto velhos como novos, que a crise vai a todo o lado. Isso mesmo faz este viajante, quando pode e lho permitem. Vai a todo o lado, e agora veio parar a este largo da câmara.
Os paços do concelho estão aqui há cem anos. O largo fronteiro é um recanto aprazível, que o desleixo de algumas fachadas não beneficia. Tem no meio um quadrado de jardim, e o viajante resiste a dar-se conta de que lhe plantaram no meio uma estátua do Bandarra, em tamanho natural. Lá irá, quando tiver que ser. O edifício tem presença bastante, e um rosto que mistura lembranças do românico e uns ares neo-clássicos, se uma tal coisa existe. Apenas o elevado encume o desfigura um tanto. Possui um avultado frontão e sacada de pedra a meio da fachada. E seria um bom lugar para discursar ao povo e anunciar uma nova república, que bem precisa era, se um tal exercício ainda estivesse em uso e o milagre acontecesse. Não é o que parece a este viajante, e o mais útil da sacada há-de ser o mastro da bandeira, nos dias assinalados.
Em todo o caso é de ver enquanto é tempo, o edifício e o largo. O viajante foi encontrar num boletim uns alçados tri-dimensionais que são aterradores. Acrescentam ao dorso do paço um albardão de burro, com alforge lateral a pender-lhe do flanco. Como um caracol endoidecido que engendrou duas conchas, e arrasta, de castigo, uma casa devoluta.
Um cidadão cordato, que sem protesto paga os seus impostos, há-de entender que tudo se faz velho, que este mundo cresceu e as instalações da câmara se tornaram exíguas. E há-de faltar espaço onde acomodar assentos e labores, e as modernas e muitas assessorias, não venham outra vez os emigrantes sonhar com varandas para a rua à altura dum pescoço, como já temos visto. Porém, sendo esse o caso, não faltam edifícios supletivos com a nobreza exigida a dois passos daqui. E não os havendo feitos construam-se de raiz, poupando estardalhaço e custos. Serão isto projectos sem data marcada, isso o viajante não o sabe. Mas não há fumo sem fogo. E tudo é de temer, num país que já teve um rei magnânimo e o ouro dos Brasis, e volta agora a ter a ilusão dele, com os fundos europeus. Se o tal albardão vier, adeus paços do concelho, adeus meu largo, adeus justa medida.
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Portugalmente (47)
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O viajante tem palmilhado léguas solitárias, na esperança de fugazes companhias, conforme tem contado. E animou-se com a promessa de encontrar aqui gente, o que até agora não aconteceu. Fora a dona Lucinda na rua das Laginhas, para falar com alguém e calar ao mesmo tempo uns protestos do estômago que se julgava esquecido, o viajante vai ao restaurante. Sobe umas escadas e em boa hora o faz, porque assim consola ao mesmo tempo o espírito e o corpo. O recinto mantém o aconchego e a sisudez da pedra antiga, e há famílias sentadas à mesa, com crianças que falam francês. Uma hospedeira atenciosa recebe o viajante e recomenda-lhe as feijocas à maneira da avó. Este acabou rendido. Primeiro a um sorriso misterioso, mais tarde, e com mais proveito, às feijocas suculentas.
A vida padece aqui duma aguda sazonalidade. Balança entre a euforia das férias do verão, quando não cabem nas ruas o trânsito e o bulício, e o marasmo do resto do ano. E não é fácil um negócio assim, à espera de vacas gordas que nem sempre se confirmam, como diz o chefe do restaurante. Mais que a presença escassa do turismo, ou a deprimida população rural do concelho, o mercado dos serviços da vila é a gente da emigração. Mas nem isso é o que já foi. Tempos vão em que o dinheiro girava, os pleitos fervilhavam, e se disputavam serviços e honorários a litigar às vezes um canto duma horta. Em viaturas de ocasião, os emigrantes chegavam aí e tudo eram negócios e comércios, e urgências de construir a casa e mobilar os sonhos, e febres de mostrar vitórias sobre a miséria. Era preciso chegar antes das sete à praça, mais tarde já não havia no talho um naco de bom lombo.
Hoje o emigrante chega, quando vem, em viatura de boa marca, para degolar a hidra das saudades. Veraneia, quer alguma diversão, mas já não sonha. Nem o dinheiro é quanto parece, nem já tem que mostrar nada a ninguém. Ora a força dum concelho é a da gente que nele vive, e a riqueza que produz.
Assim pensa o patrão do restaurante, e o viajante só pode concordar. Sai dali reconfortado, e ainda bem que veio à hora certa, que os comensais atrasados esperam agora a vez na escadaria. Mas o viajante não tem tempo a perder. Vai até ao pelourinho, de graciosa gaiola manuelina, ali num recanto do largo. Corre outra vez o olhar pela arejada praça, que umas fachadas negligentes incomodam, e aproveita-lhe a luz e a calmaria. Fica ela a resistir conforme pode às conspirações insistentes da pedra, que parecem estar na moda. E o viajante vai à porta lateral da igreja de S. Pedro, que por acaso ou sorte sua encontra aberta.
Houve aqui antigamente um templo românico, mais acanhado e modesto. Fizeram dele o que é hoje no tempo do rei magnânimo, que tinha o país por conta, a construir em Mafra a sua babilónia. Foi preciso ir buscar pedreiros à Galiza, para restaurar esta igreja. E em boa hora chegaram, que logo foram encontrar numa parede umas trovas do Bandarra, escondidas ali há uns duzentos anos. Dir-se-á que o viajante veio aqui a ocupar-se de lendas. E lendas serão elas, mas já foram verdades juradas por gente que era importante, e ainda hoje continuam a ouvir-se.
O Bandarra é outra das famas de Trancoso, e não será das melhores. O viajante já leu, e mais ainda ouviu falar dum sapateiro com auras de visionário, que ditava profecias, predições, enigmas, futurações. Veio aqui para ver o túmulo onde dizem que repousa. Está ali embutido na parede, e foi mandado fazer em sua honra por “um grande de ao pé do Tejo”, cem anos depois de ter morrido o pobre do sapateiro. É um verdadeiro mausoléu. E a Inquisição mandou picar-lhe as inscrições, que se ao Bandarra meteram em trabalhos durante a curta vida, menos ainda o deixaram em sossego, muitos séculos depois de ter morrido. Agora que veio e viu, não sobra ao viajante qualquer hesitação. Não há aqui nem sombra do Bandarra, nem ele profetizou coisa nenhuma. Concertou uns sapatos, disse umas redondilhas de pobre-diabo, e ainda hoje não conhece as malas-artes que o conduziram um dia às fogueiras do Rossio. Tudo o resto são invenções do mundo.
Não é isto o que o povo quer ouvir, nem o que interessa aos grandes de ao pé do Tejo, o viajante bem o sabe. Mas logo que possa explicará melhor, que agora tem pressa de partir. A vida está lá fora e é breve. E a Corredoura há-de andar cheia da gente do verão, entretida nas compras.
(...)
O viajante tem palmilhado léguas solitárias, na esperança de fugazes companhias, conforme tem contado. E animou-se com a promessa de encontrar aqui gente, o que até agora não aconteceu. Fora a dona Lucinda na rua das Laginhas, para falar com alguém e calar ao mesmo tempo uns protestos do estômago que se julgava esquecido, o viajante vai ao restaurante. Sobe umas escadas e em boa hora o faz, porque assim consola ao mesmo tempo o espírito e o corpo. O recinto mantém o aconchego e a sisudez da pedra antiga, e há famílias sentadas à mesa, com crianças que falam francês. Uma hospedeira atenciosa recebe o viajante e recomenda-lhe as feijocas à maneira da avó. Este acabou rendido. Primeiro a um sorriso misterioso, mais tarde, e com mais proveito, às feijocas suculentas.
A vida padece aqui duma aguda sazonalidade. Balança entre a euforia das férias do verão, quando não cabem nas ruas o trânsito e o bulício, e o marasmo do resto do ano. E não é fácil um negócio assim, à espera de vacas gordas que nem sempre se confirmam, como diz o chefe do restaurante. Mais que a presença escassa do turismo, ou a deprimida população rural do concelho, o mercado dos serviços da vila é a gente da emigração. Mas nem isso é o que já foi. Tempos vão em que o dinheiro girava, os pleitos fervilhavam, e se disputavam serviços e honorários a litigar às vezes um canto duma horta. Em viaturas de ocasião, os emigrantes chegavam aí e tudo eram negócios e comércios, e urgências de construir a casa e mobilar os sonhos, e febres de mostrar vitórias sobre a miséria. Era preciso chegar antes das sete à praça, mais tarde já não havia no talho um naco de bom lombo.
Hoje o emigrante chega, quando vem, em viatura de boa marca, para degolar a hidra das saudades. Veraneia, quer alguma diversão, mas já não sonha. Nem o dinheiro é quanto parece, nem já tem que mostrar nada a ninguém. Ora a força dum concelho é a da gente que nele vive, e a riqueza que produz.
Assim pensa o patrão do restaurante, e o viajante só pode concordar. Sai dali reconfortado, e ainda bem que veio à hora certa, que os comensais atrasados esperam agora a vez na escadaria. Mas o viajante não tem tempo a perder. Vai até ao pelourinho, de graciosa gaiola manuelina, ali num recanto do largo. Corre outra vez o olhar pela arejada praça, que umas fachadas negligentes incomodam, e aproveita-lhe a luz e a calmaria. Fica ela a resistir conforme pode às conspirações insistentes da pedra, que parecem estar na moda. E o viajante vai à porta lateral da igreja de S. Pedro, que por acaso ou sorte sua encontra aberta.
Houve aqui antigamente um templo românico, mais acanhado e modesto. Fizeram dele o que é hoje no tempo do rei magnânimo, que tinha o país por conta, a construir em Mafra a sua babilónia. Foi preciso ir buscar pedreiros à Galiza, para restaurar esta igreja. E em boa hora chegaram, que logo foram encontrar numa parede umas trovas do Bandarra, escondidas ali há uns duzentos anos. Dir-se-á que o viajante veio aqui a ocupar-se de lendas. E lendas serão elas, mas já foram verdades juradas por gente que era importante, e ainda hoje continuam a ouvir-se.
O Bandarra é outra das famas de Trancoso, e não será das melhores. O viajante já leu, e mais ainda ouviu falar dum sapateiro com auras de visionário, que ditava profecias, predições, enigmas, futurações. Veio aqui para ver o túmulo onde dizem que repousa. Está ali embutido na parede, e foi mandado fazer em sua honra por “um grande de ao pé do Tejo”, cem anos depois de ter morrido o pobre do sapateiro. É um verdadeiro mausoléu. E a Inquisição mandou picar-lhe as inscrições, que se ao Bandarra meteram em trabalhos durante a curta vida, menos ainda o deixaram em sossego, muitos séculos depois de ter morrido. Agora que veio e viu, não sobra ao viajante qualquer hesitação. Não há aqui nem sombra do Bandarra, nem ele profetizou coisa nenhuma. Concertou uns sapatos, disse umas redondilhas de pobre-diabo, e ainda hoje não conhece as malas-artes que o conduziram um dia às fogueiras do Rossio. Tudo o resto são invenções do mundo.
Não é isto o que o povo quer ouvir, nem o que interessa aos grandes de ao pé do Tejo, o viajante bem o sabe. Mas logo que possa explicará melhor, que agora tem pressa de partir. A vida está lá fora e é breve. E a Corredoura há-de andar cheia da gente do verão, entretida nas compras.
(...)
sexta-feira, 7 de agosto de 2009
Portugalmente (46)
(...)
Apesar dos muitos séculos que já passaram por ele, o bairro tem habitantes que o mantêm conservado. O viajante encontra alguns lugares devolutos, aqui uma fachada à venda, ali uma ruína, e hortas antigas por trás de muros velhos, donde espreitam loureiros e lilases e braços de rosas bravas. Acorda um gato que dormita ao sol e vira para a rua da Alegria. Há varandas tratadas com esmero, e casas recuperadas, e mais tufos de hortênsias à raiz das paredes, e latas de nardos e açucenas. As ruas são estreitas, sombreadas, e o viajante estimaria encontrar gente onde vivem tantas flores. Terá ido à Corredoura, a fazer alguma compra, em casa ficou a história.
Segue a rua dos Cavaleiros, onde antigas pedras de armas recordam gente fidalga. Ladeia uma igreja que lhe não prende a atenção, pois toda a que tem não basta para reparar no colosso que lhe ensombra o adro inteiro. Este viajante guarda por árvores uma grande prisão, não lhe importa a qualidade ou a grandeza. Mas nem precisa dum tal padecimento para ficar impressionado, a tília é um monumento. Se continua a crescer, e o lajedo isolador dos paisagistas não vier a molestá-la, um dia cobre-lhe a copa o burgo inteiro.
Ao lado há um triângulo de jardim, que escapou até hoje aos projectistas. Já foi terreiro de freiras, e agora oferece poiso a melhores companhias, debaixo das olaias. Mora lá dentro o busto dum médico filantropo, que soube fugir à regra geral. E quando há casamentos, como é usual nesta altura do ano, os noivos deixam-se filmar, embevecidos, nos canteiros de buxo. Não há nisto surpresa ou novidade, que tudo começou no paraíso, num jardim, como estamos lembrados.
Lembranças, nem todas boas, quem as guarda é o belíssimo alpendre de quatro colunas, que fica ali num ângulo do jardim. É uma velha casa do séc. XIV, já viu mais mundo que os olhos que nela dão, e foi recentemente restaurada. Muito embora não pareça, já foi quartel-general. Nela assentou arraiais o inglês Beresford, que por aqui andou a resistir aos franceses, no tempo das invasões. E do inglês não serão as más lembranças, se o fizeram conde de Trancoso e dono de Portugal. Do povo da vila sim, que sofreu ocupações de ambas as partes, aturou a alvoroçada soldadesca, e proveu a manjedoura das montadas.
Já deste paço ducal resta o vulto e a fachada, vê-se o telhado ruído através das janelas. É um surpreendente Finalmente Hotel, de quatro estrelas pintadas numa guarnição de plástico, ao longo da frontaria. A imagem é surrealista. Mas terá faltado alguém que aprovasse o projecto, ou foram parar a outro lado os fundos prometidos. Porque agora a guarnição já começa a romper-se, e o hotel ficou pelas promessas. Melhor assim para o médico filantropo, que escapou aos paisagistas, e para os casais de noivos, que têm aqui à espera o jardim das delícias. Mas o que mais importa ao viajante é a harmonia sossegada desta praça, que uma ruína aqui havia de estorvar.
(...)
Apesar dos muitos séculos que já passaram por ele, o bairro tem habitantes que o mantêm conservado. O viajante encontra alguns lugares devolutos, aqui uma fachada à venda, ali uma ruína, e hortas antigas por trás de muros velhos, donde espreitam loureiros e lilases e braços de rosas bravas. Acorda um gato que dormita ao sol e vira para a rua da Alegria. Há varandas tratadas com esmero, e casas recuperadas, e mais tufos de hortênsias à raiz das paredes, e latas de nardos e açucenas. As ruas são estreitas, sombreadas, e o viajante estimaria encontrar gente onde vivem tantas flores. Terá ido à Corredoura, a fazer alguma compra, em casa ficou a história.
Segue a rua dos Cavaleiros, onde antigas pedras de armas recordam gente fidalga. Ladeia uma igreja que lhe não prende a atenção, pois toda a que tem não basta para reparar no colosso que lhe ensombra o adro inteiro. Este viajante guarda por árvores uma grande prisão, não lhe importa a qualidade ou a grandeza. Mas nem precisa dum tal padecimento para ficar impressionado, a tília é um monumento. Se continua a crescer, e o lajedo isolador dos paisagistas não vier a molestá-la, um dia cobre-lhe a copa o burgo inteiro.
Ao lado há um triângulo de jardim, que escapou até hoje aos projectistas. Já foi terreiro de freiras, e agora oferece poiso a melhores companhias, debaixo das olaias. Mora lá dentro o busto dum médico filantropo, que soube fugir à regra geral. E quando há casamentos, como é usual nesta altura do ano, os noivos deixam-se filmar, embevecidos, nos canteiros de buxo. Não há nisto surpresa ou novidade, que tudo começou no paraíso, num jardim, como estamos lembrados.
Lembranças, nem todas boas, quem as guarda é o belíssimo alpendre de quatro colunas, que fica ali num ângulo do jardim. É uma velha casa do séc. XIV, já viu mais mundo que os olhos que nela dão, e foi recentemente restaurada. Muito embora não pareça, já foi quartel-general. Nela assentou arraiais o inglês Beresford, que por aqui andou a resistir aos franceses, no tempo das invasões. E do inglês não serão as más lembranças, se o fizeram conde de Trancoso e dono de Portugal. Do povo da vila sim, que sofreu ocupações de ambas as partes, aturou a alvoroçada soldadesca, e proveu a manjedoura das montadas.
Já deste paço ducal resta o vulto e a fachada, vê-se o telhado ruído através das janelas. É um surpreendente Finalmente Hotel, de quatro estrelas pintadas numa guarnição de plástico, ao longo da frontaria. A imagem é surrealista. Mas terá faltado alguém que aprovasse o projecto, ou foram parar a outro lado os fundos prometidos. Porque agora a guarnição já começa a romper-se, e o hotel ficou pelas promessas. Melhor assim para o médico filantropo, que escapou aos paisagistas, e para os casais de noivos, que têm aqui à espera o jardim das delícias. Mas o que mais importa ao viajante é a harmonia sossegada desta praça, que uma ruína aqui havia de estorvar.
(...)
Risco de morte
Pizarro, que é Secretário de Estado da Saúde, declara que o paciente trouxe de Marte a gripe A, e corre risco de vida.
A jornalista confirma que o doente apanhou gripe suína, e corre risco de vida.
Os ouvintes pensam na vacina, que afinal sempre é verdade, a gripe dos porcos faz correr risco de vida.
Ao discernimento indígena é que a vacina não salva. Nem à língua portuguesa, que corre risco de morte.
A jornalista confirma que o doente apanhou gripe suína, e corre risco de vida.
Os ouvintes pensam na vacina, que afinal sempre é verdade, a gripe dos porcos faz correr risco de vida.
Ao discernimento indígena é que a vacina não salva. Nem à língua portuguesa, que corre risco de morte.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
Portugalmente (45)
(...)
Enquanto sobe e desce o pau folgam as costas, pensa o viajante, que já chegou ao largo do Castelo. Pena é estar cerrado este portão da alcáçova, em trabalhos de valorização, avisa um edital. E se perdem agora os olhos do viajante em largueza de vistas, queira Deus que não saia mais tarde um dano ainda maior, da banca do paisagista. É um temor que a experiência nos vem aconselhando.
Um largo destes é o lar de um burgo, aqui lhe moram os deuses protectores, se não é forçada a figura. Irradiam daqui as ruelas mais antigas, por entre as casas baixas, mal passa um homem nas portas sem dobrar a cabeça. E razão maior é esta para lhe respeitar o ser essencial. Ora o viajante já fecharia os olhos a descuidos menores, a intervenções menos felizes, o mundo não é perfeito. O que não entende é a profanação que ali se vê ao lado, uma agressão absurda ao património. Varreram-se as casas de outro tempo, montaram-se uns andaimes, ergueu-se a construção disparatada que ali ficou à vista. E havia já democracia, havia autarcas eleitos, havia uma sugestão de bem comum. E houve um projectista que deu assinatura. E um arquitecto que autorizou aquilo. Olha-se o resultado, e acaba-se a duvidar daquilo que os olhos vêm.
Mais transparentes do que noutros lugares, sempre houve deuses caseiros nestas terras. Um médico ou um juiz, um qualquer doutor de leis, foram durante séculos figuras tutelares. Sobretudo depois de terem passado os verdes tempos da fidalguia de antigo regime. Já o mestre Gil Vicente, a quem a comissão da toponímia atribuiu uma rua ali ao lado, zurzia procuradores e quejandos. Mas de bem pouco lhe valeu a pregação, que ser doutor foi sempre a chave do triunfo. E triunfar era mandar no mundo e acumular riqueza. A vila era o centro da comarca, da província, de toda a região. Nela se buscava o direito, se o havia, nela a cura das maleitas, nela se entregava a décima. Nos mercados se vendia e trocava, na feira de Agosto se pagavam as rendas, se faziam contratos, se fechava a roda do ano.
A vila fornecia serviços e aceitava cortesias, ainda hoje não tem outra função. Nos dias de mercado começava mais cedo o horário doméstico, para a criadagem receber de madrugada as primícias que vinham das aldeias, à hora dos camponeses. Uma galinha numa alcofa, um cabrito a berrar num barbante, um cabaz de cerejas temporãs. A agradecer um favor, a pedir uma atenção, a pagar o direito de existir.
O ciclo da servidão veio a romper-se com o tempo, e com o tumulto brutal da emigração. Um milhão e meio de camponeses fugiu a salto para a Europa, em menos de quinze anos. E o país pagou um preço alto pelo motim. Mas deixaram de correr de madrugada as peias que vinham das aldeias, a vassalagem morreu, e os deuses caseiros deixaram de existir. A este viajante só compete olhar e ver. E vendo bem, melhor andava a comissão dos paisagistas, nos seus trabalhos de valorização da cidadela, se mandasse implodir o espantalho que ali está.
O viajante desce a rua das Laginhas, quer esquecer-se da história. Desvia-se dos tufos das hidrângeas à raiz das paredes, das latas de gerânios que emolduram as portas, olha estas casitas baixas e acaba emocionado. Lembra-se dos chalés modernos que invadiram as paisagens, muitos deles casas frustradas, e não sabe o que pensar dumas e doutras. Encontra a dona Lucinda, que mora aqui e tem cá bons vizinhos, terão ido à Corredoura, a fazer alguma compra. Ela já mal pode andar, quem lhe vale são as moças da Misericórdia que passam todos os dias. Trabalhou toda a vida em casa duns senhores, nas lidas da cozinha. Um dia os patrões morreram, os filhos viviam em Lisboa e mandaram vender tudo. E a dona Lucinda, que já não tinha préstimo, arranjou esta casita e veio morrer nela. Bons eram esses tempos, duas vezes por ano ia a Lisboa, de comboio mais uma colega, a fazer as limpezas maiores num casarão da praça das Flores. Agora...
(...)
Enquanto sobe e desce o pau folgam as costas, pensa o viajante, que já chegou ao largo do Castelo. Pena é estar cerrado este portão da alcáçova, em trabalhos de valorização, avisa um edital. E se perdem agora os olhos do viajante em largueza de vistas, queira Deus que não saia mais tarde um dano ainda maior, da banca do paisagista. É um temor que a experiência nos vem aconselhando.
Um largo destes é o lar de um burgo, aqui lhe moram os deuses protectores, se não é forçada a figura. Irradiam daqui as ruelas mais antigas, por entre as casas baixas, mal passa um homem nas portas sem dobrar a cabeça. E razão maior é esta para lhe respeitar o ser essencial. Ora o viajante já fecharia os olhos a descuidos menores, a intervenções menos felizes, o mundo não é perfeito. O que não entende é a profanação que ali se vê ao lado, uma agressão absurda ao património. Varreram-se as casas de outro tempo, montaram-se uns andaimes, ergueu-se a construção disparatada que ali ficou à vista. E havia já democracia, havia autarcas eleitos, havia uma sugestão de bem comum. E houve um projectista que deu assinatura. E um arquitecto que autorizou aquilo. Olha-se o resultado, e acaba-se a duvidar daquilo que os olhos vêm.
Mais transparentes do que noutros lugares, sempre houve deuses caseiros nestas terras. Um médico ou um juiz, um qualquer doutor de leis, foram durante séculos figuras tutelares. Sobretudo depois de terem passado os verdes tempos da fidalguia de antigo regime. Já o mestre Gil Vicente, a quem a comissão da toponímia atribuiu uma rua ali ao lado, zurzia procuradores e quejandos. Mas de bem pouco lhe valeu a pregação, que ser doutor foi sempre a chave do triunfo. E triunfar era mandar no mundo e acumular riqueza. A vila era o centro da comarca, da província, de toda a região. Nela se buscava o direito, se o havia, nela a cura das maleitas, nela se entregava a décima. Nos mercados se vendia e trocava, na feira de Agosto se pagavam as rendas, se faziam contratos, se fechava a roda do ano.
A vila fornecia serviços e aceitava cortesias, ainda hoje não tem outra função. Nos dias de mercado começava mais cedo o horário doméstico, para a criadagem receber de madrugada as primícias que vinham das aldeias, à hora dos camponeses. Uma galinha numa alcofa, um cabrito a berrar num barbante, um cabaz de cerejas temporãs. A agradecer um favor, a pedir uma atenção, a pagar o direito de existir.
O ciclo da servidão veio a romper-se com o tempo, e com o tumulto brutal da emigração. Um milhão e meio de camponeses fugiu a salto para a Europa, em menos de quinze anos. E o país pagou um preço alto pelo motim. Mas deixaram de correr de madrugada as peias que vinham das aldeias, a vassalagem morreu, e os deuses caseiros deixaram de existir. A este viajante só compete olhar e ver. E vendo bem, melhor andava a comissão dos paisagistas, nos seus trabalhos de valorização da cidadela, se mandasse implodir o espantalho que ali está.
O viajante desce a rua das Laginhas, quer esquecer-se da história. Desvia-se dos tufos das hidrângeas à raiz das paredes, das latas de gerânios que emolduram as portas, olha estas casitas baixas e acaba emocionado. Lembra-se dos chalés modernos que invadiram as paisagens, muitos deles casas frustradas, e não sabe o que pensar dumas e doutras. Encontra a dona Lucinda, que mora aqui e tem cá bons vizinhos, terão ido à Corredoura, a fazer alguma compra. Ela já mal pode andar, quem lhe vale são as moças da Misericórdia que passam todos os dias. Trabalhou toda a vida em casa duns senhores, nas lidas da cozinha. Um dia os patrões morreram, os filhos viviam em Lisboa e mandaram vender tudo. E a dona Lucinda, que já não tinha préstimo, arranjou esta casita e veio morrer nela. Bons eram esses tempos, duas vezes por ano ia a Lisboa, de comboio mais uma colega, a fazer as limpezas maiores num casarão da praça das Flores. Agora...
(...)
As pérolas e os porcos
É uma casa que fica ali no adro, logo em frente da igreja. Fizeram-na há cento e tal anos, para os comércios desse tempo. A casa possuía a dignidade de quem a construiu, tinha as formas e atributos que a vida lhe pedia: um alprendre lateral, uma porta de serviço aos altos da habitação, e as três portas principais abertas à freguesia.
Um dia chegaram ao largo, de mãos dadas, a liberdade e a cidadania. E a junta velha fez da casa a sua Sede, com obras que por milagre a não arruinaram. Porém agora veio a junta nova, a quem calhou a roda da fortuna com o dinheiro das eólicas. Deliberou que havia portas a mais, resolveu entaipar três. Sobraram três janelicos de alumínio anodizado.
O trabalho é um atentado, é crime, é malfeitoria? À junta pouco lhe importa, que o seu dever é cumprir o programa do bom autarca moderno: dar vazadouro às finanças e ter obra para mostrar. Não há tutela que valha, nem protesto, nem juiz. Nem consideração estética, nem história, nem património. Nem passado, nem presente, nem futuro. Que o arbítrio dum autarca é soberano, mesmo quando é terrorismo.
Faz lembrar a parábola das pérolas e dos porcos. E chega a deixar saudades dum tempo de má memória, já distante.
Um dia chegaram ao largo, de mãos dadas, a liberdade e a cidadania. E a junta velha fez da casa a sua Sede, com obras que por milagre a não arruinaram. Porém agora veio a junta nova, a quem calhou a roda da fortuna com o dinheiro das eólicas. Deliberou que havia portas a mais, resolveu entaipar três. Sobraram três janelicos de alumínio anodizado.
O trabalho é um atentado, é crime, é malfeitoria? À junta pouco lhe importa, que o seu dever é cumprir o programa do bom autarca moderno: dar vazadouro às finanças e ter obra para mostrar. Não há tutela que valha, nem protesto, nem juiz. Nem consideração estética, nem história, nem património. Nem passado, nem presente, nem futuro. Que o arbítrio dum autarca é soberano, mesmo quando é terrorismo.
Faz lembrar a parábola das pérolas e dos porcos. E chega a deixar saudades dum tempo de má memória, já distante.
quarta-feira, 5 de agosto de 2009
Eterna saudade
Portugalmente (44)
(...)
Quando acorda, já tarde, tem à espera o céu do planalto. Nem todas as manhãs serão assim, mas esta veio ao viajante como uma prenda de anos. Não é coisa que entendam à primeira uns olhos acostumados à incerteza das brumas, à cerração melancólica dos fumos da cidade, à poeirada dessas avenidas. O viajante suspeita de que um céu assim é alto privilégio e aproveita-se dele, mas não sabe como há-de defini-lo. Dá com as portas do Prado e vai andando ao longo das muralhas, reduzidas agora à função mais singela e mais nobre de todas, passear nelas o olhar. Foi à procura das argolas de ferro espetadas nas frestas, onde ficava presa a multidão dos jumentos antigos, enquanto os donos corriam ao mercado. Viu-os numa imagem já velha, as argolas e os burros, e com ela se dará por satisfeito, já nada disso existe. O que muito se vê são cartazes, pendurados nas árvores, a anunciar a feira de São Bartolomeu. É outra fama da terra, e já vem perto.
A feira vem dos tempos do rei bolonhês, aos anos que ela dura. Antigamente vinham dar aqui os caminhos todos, de Lamego, de Além-Doiro, da raia do Côa, da Malcata, de toda a serrania em volta. Semanas antes já se viam manadas de gado e maltas a passar, estradas fora. Caminhavam pela fresca e matavam a sede onde havia uma fonte, a sombra dum ribeiro, um descampado. Acudiam aqui negociantes, bufarinheiros, troca-tintas, marchantes, saltimbancos, adivinhos, troveiros cegos, bandarras, e a gentinha toda desses montes e vales, só não vinha à feira quem estivesse de cama. Durante séculos foi o centro da vida desta província, oxalá sobrasse dela alguma coisa, nestes tempos de tão carecida vida.
À procura do melhor panorama, o viajante sobe ao primeiro andar do tribunal e não fica arrependido. Abre sem licença uma janela para o largo, e outra vez se teme das ameias do alcácer, facinorosos dentes lá no alto. Namora-se do enredo das empenas antigas, das torres das igrejas avultando, e fica ali tempos infindos, o olhar preso ao correr das muralhas, desde a porta do Carvalho até lá ao fundo, à praça. Estava ainda a pensar nos burricos de antigamente, ali à espera do dono, quando veio o oficial de diligências a gritar no bulício do átrio um rol de testemunhas.
O viajante não pode senão dirigir-se ao castelo, e faz questão de entrar pela porta da traição, não há melhor caminho para vencer a mais dura muralha. Há fendas numa torre da cidadela, uns técnicos montaram uns andaimes, haveremos de ver o resultado. Mas do que o viajante mais se teme são estes tufos de hera, fincados na cantaria. Um dia acabarão o seu trabalho de ruína, já visivelmente começado. Parecia simples, era matar a hera. Se não morasse tão longe o dono destas pedras, respondem ao viajante os técnicos dos andaimes.
Assim deixado em branco, o viajante rodeia a cidadela. Enche os olhos no vastíssimo horizonte, desde Penedono, a norte, às escarpas do Douro, à Marofa e à serra da Gata, às terras do Sabugal, aos contrafortes da Estrela, para acabar outra vez a poente, no monte do Almansor. O céu é o cristal que se vê, e o sol, subindo, acentua o azul. O viajante não cabe em si de contente, com a benesse de andar aqui num tempo assim. Passada a feira não tardará o outono, e há-de vir outra vez um longo inverno, e o frio voltará a lembrar-se do jantar que tem sempre na mesa, quando chega a Trancoso.
(...)
Quando acorda, já tarde, tem à espera o céu do planalto. Nem todas as manhãs serão assim, mas esta veio ao viajante como uma prenda de anos. Não é coisa que entendam à primeira uns olhos acostumados à incerteza das brumas, à cerração melancólica dos fumos da cidade, à poeirada dessas avenidas. O viajante suspeita de que um céu assim é alto privilégio e aproveita-se dele, mas não sabe como há-de defini-lo. Dá com as portas do Prado e vai andando ao longo das muralhas, reduzidas agora à função mais singela e mais nobre de todas, passear nelas o olhar. Foi à procura das argolas de ferro espetadas nas frestas, onde ficava presa a multidão dos jumentos antigos, enquanto os donos corriam ao mercado. Viu-os numa imagem já velha, as argolas e os burros, e com ela se dará por satisfeito, já nada disso existe. O que muito se vê são cartazes, pendurados nas árvores, a anunciar a feira de São Bartolomeu. É outra fama da terra, e já vem perto.
A feira vem dos tempos do rei bolonhês, aos anos que ela dura. Antigamente vinham dar aqui os caminhos todos, de Lamego, de Além-Doiro, da raia do Côa, da Malcata, de toda a serrania em volta. Semanas antes já se viam manadas de gado e maltas a passar, estradas fora. Caminhavam pela fresca e matavam a sede onde havia uma fonte, a sombra dum ribeiro, um descampado. Acudiam aqui negociantes, bufarinheiros, troca-tintas, marchantes, saltimbancos, adivinhos, troveiros cegos, bandarras, e a gentinha toda desses montes e vales, só não vinha à feira quem estivesse de cama. Durante séculos foi o centro da vida desta província, oxalá sobrasse dela alguma coisa, nestes tempos de tão carecida vida.
À procura do melhor panorama, o viajante sobe ao primeiro andar do tribunal e não fica arrependido. Abre sem licença uma janela para o largo, e outra vez se teme das ameias do alcácer, facinorosos dentes lá no alto. Namora-se do enredo das empenas antigas, das torres das igrejas avultando, e fica ali tempos infindos, o olhar preso ao correr das muralhas, desde a porta do Carvalho até lá ao fundo, à praça. Estava ainda a pensar nos burricos de antigamente, ali à espera do dono, quando veio o oficial de diligências a gritar no bulício do átrio um rol de testemunhas.
O viajante não pode senão dirigir-se ao castelo, e faz questão de entrar pela porta da traição, não há melhor caminho para vencer a mais dura muralha. Há fendas numa torre da cidadela, uns técnicos montaram uns andaimes, haveremos de ver o resultado. Mas do que o viajante mais se teme são estes tufos de hera, fincados na cantaria. Um dia acabarão o seu trabalho de ruína, já visivelmente começado. Parecia simples, era matar a hera. Se não morasse tão longe o dono destas pedras, respondem ao viajante os técnicos dos andaimes.
Assim deixado em branco, o viajante rodeia a cidadela. Enche os olhos no vastíssimo horizonte, desde Penedono, a norte, às escarpas do Douro, à Marofa e à serra da Gata, às terras do Sabugal, aos contrafortes da Estrela, para acabar outra vez a poente, no monte do Almansor. O céu é o cristal que se vê, e o sol, subindo, acentua o azul. O viajante não cabe em si de contente, com a benesse de andar aqui num tempo assim. Passada a feira não tardará o outono, e há-de vir outra vez um longo inverno, e o frio voltará a lembrar-se do jantar que tem sempre na mesa, quando chega a Trancoso.
(...)
Prosperidade e crescimento
Com vénia ao dr. Luís Queirós
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
O sistema que preside à organização económica e ao modo de viver das sociedades actuais, o qual modelou a presente “globalização”, assenta num pressuposto indispensável: o crescimento contínuo da economia. Sem ele, nada funciona eficazmente. E (apesar das leis da Física!) a crença no crescimento contínuo está profundamente enraizada na nossa mentalidade. Por tal modo que, até agora, a única via de saída da crise actual, apresentada por economistas, políticos e responsáveis de todas as instâncias, é a famigerada “retoma”. Entenda-se por isso a “retoma do crescimento económico”.
Nos últimos 50 anos, o mundo assistiu a um crescimento exponencial da economia, em grande parte impulsionado pela disponibilidade de uma energia abundante e barata: os combustíveis fósseis. Nesse período, cresceu cinco vezes o PIB global, aumentou três vezes a população, subiram generalizadamente os níveis de conforto, saúde, mobilidade e bem-estar. Porém, e paradoxalmente, esse crescimento beneficiou mais uns países do que outros. De tal forma que, nas últimas décadas, as diferenças entre ricos e pobres se acentuaram, em lugar de diminuírem.
Desejável seria que esta tendência de crescimento pudesse continuar no futuro, por forma a assegurar o pleno emprego, estimular a inovação, incentivar o investimento e a concorrência. Mas parece cada vez mais evidente que tal não irá acontecer. Pode até ser necessário, se não mesmo vantajoso, que tal não aconteça. Muitos dos problemas actuais, como o aquecimento global, o esgotamento dos recursos energéticos, o desequilíbrio ambiental , e até as diferenças entre ricos e pobres, só poderão agravar-se com o crescimento.
Sendo previsível que a população mundial continuará a crescer, é lícito perguntar como se vai compatibilizar esse crescimento populacional com a estagnação da economia, com o “pico” da produção energética, ou mesmo com a regressão dessa produção. Que respostas haverá para cerca de 1/3 da população mundial, (que na China, ou na Índia, ou no Paquistão, aspira a atingir os níveis de conforto dos países mais desenvolvidos), caso não lhe seja possível aceder a eles?
A nossa civilização enfrenta um desafio, importante e decisivo, porque global: para não agravar os desequilíbrios do planeta, (o aquecimento global, a poluição ambiental, a gestão dos recursos cada vez mais escassos), estamos condenados a viver sem crescimento. Os próprios economistas, enquanto anunciam a retoma ali ao virar da esquina, começam a dar-se conta da cruel realidade, e já falam de “economia estável”. Embora pareça que ainda não encontraram a fórmula de a pôr em prática, nem ainda entenderam as leis que a governam.
O ser humano, como qualquer outro ser da criação, aspira à prosperidade, anseia por crescer, reproduzir-se e expandir-se. Mas na sociedade actual, o conceito de “prosperidade” está predominantemente ligado à posse de bens materiais. Para o cidadão comum é isso que traz felicidade. Está a chegar o momento de colocar a questão doutra maneira: é possível prosperar, sem acumulação de riqueza? Não só é necessário acreditar que sim, como também vai ser preciso pô-lo em prática.
Para sobreviver, a nossa civilização tem de encontrar formas de prosperar sem crescimento: uma prosperidade não centrada em conteúdos predominantemente materiais, em que se valorize mais o “ser” do que “ter”, num mundo com novos valores e uma nova espiritualidade.
Nem será um caminho fácil, nem pode ser deixado ao arbítrio de cada um. E exigirá dos governantes muita sabedoria, se o quisermos percorrer em democracia. Porque abrir esse caminho será um exercício no fio da navalha: entre a ameaça do colapso, e a violenta regressão a regimes e tempos de totalitarismo.
A sociedade de consumo, baseada no materialismo, tem que ceder lugar a uma sociedade mais altruísta, baseada na solidariedade humana. No fundo implica uma nova moral, dir-se-ia até uma nova “religião”. À semelhança do papel que teve o Cristianismo, no colapso inevitável do Império Romano, defendendo a igualdade, a irmandade, o fim da escravatura e da exploração humana.
As “marcas” que reinam no moderno mercado vão ter que devolver aos deuses e aos heróis do passado as simbologias, os valores arquetípicos e a força mítica de que oportunamente se apropriaram. Como dizia Alan S. Drake, “no futuro, o consumidor tem de voltar a ceder lugar ao cidadão; juntamente com a responsabilidade e os deveres que o conceito implica.”
A mudança nas formas de comunicar, trazidas pela Internet, poderá conter em si uma esperança nova. No campo da comunicação, é esta a terceira grande revolução da Humanidade, depois das descobertas da escrita e da imprensa. E se a “escrita” produziu a Bíblia e o Corão, e a “imprensa” nos trouxe Martinho Lutero e os ideais da Reforma, quem sabe se na Internet não andará a semente de uma nova “religião”. De uma nova forma de viver, na qual seja possível nova prosperidade. Mais do que sob ameaça, a prosperidade presente está em agonia.
Presidente da Marktest e membro da ASPO Portugal
O sistema que preside à organização económica e ao modo de viver das sociedades actuais, o qual modelou a presente “globalização”, assenta num pressuposto indispensável: o crescimento contínuo da economia. Sem ele, nada funciona eficazmente. E (apesar das leis da Física!) a crença no crescimento contínuo está profundamente enraizada na nossa mentalidade. Por tal modo que, até agora, a única via de saída da crise actual, apresentada por economistas, políticos e responsáveis de todas as instâncias, é a famigerada “retoma”. Entenda-se por isso a “retoma do crescimento económico”.
Nos últimos 50 anos, o mundo assistiu a um crescimento exponencial da economia, em grande parte impulsionado pela disponibilidade de uma energia abundante e barata: os combustíveis fósseis. Nesse período, cresceu cinco vezes o PIB global, aumentou três vezes a população, subiram generalizadamente os níveis de conforto, saúde, mobilidade e bem-estar. Porém, e paradoxalmente, esse crescimento beneficiou mais uns países do que outros. De tal forma que, nas últimas décadas, as diferenças entre ricos e pobres se acentuaram, em lugar de diminuírem.
Desejável seria que esta tendência de crescimento pudesse continuar no futuro, por forma a assegurar o pleno emprego, estimular a inovação, incentivar o investimento e a concorrência. Mas parece cada vez mais evidente que tal não irá acontecer. Pode até ser necessário, se não mesmo vantajoso, que tal não aconteça. Muitos dos problemas actuais, como o aquecimento global, o esgotamento dos recursos energéticos, o desequilíbrio ambiental , e até as diferenças entre ricos e pobres, só poderão agravar-se com o crescimento.
Sendo previsível que a população mundial continuará a crescer, é lícito perguntar como se vai compatibilizar esse crescimento populacional com a estagnação da economia, com o “pico” da produção energética, ou mesmo com a regressão dessa produção. Que respostas haverá para cerca de 1/3 da população mundial, (que na China, ou na Índia, ou no Paquistão, aspira a atingir os níveis de conforto dos países mais desenvolvidos), caso não lhe seja possível aceder a eles?
A nossa civilização enfrenta um desafio, importante e decisivo, porque global: para não agravar os desequilíbrios do planeta, (o aquecimento global, a poluição ambiental, a gestão dos recursos cada vez mais escassos), estamos condenados a viver sem crescimento. Os próprios economistas, enquanto anunciam a retoma ali ao virar da esquina, começam a dar-se conta da cruel realidade, e já falam de “economia estável”. Embora pareça que ainda não encontraram a fórmula de a pôr em prática, nem ainda entenderam as leis que a governam.
O ser humano, como qualquer outro ser da criação, aspira à prosperidade, anseia por crescer, reproduzir-se e expandir-se. Mas na sociedade actual, o conceito de “prosperidade” está predominantemente ligado à posse de bens materiais. Para o cidadão comum é isso que traz felicidade. Está a chegar o momento de colocar a questão doutra maneira: é possível prosperar, sem acumulação de riqueza? Não só é necessário acreditar que sim, como também vai ser preciso pô-lo em prática.
Para sobreviver, a nossa civilização tem de encontrar formas de prosperar sem crescimento: uma prosperidade não centrada em conteúdos predominantemente materiais, em que se valorize mais o “ser” do que “ter”, num mundo com novos valores e uma nova espiritualidade.
Nem será um caminho fácil, nem pode ser deixado ao arbítrio de cada um. E exigirá dos governantes muita sabedoria, se o quisermos percorrer em democracia. Porque abrir esse caminho será um exercício no fio da navalha: entre a ameaça do colapso, e a violenta regressão a regimes e tempos de totalitarismo.
A sociedade de consumo, baseada no materialismo, tem que ceder lugar a uma sociedade mais altruísta, baseada na solidariedade humana. No fundo implica uma nova moral, dir-se-ia até uma nova “religião”. À semelhança do papel que teve o Cristianismo, no colapso inevitável do Império Romano, defendendo a igualdade, a irmandade, o fim da escravatura e da exploração humana.
As “marcas” que reinam no moderno mercado vão ter que devolver aos deuses e aos heróis do passado as simbologias, os valores arquetípicos e a força mítica de que oportunamente se apropriaram. Como dizia Alan S. Drake, “no futuro, o consumidor tem de voltar a ceder lugar ao cidadão; juntamente com a responsabilidade e os deveres que o conceito implica.”
A mudança nas formas de comunicar, trazidas pela Internet, poderá conter em si uma esperança nova. No campo da comunicação, é esta a terceira grande revolução da Humanidade, depois das descobertas da escrita e da imprensa. E se a “escrita” produziu a Bíblia e o Corão, e a “imprensa” nos trouxe Martinho Lutero e os ideais da Reforma, quem sabe se na Internet não andará a semente de uma nova “religião”. De uma nova forma de viver, na qual seja possível nova prosperidade. Mais do que sob ameaça, a prosperidade presente está em agonia.
Regionalizar, pois claro!
Fernando Ruas, o galifão das pedradas nos fiscais do Ambiente, é presidente da câmara de Viseu, e chefe dos autarcas todos. Quando houve aí o Euro 2004, chorou baba e ranho porque também queria um estádio para alavancar a cidade. Chegou a declarar-se discriminado e ofendido pelo centralismo malsão do Terreiro do Paço.
O tempo foi passando. E Ruas será por certo muita coisa que eu não digo, mas lá cego é que não é. Olhou à sua volta, e viu a tristonha herança que o Euro deixou às autarquias, com estádios que ninguém usa.
Agora está disposto a ir a pé a Fátima, a agradecer à Virgem, por não ter lá na terra um pesadelo assim. Diz isto com o riso inteligente que caracteriza todo o bom autarca. O mesmo ar inteligente e dedicado, com que na altura berrava pelo brinquedo.
O tempo foi passando. E Ruas será por certo muita coisa que eu não digo, mas lá cego é que não é. Olhou à sua volta, e viu a tristonha herança que o Euro deixou às autarquias, com estádios que ninguém usa.
Agora está disposto a ir a pé a Fátima, a agradecer à Virgem, por não ter lá na terra um pesadelo assim. Diz isto com o riso inteligente que caracteriza todo o bom autarca. O mesmo ar inteligente e dedicado, com que na altura berrava pelo brinquedo.
As carraças
O quarto submarino da armada dos cavaquistas apanhou sete anos de prisão.
Isaltino reclama que só ajudou a atravessar, na rua, umas velhinhas de Oeiras.
É verdade que ainda teve, como pena acessória, a perda de mandato.
Isaltino considera que volta a ganhar a câmara com maioria maior.
Para cumprir a sentença, o réu desembolsará os seus quinhentos mil Euros.
Mas Isaltino, que em tempos foi magistrado, sabe bem que ainda é cedo, para se declarar incobrável.
E Portugal é um cão a andar à roda, a ver se morde as carraças do rabo.
Isaltino reclama que só ajudou a atravessar, na rua, umas velhinhas de Oeiras.
É verdade que ainda teve, como pena acessória, a perda de mandato.
Isaltino considera que volta a ganhar a câmara com maioria maior.
Para cumprir a sentença, o réu desembolsará os seus quinhentos mil Euros.
Mas Isaltino, que em tempos foi magistrado, sabe bem que ainda é cedo, para se declarar incobrável.
E Portugal é um cão a andar à roda, a ver se morde as carraças do rabo.
De focinho rente ao chão
Em 2004, o simulacro de país que Portugal já era construiu dez estádios de futebol para um campeonato europeu. Com mais propriedade se diria que o fez para impressionar o mundo. E fundamente o terá impressionado, pois não é todos os dias que se vê um país incapaz de se alimentar a si próprio gastar assim mil milhões, para ver jogar à bola durante um mês.
Englobando os que ficaram inacabados, os que nunca mais tiveram ocupação e aqueles que não estão pagos, lá ficaram marcas impressionantes em Braga, em Guimarães, no Porto, num descampado de Aveiro, em Coimbra, em Leiria, em Lisboa, e mais uma algures no Algarve.
Agora vem aí o Mundial de 2018. E Portugal, mais desprovido ainda do que então já estava, alia-se à Espanha, para apresentar nova demonstração.
É certo que os estádios candidatos não satisfazem as condições mínimas, e terão que ser remodelados. Mas isso não esmorece os responsáveis políticos, autárquicos, desportivos. Mais uns milhões resolvem o assunto.
Dir-se-á que nem todos os portugueses são visionários paranóicos, que confundem o país com um circo de carnaval. Pois nem precisam de o ser, que os palhaços de serviço que os governam já ocupam a arena toda. Aos portugueses basta-lhes ser o que são: um rebanho de carneiros a tasquinhar na charneca, de focinho rente ao chão.
Englobando os que ficaram inacabados, os que nunca mais tiveram ocupação e aqueles que não estão pagos, lá ficaram marcas impressionantes em Braga, em Guimarães, no Porto, num descampado de Aveiro, em Coimbra, em Leiria, em Lisboa, e mais uma algures no Algarve.
Agora vem aí o Mundial de 2018. E Portugal, mais desprovido ainda do que então já estava, alia-se à Espanha, para apresentar nova demonstração.
É certo que os estádios candidatos não satisfazem as condições mínimas, e terão que ser remodelados. Mas isso não esmorece os responsáveis políticos, autárquicos, desportivos. Mais uns milhões resolvem o assunto.
Dir-se-á que nem todos os portugueses são visionários paranóicos, que confundem o país com um circo de carnaval. Pois nem precisam de o ser, que os palhaços de serviço que os governam já ocupam a arena toda. Aos portugueses basta-lhes ser o que são: um rebanho de carneiros a tasquinhar na charneca, de focinho rente ao chão.
Portugalmente (43)
(...)
6
O burgo de Trancoso, onde o viajante pernoitou, devia estar guardado numa caixa de jóias. Fizeram-no aqui, neste espigão do planalto, num tempo em que a história se fazia a povoar territórios e a ferir guerras por eles. As guerras feridas já passaram de moda, mas não os povoamentos, conforme temos visto. E o burgo ainda aqui está, a alimentar-se de séculos, a resistir ao tempo.
Quem quiser saber como é que ele resiste, há-de meter-se na pele do inimigo antigo. Dos vários inimigos que um dia o cobiçaram. Há-de estudar-lhe o entorno, medir-lhe os ângulos mortos, sondar-lhe um ponto fraco. Não é o exacto caso deste viajante, que não veio em pé de guerra a derrubar castelos, antes a farejar-lhes pontos fortes. Por isso deu aquela volta larga, ontem à noite, antes de recolher. Passou à estrada de S. Marcos, desceu ao Chafariz do Vento, voltou à esquerda na estrada real, e virou outra vez na direcção da vila, no cruzamento da Cruz da Galega. O viajante diz vila, sabendo já que lhe mudaram a patente. Dizem que a subiram a cidade. Mas este viajante, que de promoções de escrivaninha conhece alguma coisa, não leva a sério a novidade. Trancoso não precisa de se pôr em bicos de pés para ser a vila mais formosa destes planaltos antigos, supõe o viajante que é preciso muito andar para lhe encontrar coisa parecida. E assim deveria continuar, mas adiante.
Quando avistou o castelo, iluminado no penhasco fronteiro, o viajante saiu do carro e embasbacou. Pôs-se à procura da imagem adequada para descrever a alteza duma tal aparição. Deitou fora umas palavras imponentes, recusou lugares-comuns muito pisados, e o mais que lhe saiu da veia criativa foi a nau capitaina duma armada invencível, a pedir meças ao mundo. Porém este viajante nunca gostou de naus, e muito menos se fia em flotilhas indomáveis. Acabou muito contente, por nunca ter nascido sarraceno invasor. Que a visão do castelo, àquela hora da noite e num lugar assim, é uma fascinação que alvoroça qualquer um. E o viajante esteve a pontos de ceder ao insensato desejo de mostrar a uns artistas que agora andam na moda, como é que resolviam os arquitectos antigos o ingente conflito entre a forma e a função.
Depois disso recolheu à pousada e foi ler os seus roteiros. Logo soube que Trancoso é terra de largas famas, nem todas neutras, como esta do padre Costa. Parece hoje uma lenda de almanaque. Mas as terras antigas são assim, guardam histórias que nos não cabem na cabeça. Esta é tão extraordinária que o viajante se dá pressa em contá-la, antes que ela lhe escape.
O padre Costa tinha sessenta e dois anos e era prior de Trancoso em 1487, quando se viu degredado das ordens sacramentais. E em vistas de ser arrastado nos rabos dos cavalos, esquartejado o corpo e postos os seus quartos em diferentes distritos, cumprindo-se a sentença que da pena do juiz lhe veio a cair em cima. Dando agora de barato a barbárie dos tempos, tão diversa da brandura com que hoje são tratados diferentes malfeitores, é de crer que houvesse no caso maroscas de relevo. Fiquemo-nos apenas pelos quesitos provados, que o caso espanta, se não arrepiar.
O padre Costa dormiu com vinte e nove afilhadas, e fez nelas noventa e sete filhas fêmeas e trinta e sete varões. Em cinco irmãs engendrou dezoito meninas. De nove comadres teve dezoito raparigas e trinta e oito rapazes. Sete amas conceberam dele, e deram-lhe cinco filhas e vinte e nove filhos. Duas escravas, que também alcançaram, pariram sete fêmeas e machos vinte e um. Biblicamente conheceu Ana da Cunha, uma tia de quem teve três meninas. E nem a própria mãe se viu desobrigada, que dele acabou a conceber dois filhos varões.
O burgo de Trancoso, onde o viajante pernoitou, devia estar guardado numa caixa de jóias. Fizeram-no aqui, neste espigão do planalto, num tempo em que a história se fazia a povoar territórios e a ferir guerras por eles. As guerras feridas já passaram de moda, mas não os povoamentos, conforme temos visto. E o burgo ainda aqui está, a alimentar-se de séculos, a resistir ao tempo.
Quem quiser saber como é que ele resiste, há-de meter-se na pele do inimigo antigo. Dos vários inimigos que um dia o cobiçaram. Há-de estudar-lhe o entorno, medir-lhe os ângulos mortos, sondar-lhe um ponto fraco. Não é o exacto caso deste viajante, que não veio em pé de guerra a derrubar castelos, antes a farejar-lhes pontos fortes. Por isso deu aquela volta larga, ontem à noite, antes de recolher. Passou à estrada de S. Marcos, desceu ao Chafariz do Vento, voltou à esquerda na estrada real, e virou outra vez na direcção da vila, no cruzamento da Cruz da Galega. O viajante diz vila, sabendo já que lhe mudaram a patente. Dizem que a subiram a cidade. Mas este viajante, que de promoções de escrivaninha conhece alguma coisa, não leva a sério a novidade. Trancoso não precisa de se pôr em bicos de pés para ser a vila mais formosa destes planaltos antigos, supõe o viajante que é preciso muito andar para lhe encontrar coisa parecida. E assim deveria continuar, mas adiante.
Quando avistou o castelo, iluminado no penhasco fronteiro, o viajante saiu do carro e embasbacou. Pôs-se à procura da imagem adequada para descrever a alteza duma tal aparição. Deitou fora umas palavras imponentes, recusou lugares-comuns muito pisados, e o mais que lhe saiu da veia criativa foi a nau capitaina duma armada invencível, a pedir meças ao mundo. Porém este viajante nunca gostou de naus, e muito menos se fia em flotilhas indomáveis. Acabou muito contente, por nunca ter nascido sarraceno invasor. Que a visão do castelo, àquela hora da noite e num lugar assim, é uma fascinação que alvoroça qualquer um. E o viajante esteve a pontos de ceder ao insensato desejo de mostrar a uns artistas que agora andam na moda, como é que resolviam os arquitectos antigos o ingente conflito entre a forma e a função.
Depois disso recolheu à pousada e foi ler os seus roteiros. Logo soube que Trancoso é terra de largas famas, nem todas neutras, como esta do padre Costa. Parece hoje uma lenda de almanaque. Mas as terras antigas são assim, guardam histórias que nos não cabem na cabeça. Esta é tão extraordinária que o viajante se dá pressa em contá-la, antes que ela lhe escape.
O padre Costa tinha sessenta e dois anos e era prior de Trancoso em 1487, quando se viu degredado das ordens sacramentais. E em vistas de ser arrastado nos rabos dos cavalos, esquartejado o corpo e postos os seus quartos em diferentes distritos, cumprindo-se a sentença que da pena do juiz lhe veio a cair em cima. Dando agora de barato a barbárie dos tempos, tão diversa da brandura com que hoje são tratados diferentes malfeitores, é de crer que houvesse no caso maroscas de relevo. Fiquemo-nos apenas pelos quesitos provados, que o caso espanta, se não arrepiar.
O padre Costa dormiu com vinte e nove afilhadas, e fez nelas noventa e sete filhas fêmeas e trinta e sete varões. Em cinco irmãs engendrou dezoito meninas. De nove comadres teve dezoito raparigas e trinta e oito rapazes. Sete amas conceberam dele, e deram-lhe cinco filhas e vinte e nove filhos. Duas escravas, que também alcançaram, pariram sete fêmeas e machos vinte e um. Biblicamente conheceu Ana da Cunha, uma tia de quem teve três meninas. E nem a própria mãe se viu desobrigada, que dele acabou a conceber dois filhos varões.
Ser pai dos próprios irmãos era exagero que nenhum cânone tornava obrigatório. Do virtuoso preceito constava apenas ser pai na clemência e irmão no sofrimento. Porém em separado. Mas o padre Costa não entendia assim. E o viajante, metendo o nariz onde não é chamado, acha cruenta a sentença mas acaba a concordar com o tribunal. Muito melhor decidiu el-rei João II, que tinha um reino inteiro a governar e poder para o fazer. Perdoou a morte ao padre Costa e mandou-o libertar, por tanto se esforçar a povoar a região das altas beiras, tão ermadas ao tempo como agora voltam a estar. É caso para dizer que um forte rei fortalece a fraca gente. E não faltarão cobiças por aí, de tais cometimentos. Não é o sentir deste viajante, que finalmente adormeceu tranquilo.
(...)
terça-feira, 4 de agosto de 2009
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