sábado, 8 de agosto de 2009

Portugalmente (47)

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O viajante tem palmilhado léguas solitárias, na esperança de fugazes companhias, conforme tem contado. E animou-se com a promessa de encontrar aqui gente, o que até agora não aconteceu. Fora a dona Lucinda na rua das Laginhas, para falar com alguém e calar ao mesmo tempo uns protestos do estômago que se julgava esquecido, o viajante vai ao restaurante. Sobe umas escadas e em boa hora o faz, porque assim consola ao mesmo tempo o espírito e o corpo. O recinto mantém o aconchego e a sisudez da pedra antiga, e há famílias sentadas à mesa, com crianças que falam francês. Uma hospedeira atenciosa recebe o viajante e recomenda-lhe as feijocas à maneira da avó. Este acabou rendido. Primeiro a um sorriso misterioso, mais tarde, e com mais proveito, às feijocas suculentas.
A vida padece aqui duma aguda sazonalidade. Balança entre a euforia das férias do verão, quando não cabem nas ruas o trânsito e o bulício, e o marasmo do resto do ano. E não é fácil um negócio assim, à espera de vacas gordas que nem sempre se confirmam, como diz o chefe do restaurante. Mais que a presença escassa do turismo, ou a deprimida população rural do concelho, o mercado dos serviços da vila é a gente da emigração. Mas nem isso é o que já foi. Tempos vão em que o dinheiro girava, os pleitos fervilhavam, e se disputavam serviços e honorários a litigar às vezes um canto duma horta. Em viaturas de ocasião, os emigrantes chegavam aí e tudo eram negócios e comércios, e urgências de construir a casa e mobilar os sonhos, e febres de mostrar vitórias sobre a miséria. Era preciso chegar antes das sete à praça, mais tarde já não havia no talho um naco de bom lombo.
Hoje o emigrante chega, quando vem, em viatura de boa marca, para degolar a hidra das saudades. Veraneia, quer alguma diversão, mas já não sonha. Nem o dinheiro é quanto parece, nem já tem que mostrar nada a ninguém. Ora a força dum concelho é a da gente que nele vive, e a riqueza que produz.
Assim pensa o patrão do restaurante, e o viajante só pode concordar. Sai dali reconfortado, e ainda bem que veio à hora certa, que os comensais atrasados esperam agora a vez na escadaria. Mas o viajante não tem tempo a perder. Vai até ao pelourinho, de graciosa gaiola manuelina, ali num recanto do largo. Corre outra vez o olhar pela arejada praça, que umas fachadas negligentes incomodam, e aproveita-lhe a luz e a calmaria. Fica ela a resistir conforme pode às conspirações insistentes da pedra, que parecem estar na moda. E o viajante vai à porta lateral da igreja de S. Pedro, que por acaso ou sorte sua encontra aberta.
Houve aqui antigamente um templo românico, mais acanhado e modesto. Fizeram dele o que é hoje no tempo do rei magnânimo, que tinha o país por conta, a construir em Mafra a sua babilónia. Foi preciso ir buscar pedreiros à Galiza, para restaurar esta igreja. E em boa hora chegaram, que logo foram encontrar numa parede umas trovas do Bandarra, escondidas ali há uns duzentos anos. Dir-se-á que o viajante veio aqui a ocupar-se de lendas. E lendas serão elas, mas já foram verdades juradas por gente que era importante, e ainda hoje continuam a ouvir-se.
O Bandarra é outra das famas de Trancoso, e não será das melhores. O viajante já leu, e mais ainda ouviu falar dum sapateiro com auras de visionário, que ditava profecias, predições, enigmas, futurações. Veio aqui para ver o túmulo onde dizem que repousa. Está ali embutido na parede, e foi mandado fazer em sua honra por “um grande de ao pé do Tejo”, cem anos depois de ter morrido o pobre do sapateiro. É um verdadeiro mausoléu. E a Inquisição mandou picar-lhe as inscrições, que se ao Bandarra meteram em trabalhos durante a curta vida, menos ainda o deixaram em sossego, muitos séculos depois de ter morrido. Agora que veio e viu, não sobra ao viajante qualquer hesitação. Não há aqui nem sombra do Bandarra, nem ele profetizou coisa nenhuma. Concertou uns sapatos, disse umas redondilhas de pobre-diabo, e ainda hoje não conhece as malas-artes que o conduziram um dia às fogueiras do Rossio. Tudo o resto são invenções do mundo.
Não é isto o que o povo quer ouvir, nem o que interessa aos grandes de ao pé do Tejo, o viajante bem o sabe. Mas logo que possa explicará melhor, que agora tem pressa de partir. A vida está lá fora e é breve. E a Corredoura há-de andar cheia da gente do verão, entretida nas compras.
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