sábado, 8 de agosto de 2009

Portugalmente (50)

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Estes campos do irracionalismo, em que o viajante caiu, são-lhe agrestes e penosos. Quase tanto como o sol, que lhe desaba nas costas como um castigo do inferno. O taxista aceita de bom grado uma cerveja onde a houver. E ambos acabam à mesa dum bar, que guarda o nome dum conde, a falar sobre o Bandarra. Um dia destes vai ter um museu na terra, dizem os planos da câmara, acrescenta o taxista. Porque têm, para gastar, dinheiro a mais, insiste o inconformado viajante, que não sabia de nada.
O Bandarra, conforme a alcunha o crismou, pouco mais foi do que um pobre diabo. Andou aos baldões por este mundo e foi jogado por ele. E jogado sobretudo por quem mais se demonstrou seu ferrenho amador. Era uma dessas cabeças atiladas, que às vezes nascem do povo, e vivem aprisionadas numa condição em que não cabem, sem lhe poderem escapar. De espírito aguçado e uma invejável memória, cumpria bem ou mal o seu ofício, lia e relia uma bíblia emprestada, a pontos de lhe saber de cor longas passagens. E do que não sabia tirava analogias, já discorria como grandíssimo teólogo.
Os marranos, que abundavam no seu mundo, eram uma gente em cerco desesperado. Mais que na aflição da miséria, viviam na angústia do transitório, na incerteza dos haveres, na insegurança das vidas. Ecoavam-lhes no peito as promessas do Messias, de que lhes falava O Livro, e não tardaram a buscá-lo nas concordâncias do Bandarra. Visionário como todos os profetas, tinha aquele ar de ovelheiro, a quem Deus é bem capaz de confiar os segredos do mundo. E vinham de longe, a consultas, ouviam-no como a oráculo, alguns o tratavam como rabino dos seus. Tal e qual como faz quem vai à bruxa, hoje em dia.
O viajante não escolhe as palavras, não pode fazer doutra maneira. Mas ao taxista não falha a compreensão, sobretudo ao ouvir falar de bruxas. Não há semana em que lhes não leve carradas de devotos, à procura de milagres.
Em Espanha tinham os judeus vivido transes parecidos. E foi de lá que vieram umas coplas proféticas, duns troveiros visionários, a prometer a salvação pela mão dum príncipe, que chamavam Encoberto. É de crer que foi a partir delas que o Bandarra começou a fazer trovas. Ninguém sabe quem as passou a limpo, andavam por aí copiadas à mão, com letra de cada um. E prometiam aos judeus o Messias, um encoberto que ainda hoje não veio. Ninguém as conheceu no seu original, por todas as versões serem diferentes. E alguma delas foi parar à mão da Inquisição, que não podia tolerar semelhantes despautérios. Chamou o Bandarra a capítulo, vestiu-lhe o sambenito, levou-o à procissão dos condenados. Mas perdoou-lhe a fogueira, por não trazer no rústico semblante qualquer sombra de pecado. O pobre voltou para casa vedado de fazer trovas, de voltar a ler a bíblia ou falar dela. Quem sabe se foi então que acabou a recolher-se na casa do Nogueirão, para se afastar do mundo. Pois tão bem lhe assentou a lição que ninguém mais o ouviu.
Um dia o Bandarra morreu mas ficaram as trovas, que um povo já naufragado só nelas guardava esperança. O rei lunático desaparecera em África e o reino ficara sem cabeça, sujeito ao inimigo de Castela. Só nas trovas havia consolação. Foi por isso que apareceu a primeira edição delas, pela mão dum fidalgo importante. Para dar esperanças ao povo, pôs o Bandarra a dizer que el-rei um dia havia de voltar, saído do nevoeiro.
Mas o rei não apareceu, em seu lugar ficaram os castelhanos. E a clerezia, que metera o sapateiro num inferno por causa dumas trovas, começou a realçá-las nos sermões, e a exaltá-lo nos púlpitos. Fizeram-lhe um mausoléu em pedra lavrada na igreja de S. Pedro, encheram-no de ar e vento. Um dia expuseram-lhe o retrato na catedral de Lisboa, trataram-no como a um santo. E logo um outro fidalgo fez nova edição das trovas, agora acrescentadas de umas outras que se disseram achadas em poder dum tal Pacheco, da idade do sapateiro, há uns cem anos atrás. Desta vez o Bandarra anunciava a restauração dos Braganças.
Um século depois ainda apareciam trovas novas, que uns pedreiros vindos da Galiza foram descobrir na capela-mor da igreja de S. Pedro. E lá punham o Bandarra a adivinhar as guerras do Napoleão, depois de elas terem vindo.
O importante desta história não é o que deixou dito o sapateiro, mas o que na boca lhe puseram os poderosos, para melhor conduzirem o rebanho. Primeiro foi messiânico, depois foi sebastianista, e acabou a adivinhar incertas restaurações. Mas tudo o que o Bandarra fez, e outros fizeram por ele, foram uns versos de sapateiro remendão. Davam para explicar tudo, consoante as aflições. Se ele pudesse imaginar o que iam fazer das trovas, não as contava a ninguém. Ainda hoje enchem barriga a muita gente, pelos vistos vão pô-las num museu. Que Portugal habituaram-no a charadas, e já não vive sem elas.
- Você acredita nessas patranhas? - perguntou, no final, o viajante.
- O mal da gente é o fraco saber! - concedeu o taxista.
- É devagar que o diz! - conclui o viajante, sem outras explicações.
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