sábado, 8 de agosto de 2009

Portugalmente (49)

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O burgo de Trancoso devia estar numa redoma, já o disse o viajante. Para o resguardar do tempo e das distracções dos homens. E ao dizê-lo era da vetusta geometria que falava, da respiração que há nela, dos jogos da pedra antiga, das vidas que ali estão guardadas nas muralhas. Não há no planalto outro lugar assim. Mas o viajante estava a pensar no burgo e não nas pessoas dele, que mais remédio não têm senão obedecer à lei das glórias que passam, tudo tem um fim na vida. Não parece ser o caso desta câmara, cujo comando é do mesmo partido há trinta anos, desde que há eleições. Com razão se vai dizer que o poder ganhou cama e deitou-se a dormir nela.
Um espírito simplório ou apressado há-de ver nisto um sinal de bom governo, com geral satisfação dos eleitores. Ou que não há em Trancoso alternativa, por ser tão pouca a gente. Ora o viajante há muito que perdeu a ingenuidade, e não é o que tem visto. Quando o poder se sente em casa sua, é como o vilão em casa do sogro. Aperta as rédeas do mando, embaralha e torna a dar no jogo das influências, condiciona os eleitores. Há-de ser o que aqui acontece. A câmara é o maior empregador, em assessorias caprichosas, em burocracias próprias, em mão-de-obra menor. E nos equipamentos colectivos como é a biblioteca, e o centro cultural, e o pavilhão multiusos, e as piscinas municipais, e os espaços da Internet, e a oficina do turismo, para não falar do desporto. Depois vem a Misericórdia, as creches, o lar de idosos, os serviços de apoio ao domicílio. Seguem as empresas municipais e a associação comercial, que remam para o mesmo lado. Nem a escola profissional há-de escapar ao garrote. Num quadro destes, qualquer ideia de serviço público se torna um mito risível. Resta apenas a ideia linear de governar a vida, distribuindo benesses a clientes, como quem reparte um bolo.
Ganha afinal o partido e alguns nele, e quem perde é o país. Isto fica a protestar o viajante. Mas bem pode protestar quem assim canta de galo, que mora longe e veio aqui em romagem. Num tal colete de forças, quem quiser comprar no cemitério uma sepultura perpétua, para guardar um dia os ossos, pedirá duas vezes conselho ao travesseiro antes de se alistar na oposição. Vão dizer que são assim as artes da política, que no final o povo é quem mais ordena, chegando à urna dos votos. Mas este viajante não se dá por convencido.
Fedeiro como é e lhe compete, vai ler o viajante os dizeres duma placa, à esquina do edifício. É uma homenagem aos militares do concelho, que lutaram nas províncias ultramarinas pela continuidade de Portugal e pela integridade da Pátria. Ao viajante deslumbra esta linguagem e já renova a leitura. A ver se Portugal continua afinal, a ver se terá ficado inteira a Pátria. Outra vez leu, e outra vez ficou sem certezas nenhumas. Assim atingido pela bala desta surpresa, termina a conciliar. Em terra onde as trovas abundaram, não fica mal uma nova, mesmo que não seja do Bandarra.
Há-de parecer de propósito, anda-lhe à volta um fulano a esmiuçar a estátua, no jardinzito do largo. Tem a altura do sapateiro, o curioso, e agrada-se da figura, do mais puro filão naturalista. Já reparou na folha de metal, por baixo do maçadoiro.
- Ou foi o céu que baixou, ou a terra levantou! Como é que o homem sabia?
- Você acredita nisso?!
O homem é taxista numa aldeia, não diz que sim nem que não. Olha a forma de sapato que ali está, e o maço de bate-solas, dois símbolos realistas que muito bem compreende. Sobe o olhar pela figura, que saiu agora mesmo dum encontro de salão, os borzeguins num primor, o calção listrado de janota, a golinha do gibão, o chapeirão sobraçado, a aparada cabeleira. Não entende o pergaminho enrolado que a figura tem na mão, e lhe simboliza as trovas. Lê na barra do poial uma legenda: Gonçalo Anes Bandarra, poeta, profeta e sapateiro de Trancoso.
- Sapateiro foi, por certo, e poeta terá sido. Já do profeta, duvido! Você acredita nisso?
- É como quem vai à bruxa, a gente sabe lá! Numa aldeia que é perto da minha, no sítio do Nogueirão, diz-se que até lá viveu!
Em baixo, no rodapé, já escrito ao rés-do-chão, uma frase de Pessoa: Bandarra, símbolo eterno do que o povo pensa de Portugal. Rigorosamente nada, faltou aqui rematar.
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