quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Portugalmente (45)

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Enquanto sobe e desce o pau folgam as costas, pensa o viajante, que já chegou ao largo do Castelo. Pena é estar cerrado este portão da alcáçova, em trabalhos de valorização, avisa um edital. E se perdem agora os olhos do viajante em largueza de vistas, queira Deus que não saia mais tarde um dano ainda maior, da banca do paisagista. É um temor que a experiência nos vem aconselhando.
Um largo destes é o lar de um burgo, aqui lhe moram os deuses protectores, se não é forçada a figura. Irradiam daqui as ruelas mais antigas, por entre as casas baixas, mal passa um homem nas portas sem dobrar a cabeça. E razão maior é esta para lhe respeitar o ser essencial. Ora o viajante já fecharia os olhos a descuidos menores, a intervenções menos felizes, o mundo não é perfeito. O que não entende é a profanação que ali se vê ao lado, uma agressão absurda ao património. Varreram-se as casas de outro tempo, montaram-se uns andaimes, ergueu-se a construção disparatada que ali ficou à vista. E havia já democracia, havia autarcas eleitos, havia uma sugestão de bem comum. E houve um projectista que deu assinatura. E um arquitecto que autorizou aquilo. Olha-se o resultado, e acaba-se a duvidar daquilo que os olhos vêm.
Mais transparentes do que noutros lugares, sempre houve deuses caseiros nestas terras. Um médico ou um juiz, um qualquer doutor de leis, foram durante séculos figuras tutelares. Sobretudo depois de terem passado os verdes tempos da fidalguia de antigo regime. Já o mestre Gil Vicente, a quem a comissão da toponímia atribuiu uma rua ali ao lado, zurzia procuradores e quejandos. Mas de bem pouco lhe valeu a pregação, que ser doutor foi sempre a chave do triunfo. E triunfar era mandar no mundo e acumular riqueza. A vila era o centro da comarca, da província, de toda a região. Nela se buscava o direito, se o havia, nela a cura das maleitas, nela se entregava a décima. Nos mercados se vendia e trocava, na feira de Agosto se pagavam as rendas, se faziam contratos, se fechava a roda do ano.
A vila fornecia serviços e aceitava cortesias, ainda hoje não tem outra função. Nos dias de mercado começava mais cedo o horário doméstico, para a criadagem receber de madrugada as primícias que vinham das aldeias, à hora dos camponeses. Uma galinha numa alcofa, um cabrito a berrar num barbante, um cabaz de cerejas temporãs. A agradecer um favor, a pedir uma atenção, a pagar o direito de existir.
O ciclo da servidão veio a romper-se com o tempo, e com o tumulto brutal da emigração. Um milhão e meio de camponeses fugiu a salto para a Europa, em menos de quinze anos. E o país pagou um preço alto pelo motim. Mas deixaram de correr de madrugada as peias que vinham das aldeias, a vassalagem morreu, e os deuses caseiros deixaram de existir. A este viajante só compete olhar e ver. E vendo bem, melhor andava a comissão dos paisagistas, nos seus trabalhos de valorização da cidadela, se mandasse implodir o espantalho que ali está.
O viajante desce a rua das Laginhas, quer esquecer-se da história. Desvia-se dos tufos das hidrângeas à raiz das paredes, das latas de gerânios que emolduram as portas, olha estas casitas baixas e acaba emocionado. Lembra-se dos chalés modernos que invadiram as paisagens, muitos deles casas frustradas, e não sabe o que pensar dumas e doutras. Encontra a dona Lucinda, que mora aqui e tem cá bons vizinhos, terão ido à Corredoura, a fazer alguma compra. Ela já mal pode andar, quem lhe vale são as moças da Misericórdia que passam todos os dias. Trabalhou toda a vida em casa duns senhores, nas lidas da cozinha. Um dia os patrões morreram, os filhos viviam em Lisboa e mandaram vender tudo. E a dona Lucinda, que já não tinha préstimo, arranjou esta casita e veio morrer nela. Bons eram esses tempos, duas vezes por ano ia a Lisboa, de comboio mais uma colega, a fazer as limpezas maiores num casarão da praça das Flores. Agora...
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