quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Portugalmente (43)

(...)
6
O burgo de Trancoso, onde o viajante pernoitou, devia estar guardado numa caixa de jóias. Fizeram-no aqui, neste espigão do planalto, num tempo em que a história se fazia a povoar territórios e a ferir guerras por eles. As guerras feridas já passaram de moda, mas não os povoamentos, conforme temos visto. E o burgo ainda aqui está, a alimentar-se de séculos, a resistir ao tempo.
Quem quiser saber como é que ele resiste, há-de meter-se na pele do inimigo antigo. Dos vários inimigos que um dia o cobiçaram. Há-de estudar-lhe o entorno, medir-lhe os ângulos mortos, sondar-lhe um ponto fraco. Não é o exacto caso deste viajante, que não veio em pé de guerra a derrubar castelos, antes a farejar-lhes pontos fortes. Por isso deu aquela volta larga, ontem à noite, antes de recolher. Passou à estrada de S. Marcos, desceu ao Chafariz do Vento, voltou à esquerda na estrada real, e virou outra vez na direcção da vila, no cruzamento da Cruz da Galega. O viajante diz vila, sabendo já que lhe mudaram a patente. Dizem que a subiram a cidade. Mas este viajante, que de promoções de escrivaninha conhece alguma coisa, não leva a sério a novidade. Trancoso não precisa de se pôr em bicos de pés para ser a vila mais formosa destes planaltos antigos, supõe o viajante que é preciso muito andar para lhe encontrar coisa parecida. E assim deveria continuar, mas adiante.
Quando avistou o castelo, iluminado no penhasco fronteiro, o viajante saiu do carro e embasbacou. Pôs-se à procura da imagem adequada para descrever a alteza duma tal aparição. Deitou fora umas palavras imponentes, recusou lugares-comuns muito pisados, e o mais que lhe saiu da veia criativa foi a nau capitaina duma armada invencível, a pedir meças ao mundo. Porém este viajante nunca gostou de naus, e muito menos se fia em flotilhas indomáveis. Acabou muito contente, por nunca ter nascido sarraceno invasor. Que a visão do castelo, àquela hora da noite e num lugar assim, é uma fascinação que alvoroça qualquer um. E o viajante esteve a pontos de ceder ao insensato desejo de mostrar a uns artistas que agora andam na moda, como é que resolviam os arquitectos antigos o ingente conflito entre a forma e a função.
Depois disso recolheu à pousada e foi ler os seus roteiros. Logo soube que Trancoso é terra de largas famas, nem todas neutras, como esta do padre Costa. Parece hoje uma lenda de almanaque. Mas as terras antigas são assim, guardam histórias que nos não cabem na cabeça. Esta é tão extraordinária que o viajante se dá pressa em contá-la, antes que ela lhe escape.
O padre Costa tinha sessenta e dois anos e era prior de Trancoso em 1487, quando se viu degredado das ordens sacramentais. E em vistas de ser arrastado nos rabos dos cavalos, esquartejado o corpo e postos os seus quartos em diferentes distritos, cumprindo-se a sentença que da pena do juiz lhe veio a cair em cima. Dando agora de barato a barbárie dos tempos, tão diversa da brandura com que hoje são tratados diferentes malfeitores, é de crer que houvesse no caso maroscas de relevo. Fiquemo-nos apenas pelos quesitos provados, que o caso espanta, se não arrepiar.
O padre Costa dormiu com vinte e nove afilhadas, e fez nelas noventa e sete filhas fêmeas e trinta e sete varões. Em cinco irmãs engendrou dezoito meninas. De nove comadres teve dezoito raparigas e trinta e oito rapazes. Sete amas conceberam dele, e deram-lhe cinco filhas e vinte e nove filhos. Duas escravas, que também alcançaram, pariram sete fêmeas e machos vinte e um. Biblicamente conheceu Ana da Cunha, uma tia de quem teve três meninas. E nem a própria mãe se viu desobrigada, que dele acabou a conceber dois filhos varões.
Ser pai dos próprios irmãos era exagero que nenhum cânone tornava obrigatório. Do virtuoso preceito constava apenas ser pai na clemência e irmão no sofrimento. Porém em separado. Mas o padre Costa não entendia assim. E o viajante, metendo o nariz onde não é chamado, acha cruenta a sentença mas acaba a concordar com o tribunal. Muito melhor decidiu el-rei João II, que tinha um reino inteiro a governar e poder para o fazer. Perdoou a morte ao padre Costa e mandou-o libertar, por tanto se esforçar a povoar a região das altas beiras, tão ermadas ao tempo como agora voltam a estar. É caso para dizer que um forte rei fortalece a fraca gente. E não faltarão cobiças por aí, de tais cometimentos. Não é o sentir deste viajante, que finalmente adormeceu tranquilo.
(...)