quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Portugalmente (3)

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- O que é que o senhor procura?!
A interpelação acorda-o, e vem duma mulher vestida de preto, de vassoura na mão, no gesto de quem varre o pátio de cimento. O viajante já se tinha esquecido do que um dia leu nuns livros, mas aqui se lembrou novamente de que as palavras são mais que simples pedras atiradas ao vento. São como um cristal as palavras, disse-o quem o sabia. Há que tomá-las na sua circunstância, atentar na moldura que as envolve, e observar com muito atendimento a ramagem que as enfeita. Não fora o tom cantado da voz, o sorriso aberto na cara desta miúda silhueta escura, e assim tão de surpresa interpelado, com tais palavras e uma lança nas mãos, lá ia o viajante, castelhano não sendo, pôr-se a imaginar uma padeira nova de Aljubarrota. Muita injustiça há neste mundo!
- Queria ver a sua igreja, por fora é bem bonita! Sabe quem tem a chave?
- Pois tem a porta aberta, aí ao lado! E o cemitério antigo, lá atrás, veja à sua vontade!
O viajante já viu muitas igrejas, já sentiu nelas o tempo e também o abandono, em algumas sofreu os pesados odores acumulados. Faltava-lhe ver esta, neste lugar esquecido, para ficar encantado com tamanho esmero, nas pinturas, nas talhas singelíssimas, as próprias caras dos santos, tão lavadas que estão, parece que foram postas aqui ontem, se não foi esta manhã que chegaram do céu. Tudo isto foi restaurado em Braga, há pouco tempo, há-de explicar a mulher de preto, quando o viajante voltar à conversa com ela. Mas antes vai subir as escadas da torre sineira, para ver estes dois sinos de um fundidor que houve em Trancoso, um tal João Fernandes, há um século atrás. Há-de ver, o viajante, os telhados da aldeia a despenharem-se encosta abaixo, alguns feitos de novo, e muitos outros, já velhos, a ameaçar ruína. Há-de olhar, lá em cima, as penedias do antigo castelo, ainda hoje assim o nomeiam, embora nada reste do que foi algum dia. E há-de pedir a todos os deuses que vigilem o sono de tamanhos fraguedos, se um dia dão em mover-se a casa da sua amiga informadora é a primeira a cair, a segunda é a capela mais os santos, logo a seguir lá vai a aldeia toda parar à Ribeirinha.
Não será isso por certo antes de o viajante dar uma vista de olhos ao cemitério antigo, espaço exíguo por trás da capela, que pena estarem cobertas de argamassa as pedras de granito deste velhíssimo templo doutras eras, mesmo se retocado, mesmo se levantado, mesmo se acrescentado. O viajante encontra a era de 1766 gravada numa pedra. Terá sido então que alguém fez levantar o corpo do templo, para lhe caber ao fundo um coro. Assim alteado o encume, ganharam os fiéis em espaço o que perdeu o templo em harmonia e proporção.
O velho cemitério é um jardim onde restam antigas cabeceiras, e grades de ferro pintadas de branco, e cruzes avulsas que repousam, encostadas à parede. Subitamente ouviu-se um grito de pavão, ali ao lado, por trás da sebe duma horta. E o coração do viajante deu-lhe um salto no peito, era na infância que ouvia o cantar dos pavões do senhor conde, vindo de dentro da cerca, parecia-lhe aquilo um grito desesperado, ou o ralhar dum bicho tomado de fúria, o viajante voltou à infância e viveu o mesmo sobressalto, quis outra vez subir a parede, quis espreitar de novo através da cortina dos buxos antigos mas não viu pavão nenhum, apenas umas pombas prisioneiras atrás duma rede de galinheiro. Desconsolado, voltou ao adro da capela, onde a pacífica padeira de Aljubarrota estava ainda a varrer o seu pátio.
- Bem alta, a sua casa!
(...)