sexta-feira, 14 de novembro de 2008

Portugalmente (1)

[Não é certo que o título seja inédito. Se o não for, santa paciência!
Menos ainda é segura a legalidade da palavra.
Já quanto ao significado... venha o diabo e escolha um deles!]

Os países da literatura são todos inventados.
Só existem se lá formos.


1
Não foi este viajante que empurrou os portugueses para a borda do mar. Terá nisso culpas no cartório, pois natural, se há muito se diz que não há inocentes no mundo, e a comprová-lo vem aqui a fábula do cordeiro e das águas enturvadas, não nos bastando a bíblia sagrada, madre das fábulas todas. Porém o viajante não se sente inculpado. Não é seu o delito de que as terras do longo litoral se hajam tornado lugares inabitáveis, iguais a formigueiros aturdidos, onde não pode já uma qualquer formiga espreguiçar em sossego as antenas, passear nelas a mão e temperar-lhes o fio delicado, para saber orientar-se nos carreiros da charneca. Não pode já, sendo formiga, seguir a sua natureza, que logo lhe esbarra o cílio no ombro dum vizinho, logo lhe empanca no ventre um quarteirão inteiro, logo lhe passa por cima um comboio suburbano.
O viajante não tem culpa de que se haja tornado o país nesta barcaça mal tareada, de peso maior todo a um lado, ousasse ela erguer o ferro e zarpar do cais peninsular, logo adornaria a estibordo. Ora o viajante há muito que detesta naufrágios, e mais ainda se teme deles. Desde menino lhe contaram que é dum país de marinheiros destemidos, mas desconfiou sempre da patranha, tão tarde que viu o mar. E quanto mais lhe foi pesando a vida, mais incréu se tornou.
Depois de andar às voltas pelo mundo, chegou um dia ao alto da Portela, viu a Ribeirinha a espraiar-se entre a serra do Galgueiro e a serra do Vidoal, ao longe o tule ténue da Estrela, mais perto, lá ao fundo, a pesada cortina do monte do Almansor, e ali se deixou ficar. É lá que esta viagem principia, assim conheça Deus onde ela levará, o viajante não o sabe. Basta-lhe por enquanto o sol manso do começo da tarde, este ar limpo de Maio, e a brisa arisca que do norte vem.
Mergulhado na crespa natureza destas serranias, é o vale da Ribeirinha um lugar ameno, assim como um regaço da mãe-terra aberto ao sul, protegido da lâmina inclemente dos ventos e das geadas negras que vêm das terras do demo. Nem admira, pois há muito se sabe que o frio almoça na Guarda, faz um alto para jantar em Trancoso, e finda a jornada a cear em Penedono.
Começa a Ribeirinha a juntar águas nas alturas da Fonte do Milho, lá vai somando arroios e regatos, mais o fio ínfimo das nascentes que lacrimejam nas encostas, mata as sedes que em seu redor achar, e acaba a entregar as demasias nos braços do Távora quando chega à lezíria, lá ao fundo. Cumpriu ela a preceito o seu papel no mundo, passou o testemunho, abençoada seja.

(Continua)