Em Maio de 68 os generais mandaram-me para a guerra de Angola. E eu lá fui. A viagem era num velho DC6, um quadrimotor decrépito que se arrastava costa abaixo, guiando-se pelos padrões que os velhos navegadores tinham semeado nas praias.
O primeiro percalço aconteceu antes da partida. Às onze da noite, no aeroporto, os passageiros foram informados de que a partida sofrera um atraso de 24 horas. Eu lá dormi numa pensão qualquer, e o dia seguinte passei-o na Feira do Livro, que na altura acontecia na avenida da Liberdade. Comprei lá um livro dum japonês e outro dum sul-americano, um Miguel Angel qualquer. Dois prémios Nobel, nem mais.
E lá partimos, num grande estrondo por cima do Areeiro, que começava a dormir. Alheado e imprevidente, não tratei do farnel. E o que me valeu foi o salame de chocolate que a Mitina levava. (A Mitina era a mulher dum camarada que também fora mobilizado).
Quando aterrámos nos Espargos, na ilha do Sal, a tripulação informou-nos de que havia uma avaria num dos motores. Era preciso que a TAP trouxesse de Lisboa uma peça sobresselente. Tínhamos que esperar.
Nós encontrámos refúgio na enfermaria, onde dormimos duas noites. Os restantes passageiros desenrascaram-se como puderam. Na parte de trás do avião acampava um grupo de marinheiros. Mais à frente havia mulheres com filhos, e cheiro a papas e fraldas. O sol inclemente encarregava-se do resto.
Mas a peça lá chegou e acabámos por partir. Na escala da Bissalanca não chegámos a sair. Apenas nos inundou a bafósia inclemente da Guiné. E finalmente aterrámos em Luanda.
Os generais hesitaram uma semana e finalmente decidiram. Mandaram-nos para o Negage, onde só havia aeronaves que nunca conhecêramos. Nunca tínhamos feito exercícios de tiro, e lá acabámos por aprender alguma coisa com os alferes milicianos que lá estavam. O tecto da base aérea era um firmamento com as estrelas do hemisfério sul. E no grande hotel do Negage, ocupado pela Força Aérea, havia uma messe com música de luxo. Foi lá que eu conheci o Jacques Loussier, e as suas versões ligeiras do Sebastian Bach.
Um dia, passado um ano, acabou-se-me o gás. Destruí um avião e acabei no hospital. Os médicos lá fizeram o que sabiam. E eu acabei evacuado para Lisboa, com as cicatrizes que ainda guardo.