sábado, 8 de outubro de 2011

Pigas

Por ser dono deste espírito assim desassossegado é que o Tó acorda cedo. Hoje em dia, que já goza da reforma, bem podia ficar até mais tarde, abandonado ao choco dos lençóis. Mas não senhor! Ainda a manhã passeia por Castela e já ele vai charneca fora, à sua caminhada.
Um tal génio de galo madrugador vem-lhe desde a meninice, no tempo em que se criou numa ninhada de nove. E à medida que a vida passou por ele não fez senão agravar-se. Anos e anos andou atrás das ovelhas, era o pastor da família desde que saiu da escola. E quando se enfastiou dos recantos da charneca, e dos segredos que há nela, passou a trazer livros no alforge. Emprestavam-lhos no enxido, todas as quintas-feiras, na carrinha itinerante. Leu tantos livros de histórias, de aventuras e de reis, que até se esqueceu de alguns. Mas outros houve que lhe ficaram gravados.
Quando fez dezoito anos foi para o colégio da vila, por teimosias do padre. E num ano fez logo os primeiros dois, duma simples assentada. No segundo fez as Ciências do quinto, segundo a fórmula antiga.
Um dia partiu para França, queria desbravar o mundo. E viveu por lá um ano, a plantar árvores ao longo de auto-estradas.
Quando a pátria lhe sentiu a falta, e o chamou para as inspecções da tropa, assentou praça nas Caldas da Rainha. E seria, em Luanda, o primeiro classificado no curso de comandos, num regimento famoso que lá havia. Depressa o despacharam para Montepuez, para proteger dos macondes o distrito de Cabo Delgado.
Um dia deixou abandonada uma lata de sardinhas na picada e foi expulso. Era uma traição ao grupo. Passou à tropa macaca, mandaram-no a defender as obras duma barragem que andavam a construir numa garganta dum rio.
Passou, enfim, à peluda, quando a revolução chegou. E uma vez que regressara à aldeia, e deixara de passar a carrinha itinerante, voltou outra vez à vila. A ver se apanhava as Letras que tinham ficado atrás.
Assim foi cabo da guarda-fiscal, até que um dia lhe pediram cem contos para concorrer a sargento. Lá foi parar a Cacilhas, integrado na GNR. E já era graduado quando chegou a reforma, esta em que agora se encontra.
Tinha um filho, já crescido, um dia divorciou-se, voltou à aldeia outra vez. E há quem diga que era o dele, este espírito assim desassossegado que o faz acordar tão cedo. Mas não é de ir na conversa.