domingo, 16 de outubro de 2011

O mata-sete (1)

Nada se parece mais com certas guerras do que as rapaziadas de taberna ou as cenas da caça. Mantidas as distâncias, claro está, já que também as diferenças são grandes. Mas numas e noutras há sempre um mata-sete.
Personagem de estatura menos que mediana, com tendência para o tacão grossíssimo, larga panóplia de trejeitos amalandrados, e galhardia, muita galhardia, e façanhas inultrapassáveis. O João era assim, jovem piloto numa esquadra do norte de Angola nos idos de sessenta e tal.
O João estava com a sua gente, porque os pilotos menos jovens e menos milicianos tinham desde cedo começado a rarear. E lá se convenceu de que tinha uma fama qualquer a manter, entre a rapaziada. Descompunha-se com frequência em comentários ao tiro dos companheiros, em sarcasmos aos fracos resultados do reconhecimento. E já uma vez cometera a proeza de entrar num passe de bombardeamento, descobrir, pelo meio, alguma coisa que mexia noventa graus ao lado, mudar de alvo, dar cabo dele, e recuperar triunfante, com vivas interjeições soltas no rádio.
Era assim, e ninguém se zangava, o João que um dia saiu numa missão a chefe. Tratava-se do que as neps designavam como “missão de soberania”, um patrulhamento de fronteira, sobre um estranho rio que corria para norte. Ao contrário de todos os outros rios, que não descansam enquanto não vêem o mar, este corria para o centro da terra, desafiando as normas da sua condição. Lá ia, caudaloso, ora saltando cascatas apressadas, ora espreguiçando-se em meandros vagarosos que eram uma beleza de se ver, e onde os pescadores, em pirogas rombudas, aproveitavam para lançar as suas artes pré-históricas.
A viagem era longa e rotineira. Nunca se previam sobressaltos, nunca havia semelhanças entre um qualquer negro à pesca e um terrorista temível, a executar uma invasão a partir do Congo. E, para o combustível, lá estava a escala de reabastecimento prevista em Malanje. Era um passeio agradável, de um dia inteiro, à deslumbrante paisagem do norte angolano.
Os dois bombardeiros lá seguiam, à distância do regulamento, semeando na limpíssima atmosfera da manhã o arfante rataplã dos nove cilindros americanos de mais de vinte anos. Eram bombardeiros porque a tropa assim os nomeava, talvez para os distinguir dos outros, que não levavam bombas. Esses eram mais frágeis, mais silenciosos, quando apareciam era para trazer correio ou comestíveis frescos, um raro passageiro, quando não era para levar um cidadão felizardo que se tomou de febres, ou algum acidentado. Os bombardeiros não. Ouviam-se à légua, e a agressividade do seu roncar, a silhueta mais corpulenta e os artilhanços que arrastavam pendurados nas asas mereciam a designação.
Para os aviadores eram uma excelente arma de arremesso, e havia quem lhes chamasse o 110. Subiam a 110 milhas, cruzavam a 110 milhas, picavam a 110 milhas, pouco mais. Era uma caricatura. Mas a robustez que mantinham aqueles aços, depois das atracações que já tinham suportado na mão de sucessivas gerações de candidatos a pilotos, garantia o esmagamento completo do que apanhassem pela frente.
(...)