segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Portugalmente - 78

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A fidalga era uma das muitas filhas da casa dos viscondes, e nasceu em Salamanca. Corriam por então os tempos da República e os ares andavam torvos, dos brados de carbonários e pedreiros-livres. A quem trouxesse a consciência mais pesada, com motivos ou sem eles, só restava uma saída: passar de noite a fronteira e resguardar-se. Foi o que o visconde fez, enquanto se esfumava a poeirada, até poder regressar. E assim nasceu em Castela uma fidalga, que se já vinha dotada de condição e prebendas, mais medrou com as bênçãos da natureza.
Junto dos condes de Almendra encontrara entretanto acolhimento um mocetão de Foz-Côa, filho natural dum Távora remoto. A seu tempo se fez médico, a encargos do patrono. E foi o primeiro passo para vir a ser nomeado delegado de saúde, e administrador do concelho, e mais tarde o homem forte da União Nacional, um feudo de patriotas. Isto tudo muito antes da fundação da fábrica de azeites, cujo destino atrás se antecipou.
Quando lhes chegou a altura, o médico de Foz-Côa e a fidalga dos viscondes deram o nó sacramental. Ela juntava aos predicados naturais o património. E ele acrescentava o ceptro da autoridade, a figura impositiva e o poder. É com tais coligações que se edificam reinados.
Se o homem tinha má fama, o proveito era melhor. E famas leva-as o vento. O terror que infundia às criancinhas, que na consulta lhe mostravam a garganta tomada do garrotilho, só achava paralelo no rancor dos camponeses, que no lagar lhe sofriam o esbulho da funda a cinco. Por cem quilos de azeitona recebiam cinco litros, era pegar ou largar. Pior só assaltantes de estrada.
A fidalga era dez anos mais nova. E tinha uma figura de menina que fazia rir as rosas, quando descia a sentar-se no caramanchão. Os filhos foram chegando, como frutos naturais, conforme Deus os mandava. Só às vezes um reflexo no espelho do toucador, ou uma lágrima furtiva no recesso da alcova, traíam inconfidências que o peito ainda recusava e o tempo foi agravando.
Os encontros da família, ao repasto do jantar, eram momentos de aspérrima doutrina. Ninguém arriscava fala, qualquer simples transacção era através do mordomo. Às fêmeas e aos mais pequenos fê-los Deus para obedecer, era o primeiro mandamento. Por isso o doutor tinha no Porto, para reserva das hormonas, uma amiga de casa e pucarinho.
A fidalga não era senhora de ir à rua, de seu não tinha um tostão. E só a cumplicidade duma ama compassiva lhe permitia vender às escondidas uma medida de azeite, duas fanegas de trigo, para dispor dumas moedas. Fosse ele por ciúme ou por doideira, o doutor era um algoz. Humilhava a fidalguita diante das visitas, mais que uma vez lhe pôs as mãos na cara.
Quando à ama lhe cheirou a história com o Mal-Casado, deu-lhe o coração um baque. A fidalga abria o corpo ao serviçal, estendida na tarimba das cavalariças. E sorvia dele, em ânsias, o fio de humanidade que de outro lado não vinha.
- Muito mal vai à colmeia se a rainha se tresmalha! - gemia a pobre da ama. Mas nem ela imaginava o que estava para chegar.
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