Parece que Lucrécio dizia...
O olhar saboreia o morno vinho
envolve teus cabelos, bebe no teu rosto, adormece
dormente onde tu e as aves vêm pernoitar
aqui sentado, neste restaurante de praia
mosquitos, árvores reclinadas, talvez palmeiras envelhecidas como eu
a paisagem é um plano a preto e branco de filme neo-realista
pregos ferrugentos, madeiras soltas, a boca rente às areias
resíduos calcários de passos pelas ervas altas
águias, soberbas e lentas
(o puto move-se, apertado nas calças finas, como se tivesse o corpo e os movimentos forrados por uma película em matéria finíssima, transparente, deixando contudo aperceber as modulações do seu corpo-rebuçado)
bebo, apetece-me gritar no horizonte do meu filme mudo
embriagado e desfeito, olho
aves irradiando luz, cordas enceradas pela transpiração das mãos
as vozes dos homens numa rebentação distante da ressaca
as vozes dos homens puxando os barcos: só o mar das outras terras é que é belo
em grande plano
ocupando-me por completo o écran desfocado dos olhos
o algodão pobre da tua camisa, as unhas roídas
os dedos duros engordurados, o buço macio
despontando num desafio que eu aceito
espero que a noite venha com seus ínfimos sóis, e solte transparentes borboletas cobertas de mel
parece que só assim, dizia Lucrécio
tua imagem permanecerá perto de mim, e a doçura do teu nome insinuar-se-á
gota a gota, junto ao coração
[O Medo, Ed. Assírio e Alvim, Lisboa, Dez 97]