quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Ecos

O Carlos Barroco Esperança decidiu editar alguns textos já conhecidos do blogue Ponte Europa. E é uma boa decisão, porque há neles paisagens da guerra colonial, dum passado e duma meninice beirã de que já ninguém se lembra. Com vénia aqui se transcreve parcialmente BANDEIRA & PISTOLEIRO.
"Em Fevereiro de 1970, recém-chegado da guerra colonial, conheci o Sr. Bandeira, por intermédio de amigos oriundos do distrito da Guarda, no café Nova York. Era aí que nos reuníamos ao fim da tarde e após o jantar, em agradável convívio, enquanto ele tentava corrigir a oscilação das mesas e procurava estudar, intento frustrado pela instabilidade emocional.
O Bandeira, eterno aluno da Faculdade de Direito, entrava no café com um Código debaixo do braço, e abanava as mesas disponíveis para verificar se buliam. Percorria o café e desalentado voltava sempre à primeira mesa, para meter cunhas de papel até lhe conferir a firmeza possível. Não se dava por satisfeito mas resignava-se. O estudo é que não rendia, com aquela apoquentação de poder baloiçar a mesa. Há anos que mantinha o ritual e o inofensivo desequilíbrio mental na insistente procura da melhor mesa.
Aos conhecidos dava por conselho que andassem prevenidos com uma pequena esfera para o caso de terem que alugar um quarto ou apartamento, aconselhando-os a fugir de zonas em que o soalho fosse oblíquo, como a esfera comprovaria, rolando.
Um dia o Tó Zé Almeida tinha as pernas cruzadas e movia um pé, enquanto o Bandeira se debruçava sobre um livro na mesa próxima. Num determinado momento levantou-se irado e gritou. - Não se pode estudar aqui! - É comigo? - balbuciou desconfiado o Tó Zé, e o Bandeira disse: - Pois é, não está quieto com o pé! E o Tó Zé assentou os dois pés no chão, para não perturbar o estudo ao frágil aluno de Direito que caminhava para os cinquenta anos.
A conversa foi prosseguindo entre o grupo habitual e mais de uma hora depois o Bandeira repete o desabafo anterior, não se pode estudar aqui, e o Tó Zé a verificar o sítio dos pés e a dizer-lhe , mas eu tenho os pés quietos, e o Bandeira a replicar, mas eu estou sempre à espera de que volte a cruzar as pernas e a abanar o pé! (...)".