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Hora
após hora voou o maçarico num ritmo poderoso, rápido e regular. Os seus
batimentos de asa eram fluentes e leves. Principiavam por baixo do abdómen e
abriam-se largamente por cima do dorso. Cada batimento constituía uma
complicada sucessão de passos, harmoniosamente ajustados uns aos outros,
fundidos, numa fracção de segundo, num elegante movimento único. As asas
funcionavam numa combinação perfeita de superfície aerodinâmica e hélice
impulsora. O vento desempenhava diversas funções durante o voo.
O plano
da asa, junto ao corpo, cortava o ar como a superfície de um avião. Deste modo
criava-se pressão no intradorso da asa, daí resultando sustentação, exactamente
aquele impulso que possibilita o voo. No maçarico isso era conseguido apenas
através da forma aerodinâmica da asa. O batimento fornecia impulso, mas nada
tinha que ver com a sustentação no ar.
A
superfície exterior da asa era composta sobretudo por fortes rémiges
sobrepostas. Elas eram a hélice do sistema de propulsão da ave, e produziam a
corrente de ar que fornecia sustentação aos planos alares, junto ao corpo. Em
cada batimento, as rémiges executavam uma complicada sucessão de posições. Quando
a asa baixava, elas deviam mover-se deste modo: o bordo de ataque baixava e
subia o bordo de fuga, funcionando assim cada pena como pá de uma hélice, que
aspirava o ar e criava impulsão. Quando a asa subia, o ângulo de ataque das
rémiges tinha que ser ao contrário, assim se criando impulsão suplementar. A
superfície alar junto ao corpo produzia continuamente tanto impulso que não se
perdia altitude, mesmo quando a asa se movia para cima. A regulação perfeita
das penas era um reflexo que não podia ser conscientemente controlado, pois o
maçarico executava três ou quatro batimentos de asa por segundo, o que lhe
permitia uma velocidade de oitenta quilómetros por hora.
Ocasionalmente
o maçarico entrava no turbilhão provocado por uma ave que seguia adiante dele.
Com as suas asas ultra-sensíveis podia detectar mesmo tão insignificantes
vestígios. Por norma, uma leve alteração nas condições aerodinâmicas do voo era
o primeiro sinal de que se aproximava de um bando de aves. Quando deparava com
tais turbilhões, o maçarico aproveitava-se deles. Seguia-os, deixando-se
arrastar como uma asa pela coluna de ar horizontal. Assim mantinha a impulsão
correcta, e as asas podiam funcionar com um pouco menos de esforço.
Porém,
com excepção das tarambolas-douradas, nenhuma narceja era tão rápida como o
maçarico. E assim ele alcançava sempre os bandos que voavam na sua dianteira.
Primeiro ouvia os ténues gorjeios, através dos quais as aves comunicavam.
Depois o turbilhão tornava-se mais forte. E finalmente surgia o bando,
confundido com o cinzento do céu. O maçarico acompanhava-o durante algum tempo,
mas acabava por ultrapassá-lo, devido à sua maior velocidade. E continuava a
voar sozinho.
Nessa
noite aconteceu isso várias vezes, pois as camadas de ar por cima da tundra em
arrefecimento estavam agitadas, e a maioria dos bandos voava à mesma altitude,
um pouco acima dos níveis de turbulência. Pela manhã o maçarico deparou com uma
esteira mais larga, e adaptou o batimento de asa às novas condições de
impulsão. Voou assim durante longo tempo, e o turbilhão causado pelas pontas
das asas das aves que o precediam manteve-se inalterável. Desta vez não
alcançou o bando automaticamente. Ainda não era o tempo de migração dos patos e
dos gansos. Nesta altura, só duas espécies eram tão velozes que o maçarico as
não podia ultrapassar sem esforço. Tinham que ser tarambolas-douradas... ou
maçaricos-esquimós.
As
incansáveis asas bateram-lhe mais depressa. O ar comprimiu-se fortemente contra
o seu corpo aerodinâmico. O turbilhão do bando invisível foi-se tornando maior,
e era de facto mais forte do que todos os outros que encontrara nessa noite. A
sua impaciência cresceu. Uma leve esperança, meio reacção instintiva e meio
vago pensamento consciente, agitou-se-lhe no cérebro. Estava iminente o fim
desta interminável procura de companheiros da espécie? O maçarico aumentou a
velocidade, até lhe doerem os poderosos tendões do peito, um dos tecidos mais
fortes em todo o reino animal.
Aproximou-se
do bando. Na escuridão, só agora iam tomando forma as aves que o precediam,
primeiro vaga, depois mais claramente. Durante um bom minuto o maçarico apenas
pôde reconhecer a linha desvanecida da sua formação, mas agora via claramente
cada uma das aves. Só voadores fortes e rápidos, como os gansos, os maçaricos e
as tarambolas-douradas voavam assim, nesta formação em coluna, em diagonal ou
em cunha. Através dela, cada ave tirava partido do turbilhão da ponta da asa da
ave precedente, sem que fosse perturbada pela esteira de turbulência que ela
deixava atrás. E o maçarico sabia que os gansos ainda não voavam para Sul.
Ficou ainda mais impaciente, voou ainda mais depressa.
A
distância diminuiu rapidamente, e as aves que o precediam tomaram forma nítida.
Eram pequenas, muito mais pequenas do que ele. Mas agora já não sentia a
rejeição instintiva que o levara a não dar qualquer atenção aos maçaricos-norte-americanos
ou às narcejas. Continuava a sentir o mesmo impulso de se juntar a um bando.
Soltou um grito de chamamento discreto, responderam-lhe tarambolas-douradas.
Tratava-se
de um grupo de quarenta ou cinquenta aves, e o maçarico alinhou na parte de
trás da cunha. Reduziu a velocidade e anunciou a sua presença com uma série de
gorjeios rápidos. Todo o bando respondeu em uníssono com trinados fortes. O
ímpeto do maçarico ficou silenciado. No mais fundo de si agitava-se ainda um
indefinido sentimento de solidão, mas a partir de agora já não voava sozinho.
De entre
as mais de trinta espécies de narcejas que todos os outonos migram do Árctico
canadiano para o Sul, apenas a tarambola-dourada é um companheiro de viagem
adequado para o maçarico-esquimó. Ambos têm velocidades de voo semelhantes e
apreciam idêntico alimento. Mas há ainda outra razão mais importante. As
tarambolas e os maçaricos são voadores particularmente resistentes, e rejeitam
a rota terrestre sobre a América do Norte, que todas as outras aves de
arribação adoptam. Em vez disso dirigem-se para leste, até às costas rochosas
do Lavrador, da Terra Nova e da Nova Escócia, e daí voam directamente para Sul,
sobre o Atlântico. Vencem esta etapa de 4 mil quilómetros ou mais, num
esgotante voo de quarenta e oito horas sem escala. Não fazem qualquer paragem
até alcançarem terra, na costa norte da América do Sul.
(Cont.)