Alguns dias mais tarde, a reserva perdera toda a excitação.
O maçarico-esquimó elevou-se no ar e voou um par de horas na direcção do Sul.
Quando sentiu fome poisou num terreno pantanoso, onde um rio desaguava num
grande lago. Vindas da tundra a caminho do Sul, chegavam em bando, como todos
os verões, as narcejas velhas e novas e os pequenos maçaricos-das-rochas.
Pilritos de longas pernas passavam sobre a margem do lago, em oscilantes
formações em V. Ele parou de comer e soltou um grito excitado. Este modo de
voar, estas formações, só podiam ser de maçaricos. Passavam em formação cerrada
e moviam-se tão exactamente como se todos eles formassem um corpo, como se um
único centro nervoso controlasse todo o bando. Mantinham as asas curvadas para
baixo e desciam para o solo em voo planado. O maçarico-esquimó correu ao seu
encontro. Mas, depois de algumas passadas, parou de repente e continuou a
comer, indiferente. Os outros eram maçaricos-norte-americanos, e ele
reconheceu-os pelos bicos mais curtos e pelas barrigas cor de cabedal.
Não
sabia que os recém-chegados, muito parecidos com ele, voavam mais lentamente, e
que, por isso mesmo, não eram companheiros de viagem adequados. Também
desconhecia que as narcejas jovens só um pouco mais tarde adquiriam força
suficiente para a longa viagem, e eram deixadas para trás pelos pais. No entanto
elas seguiam-nos instintivamente ao longo da perigosa rota de doze mil
quilómetros, que iam fazer pela primeira vez. Os modelos de comportamento,
fixados através dos genes de numerosas gerações, apenas diziam ao maçarico o
que ele tinha a fazer, sem lhe esclarecer os motivos. O seu comportamento não
era definido por decisões racionais, mas por reacções aos estímulos do
ambiente. De bom grado se teria juntado a um bando migratório. Mas os maçaricos-norte-americanos
não provocavam nenhuma reacção no seu cérebro, e por isso continuou a procurar
alimento, quase sem olhar para eles. Quando levantaram voo mal deu por isso. A
terra estava cheia de ruídos de asas em movimento, e o maçarico ficou de novo
só.
Durante
a tarde, o pântano ficou salpicado de narcejas que interromperam o voo e
esgaravatavam o lodo em busca de alimento. A maior parte mantinha-se agrupada
por espécies, e com a chegada do crepúsculo os bandos abalaram, um após outro.
Só o maçarico ficou. Os outros comunicavam por pequenos trinados, organizando
as suas formações na escuridão que se instalava. Por uns momentos rondavam a
mil metros por cima da tundra, até que rompiam para Sul. As narcejas viajam
sempre de noite. Digerem rapidamente, consomem muita energia, e durante o dia
têm que procurar alimento. Durante as migrações, o seu alto consumo de energia
só pode ser satisfeito através da exacta regulação do tempo de voo. Ele tem de
terminar logo que amanhece, mal as aves podem começar a alimentar-se.
Lá no
alto, por cima de si, o maçarico ouvia as fracas vozes ciciadas das aves que se
dirigiam do Árctico para outras paragens mais quentes. Nas margens dos charcos
começavam a formar-se cristais de gelo. O instinto do maçarico-esquimó
proibia-o de voar sozinho. Porém, quando lançou à noite fria um chamamento
estridente, ninguém respondeu. E era tempo de partir.
Elevou-se
na aragem, procurou encontrar o ângulo mais favorável, com o bordo de ataque
das asas levantado e o bordo de fuga descaído, até sentir finalmente a corrente
ascendente. Na família das galinholas, o maçarico dispunha das asas mais
adaptadas a um voo fácil e rápido; eram longas, estreitas, e graciosamente
terminadas em ponta. Mesmo quando ficava parado, de asas abertas, no vento
suave da noite, era transportado pela aragem como se não tivesse peso.
Lançava-se agilmente para o ar com o impulso das pernas, dava duas batidas de
asa para obter estabilidade de voo, e elevava-se quase sem esforço. Durante
mais de um minuto subiu na vertical, até que a tundra desapareceu lá em baixo,
no cinzento do crepúsculo. Depois manteve a altitude. A velocidade aumentou, e
ele voava com batidas mais leves e mais lentas. O ar sibilava à sua volta e
comprimia-lhe as penas contra o corpo. A viagem tinha começado. Mesmo o seu
cérebro primitivo e simples sentia vagamente que o caminho indefinido,
estendido diante de si por dois subcontinentes, era um corredor da morte. Nele
não havia misericórdia, apenas ameaças de tempestades, de inimigos, da própria
morte. No entanto, antes de a tundra inóspita mergulhar na névoa do horizonte,
o maçarico pressentiu levemente que o impulso nupcial havia de chamá-lo no
próximo ano. Na Primavera voltaria a esperar pela sua fêmea, quando os musgos e
os líquenes do Árctico ficassem verdes outra vez.
O CORREDOR
DA MORTE