domingo, 2 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 7


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            Os dias quentes e as noites frescas passaram com a rapidez do vento, os montes de neve desapareceram das depressões escuras do terreno, e as tonalidades cinzentas da paisagem da tundra transformaram-se num flamejante tapete de flores amarelas e rosadas. Mas a fêmea do maçarico não chegou. As narcejas juntaram-se às centenas, lutaram por uma reserva, acasalaram, fizeram ninhos. Prepararam-se para dar início a um novo ciclo de vida, objectivo pelo qual tinham voado dez ou doze mil quilómetros. O maçarico lutou como um louco contra as tarambolas, contra qualquer maçarico-das-rochas que atravessasse a fronteira da sua reserva, até esta ficar salpicada das penas castanhas dos intrusos, que demasiado tarde fugiram aos seus ataques. As hormonas do acasalamento, segregadas pelas glândulas, acumulavam-se nele como uma carga explosiva.
            Investiu contra cada narceja que ousasse chegar-se a ele. Porém, o seu modelo instintivo de comportamento não lhe permitiu ser hostil com as escrevedeiras, os tentilhões e os lagópodes-brancos, que também povoavam a tundra. Estes não eram biologicamente seus parentes próximos, nem lhe disputavam o alimento de que necessitava para as crias, logo que a fêmea chegasse. Uma fêmea de galo branco fizera o ninho a menos de cinco metros do lugar onde haveria de ficar o seu. Mas o maçarico mal dera por isso, e passados alguns dias já tinha esquecido que ele estava ali.
            As noites foram-se tornando maiores e mais escuras. As flores minúsculas e claras da tundra deram lugar a sementes emplumadas, que pareciam tramas de seda. Muito perto, um par excitado de tarambolas-douradas começou a gritar. A penugem negra do papo e da barriga brilhava intensamente aos raios do sol matinal que apareceu ao longe, no horizonte. Então elas começaram a voar em círculos, rapidamente. O maçarico sabia que as crias já tinham saído da casca. Tinham acabado de deixar o ninho, bem desenvolvidas desde o início, como todas as narcejas. E agora corriam ali à volta, antes de secarem completamente as cascas de ovo que as tinham protegido. O Verão polar ia chegando ao fim.
            Várias crias aveludadas corriam pela reserva do maçarico, atrás da mãe que lhes trazia comida. Este lançou um assobio de aviso na sua direcção e investiu contra elas. As crias gritaram pela mãe, e isso teve sobre ela mais efeito do que o medo de uma ave estranha e muito maior. A fêmea não fugiu. Ficou parada e abriu as asas protectoras sobre as minúsculas bolas de penas que piavam, agachadas no tapete de musgo. O maçarico levantou voo e não voltou a atacá-las. Planou trinta metros até um monte de rochas onde poisou, observou como ela alimentava os filhos e esqueceu-os.
            O ponto alto do ciclo de actividade das glândulas acabava de ser ultrapassado. A produção de hormonas era cada vez menor, e com ela desaparecia lentamente o impulso de acasalamento e a agressividade. Em seu lugar veio uma outra necessidade. Dantes era a defesa da reserva o primeiro mandamento, mesmo mais importante do que a busca de alimento. Agora começava a sentir as primeiras manifestações de impulso para o movimento que não se calava. Nenhuma fêmea viera, e a reserva perdera significado.
            De vez em quando observava a tarambola-dourada, mas ela não se ia embora. Acabou por deixar de se preocupar com ela e esqueceu-a. Durante um dia deambulou por ali. Às vezes dava-se conta dos intrusos que lhe penetravam na reserva, mas logo os esquecia. No dia seguinte outras narcejas chegaram à reserva. Chegavam e partiam, e o maçarico não lhes ligava qualquer importância. Uma vez voou mesmo um bom bocado pelo rio abaixo, e ficou longe durante um par de horas. Foi a primeira vez que deixou a reserva, desde a sua chegada, há dois meses atrás.
            À sua volta as narcejas novas cresciam rapidamente. Os pais abandonavam-nas e elas tinham que fazer pela vida. Era uma separação brusca e total. Pais e filhos formavam, cada um, o seu bando migratório.
            Chegou o fim de Julho. O pântano fervilhava de insectos e crustáceos, que eram o alimento das narcejas. Havia agora alimento em demasia, e faltavam ainda alguns meses para ao inverno. Mas o Árctico já tinha cumprido o seu papel. E o Sul chamava insistentemente, semanas a fio, antes que os bandos de facto se pusessem a caminho. O maçarico, que durante todo o Verão lutara furiosamente por ficar sozinho, ansiava agora por companhia. Isso nada tinha que ver com o pensamento ou com a inteligência. Ele reagia simplesmente ao primitivo modelo de comportamento da espécie, às alterações do ciclo fisiológico. Os dias eram cada vez mais curtos, o sol cada vez mais fraco, e com isso reduzia-se também a actividade da hipófise. As hormonas da hipófise estimulavam as gónadas a derramar hormonas sexuais na corrente sanguínea. E agora, ao reduzir-se a produção de hormonas, desaparecia o agressivo impulso de acasalamento, substituído pelo instinto migratório. Era apenas um processo fisiológico. O maçarico não tinha consciência de que o Inverno ia chegar ao Árctico, e de que morreria à fome quem se alimentava de insectos e ali permanecesse. Ele conhecia apenas a irresistível força que agora o obrigava a migrar.
            Porém, algures no seu cérebro rudimentar, esboçava-se um processo de pensamento elementar. Por que razão estava sempre sozinho? Onde paravam as fêmeas que o instinto lhe prometia em cada primavera, quando o fogo nupcial ardia em todas as suas células? Nesta altura, as outras aves juntavam-se em bandos migratórios. Mas por que motivo não havia, entre as miríades de narcejas e outras espécies de maçaricos, nenhuma outra com a penugem castanha clara, que ele prontamente reconheceria como irmã de casta?
(Continua)