quinta-feira, 13 de junho de 2019

Fezadas

(...)
Há mais de cinquenta anos o Rasga foi ao São Roque com a mulher, ela cheia de fé, ele com muita sede, como sempre, até a cirrose o consumir. A feira e a romaria partilhavam a data e o espaço. Não sei das promessas dela,as mulheres lá tinham contratos com os santos, não era costume explicitá-los, ele tinha as mãos cheias de cravos, coisa de rapaz, julgava que era feitio. A mulher dissera-lhe que havia de ir ao São Roque, o Maravilhas curou-se, o Ti Velho também, pelas outras aldeias ia a mesma devoção, os resultados eram de monta. O Rasga até tinha pensado no ferrador, não para ferrar o macho, ele queimava os cravos, mas eram grandes as dores, ficavam as mãos com marcas piores que a cara do medo com as bexigas, e a febre, às vezes, levava a gente. Já se acostumara, não valia a pena ralar-se, o pior era mulher a azucrinar-lhe os ouvidos, tens de ir ao São Roque, se trabalhasses em vez de beberes havias de ver o incómodo, eu faço-te companhia, és um herege, uma oração, uma pequena esmola, dois cruzados, um quartinho no máximo, o São Roque não é interesseiro, vens de lá bom, levas a burra que já mal pega em erva, enjeita os nabos, não temos feno, há-de morrer-nos em casa, além do prejuízo vais ser tu a enterrá-la, podias vendê-la.
E lá foram os três, que a burra também contava, partiram quando a Lurdes e a Purificação já levavam uma légua de avanço, tinham bestas lestas e levantavam-se cedo, era mister que se antecipassem aos homens que quando chegavam logo queriam matar o bicho e os negócios não podiam fazer-se sem haver onde pagar o alboroque. (...)
Findas a feira e a festa, esta terminou primeiro, um dos padres ainda tinha que levar o Viático a um moribundo de Pínzio, o Rasga e a mulher vinham consolados, ela com a missa e a procissão, ele com duas notas e meia no bolso e o bucho cheio de vinho, ela a pensar na vida e ele a cambalear.
Algum tempo depois perguntei ao Rasga o que era feito dos cravos. Ficaram no São Roque, menino, ficaram no São Roque.
(Barroco Esperança, Pedras Soltas, 2006)