Finalmente o maçarico não pôde mais refrear o impulso
migratório. E, após um dia tempestuoso em que as temperaturas pouco tinham
subido além do ponto de congelação, caía a noite fria quando ele bateu as asas
e se elevou no céu sombrio. O tecto de nuvens estava baixo e o bando organizou
rapidamente a formação, dirigindo-se para o mar, com forte vento de frente. A
esta altitude o vento fustigava-o já como uma tempestade, o que lhe reduzia a
velocidade para metade. Frequentes rajadas tempestuosas desorganizavam a
formação, e um par de tarambolas mais fracas ficaram para trás. Antes de perder
de vista a acidentada costa do Lavrador, o maçarico soube que não poderiam
prosseguir o voo nestas condições. Por isso voltou para trás e poisou o bando
numa encosta abrigada do vento. O temporal bramia por cima deles.
Tinham
falhado a partida. Mas agora tanto as tarambolas como o maçarico estavam
impacientes por iniciar a longa viagem. Tentaram-no em vão mais que uma vez.
Inquieto, ele esperava condições mais propícias, mas estava a fazer-se tarde e
os dias bons eram raros. As névoas aclaravam, porém o vendaval rugiu três dias
e três noites, para os lados do Sul. Com interrupções, as aves continuaram a
devorar caracóis e arandos já murchos. E ao quarto dia o vento mudou. Mais
fraco e mais frio, soprava agora do Norte. Este vento de cauda era tão
desfavorável como o vento de frente, pois dificultava o equilíbrio do voo e
afectava os delicados controlos reflexos das rémiges. Durante três dias o vento
norte assobiou. Até que lentamente acalmou, e no terceiro dia à noite virou de
Oeste, agora apenas uma ligeira brisa. O maçarico tinha aguardado este vento de
lado. E a noite caiu, clara e fria.
As aves
levantaram voo, ganharam altura e cerraram a formação, com o maçarico à cabeça.
Tudo aconteceu com a precisão habitual, dir-se-ia quase automática. Ele e
muitas tarambolas já tinham alguma vez superado este sobrevoo outonal do
oceano, mas guardavam disso apenas uma vaga lembrança. A maior parte ficou
confusa quando, de manhã, só mar deserto e vazio se estendia por baixo deles.
Mas continuariam a voar sempre em frente, passaria mais uma noite e uma manhã,
e debaixo deles estender-se-ia ainda o mesmo mar. As aves sabiam que ele era um
elemento hostil, só em terra e no ar se sentiam à vontade. Mas quando não havia
agitação no mar e excepcionalmente a água estava calma, poisavam algum tempo na
superfície líquida e permitiam-se uns momentos de descanso. Porém, nadavam
muito desajeitadamente. As suas penas não eram suficientemente gordurosas e
encharcavam-se rapidamente. No alto mar raramente havia condições que
permitissem poisar, mesmo momentaneamente. Por norma tinham que realizar o
longo voo sem qualquer pausa, sem alimento e sem descanso.
A luz
calorosa do Norte brilhava ainda atrás deles, no céu do Lavrador. Mas apenas
voltariam a ver terra quando poisassem na margem de um rio, na selva húmida da
Guiana ou da Venezuela, com as penas desgrenhadas e os músculos entorpecidos de
cansaço. No entanto, ao levantar voo, fizeram-no sem hesitação nem medo. Não
reconheciam o dramatismo do momento, sentindo apenas um vago alívio por terem
finalmente iniciado a viagem. Era uma bênção que os seus pequenos cérebros não
pudessem abarcar a nua realidade. Criaturas minúsculas como eram, simples
matéria aprisionada pela terra, desafiavam, mesmo assim, o mar e o céu imensos.
O CORREDOR
DA MORTE
Para
incrementar e divulgar o conhecimento humano. Instituto Smithsoniano,
Washington. Relatório anual da comissão de vigilância, sobre o ano que finda em
30 de Junho de 1915...
Durante
os meses de Agosto e Setembro, muitos anos ainda após meados do séc. XIX,
chegavam à Terra Nova e às ilhas da Madalena, no golfo de São Lourenço, milhões
de maçaricos-esquimós, que obscureciam o céu... Grupos de 25 e 30 homens
abatiam num único dia duas mil aves, que iam para a feitoria da Companhia da
baía do Hudson, em Cartwright, no Lavrador.
Os
pescadores costumavam salgar estas aves em barricas. À noite, quando dormiam
nas escarpas da costa em grande número, homens equipados de lanternas para as
encandear podiam aproximar-se delas e abatê-las em massa, à cacetada.
(Cont.)