segunda-feira, 17 de junho de 2019

O último maçarico-esquimó 12


Finalmente o maçarico não pôde mais refrear o impulso migratório. E, após um dia tempestuoso em que as temperaturas pouco tinham subido além do ponto de congelação, caía a noite fria quando ele bateu as asas e se elevou no céu sombrio. O tecto de nuvens estava baixo e o bando organizou rapidamente a formação, dirigindo-se para o mar, com forte vento de frente. A esta altitude o vento fustigava-o já como uma tempestade, o que lhe reduzia a velocidade para metade. Frequentes rajadas tempestuosas desorganizavam a formação, e um par de tarambolas mais fracas ficaram para trás. Antes de perder de vista a acidentada costa do Lavrador, o maçarico soube que não poderiam prosseguir o voo nestas condições. Por isso voltou para trás e poisou o bando numa encosta abrigada do vento. O temporal bramia por cima deles.
            Tinham falhado a partida. Mas agora tanto as tarambolas como o maçarico estavam impacientes por iniciar a longa viagem. Tentaram-no em vão mais que uma vez. Inquieto, ele esperava condições mais propícias, mas estava a fazer-se tarde e os dias bons eram raros. As névoas aclaravam, porém o vendaval rugiu três dias e três noites, para os lados do Sul. Com interrupções, as aves continuaram a devorar caracóis e arandos já murchos. E ao quarto dia o vento mudou. Mais fraco e mais frio, soprava agora do Norte. Este vento de cauda era tão desfavorável como o vento de frente, pois dificultava o equilíbrio do voo e afectava os delicados controlos reflexos das rémiges. Durante três dias o vento norte assobiou. Até que lentamente acalmou, e no terceiro dia à noite virou de Oeste, agora apenas uma ligeira brisa. O maçarico tinha aguardado este vento de lado. E a noite caiu, clara e fria.
            As aves levantaram voo, ganharam altura e cerraram a formação, com o maçarico à cabeça. Tudo aconteceu com a precisão habitual, dir-se-ia quase automática. Ele e muitas tarambolas já tinham alguma vez superado este sobrevoo outonal do oceano, mas guardavam disso apenas uma vaga lembrança. A maior parte ficou confusa quando, de manhã, só mar deserto e vazio se estendia por baixo deles. Mas continuariam a voar sempre em frente, passaria mais uma noite e uma manhã, e debaixo deles estender-se-ia ainda o mesmo mar. As aves sabiam que ele era um elemento hostil, só em terra e no ar se sentiam à vontade. Mas quando não havia agitação no mar e excepcionalmente a água estava calma, poisavam algum tempo na superfície líquida e permitiam-se uns momentos de descanso. Porém, nadavam muito desajeitadamente. As suas penas não eram suficientemente gordurosas e encharcavam-se rapidamente. No alto mar raramente havia condições que permitissem poisar, mesmo momentaneamente. Por norma tinham que realizar o longo voo sem qualquer pausa, sem alimento e sem descanso.
            A luz calorosa do Norte brilhava ainda atrás deles, no céu do Lavrador. Mas apenas voltariam a ver terra quando poisassem na margem de um rio, na selva húmida da Guiana ou da Venezuela, com as penas desgrenhadas e os músculos entorpecidos de cansaço. No entanto, ao levantar voo, fizeram-no sem hesitação nem medo. Não reconheciam o dramatismo do momento, sentindo apenas um vago alívio por terem finalmente iniciado a viagem. Era uma bênção que os seus pequenos cérebros não pudessem abarcar a nua realidade. Criaturas minúsculas como eram, simples matéria aprisionada pela terra, desafiavam, mesmo assim, o mar e o céu imensos.

                                               O  CORREDOR  DA  MORTE

            Para incrementar e divulgar o conhecimento humano. Instituto Smithsoniano, Washington. Relatório anual da comissão de vigilância, sobre o ano que finda em 30 de Junho de 1915...
            Durante os meses de Agosto e Setembro, muitos anos ainda após meados do séc. XIX, chegavam à Terra Nova e às ilhas da Madalena, no golfo de São Lourenço, milhões de maçaricos-esquimós, que obscureciam o céu... Grupos de 25 e 30 homens abatiam num único dia duas mil aves, que iam para a feitoria da Companhia da baía do Hudson, em Cartwright, no Lavrador.
            Os pescadores costumavam salgar estas aves em barricas. À noite, quando dormiam nas escarpas da costa em grande número, homens equipados de lanternas para as encandear podiam aproximar-se delas e abatê-las em massa, à cacetada.
(Cont.)