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O
maçarico manteve exactamente o rumo sul. Quando os montes escarpados do
Lavrador desapareceram da vista, deixou de poder orientar-se por qualquer marca
no terreno. Apesar disso dirigia o bando com uma segurança infalível. Algures,
no jogo de forças cósmicas entre a rotação e o magnetismo terrestres, havia uma
linha de orientação, uma direcção em relação à qual o seu cérebro estava
perfeitamente alinhado. Mantinha o rumo sem esforço. Um instinto velho de
séculos completava inconscientemente esta obra-prima, que pedia meças às
maiores realizações da consciência no reino animal.
A noite
ia a meio. Oitocentos metros abaixo do bando estendia-se a costa alcantilada da
Nova Escócia e o cabo Breton, orlado de branco pela rebentação. O maçarico já
algumas vezes tinha parado aqui, mas desta vez o ano já ia alto, era já tarde,
uma escala estava fora de questão. O bando necessitara de cinco horas para
atravessar o golfo de São Lourenço. E agora voava sobre a ponta do cabo Breton,
na direcção do Atlântico, que se abria perante ele como uma goela escancarada.
O
maçarico mudou entretanto para uma posição mais cómoda, no meio das outras
aves, e aí se manteve uma hora, cedendo o comando a uma tarambola. Então, vinda
do continente canadiano, aproximou-se uma frente fria. Surgiram turbulências e
ele colocou-se de novo à cabeça. O ar frio, mais pesado, empurrava para cima as
camadas de ar inferiores, mais quentes. E uma vez que, a grande altitude, a
temperatura era mais baixa, a humidade do ar quente condensava-se e provocava
precipitação. Primeiro aguaceiros e depois neve, à medida que as temperaturas
baixavam.
As turbulências
do ar davam que fazer ao bando. A princípio nevava apenas lentamente, mas
depois os flocos tornaram-se maiores, amontoavam-se uns nos outros sobre as
asas das aves, e dificultavam o voo. Instintivamente o maçarico ganhou altitude
e todos o seguiram. Nas camadas superiores o ar era mais calmo, mas as nuvens
de neve tornaram-se mais densas. As aves puderam de novo fazer a sua formação,
mas tinham que confiar sobretudo na intuição, na percepção dos turbilhões
fornecida pelas pontas das asas. A tempestade de neve era agora tão violenta
que cada uma delas mal podia ver o companheiro que a precedia. Mas mantinham a
altitude que tinham atingido.
Não era
possível avaliar a velocidade de passagem da frente, para Leste. Apesar disso,
em parte por lembrança de anteriores migrações, e sobretudo por intuição
instintiva, o maçarico sabia que à velocidade de 80 quilómetros por hora iriam
encontrar de novo a frente fria. Mas então voariam à frente do temporal, uma
vez que este se deslocava mais lentamente do que eles. Assim, teriam que
alterar o rumo e voar com o temporal, para Leste, em direcção ao mar aberto.
O
maçarico mudou de direcção e as tarambolas seguiram-no, embora só as que vinham
logo atrás dele pudessem ver que ele rodava para Leste. Acumulada entre as
rémiges, a neve colava-se-lhes nas asas. E estas, que ainda há poucos minutos
reagiam prontamente às flexões e distensões dos músculos do peito, eram agora
pesadas e rígidas. Rodavam no ar como remos, desperdiçavam energia, empurravam
o ar para baixo em vez de o aspirarem, de modo a provocar a corrente
indispensável ao voo. A sua velocidade diminuiu até ficarem quase imóveis, um
bando desordenado e confuso, a cerca de mil e quinhentos metros sobre o mar.
Então o maçarico dirigiu-se mais para Leste. Começou lentamente a descer e,
através da gravidade, ganhou a velocidade que as rémiges encharcadas não podiam
atingir. O andamento era agora normal, mas tinham que perder altitude para o
manter. Do deserto cinzento, lá em baixo, o mar crescia para eles.
O
maçarico foi descendo lenta e progressivamente, adaptou o ângulo de ataque das
asas à pressão da corrente de ar, de modo a poderem manter a velocidade com um
mínimo de perda de altitude. Às vezes abrandavam os turbilhões de neve e por
momentos era possível manter a horizontal. Mas logo voltava a neve, de novo
mais densa, as asas ficavam pesadas, e o maçarico tinha que voltar a descer.(Cont.)