O da frente, mais velho, leva uma boina espanhola. E, se não nos enganam os sinais do atavio, o coçado das calças de pana e as alparcas leves de borracha, sem erro podemos considerá-lo passador. Entenderemos agora por que o vimos ali atrás, sentado bem três quartos de hora perto da estrada, alheio como se nada mais esperasse que o cair da noite, atento apenas à passagem dum carro branco, peuqeno, quatro passageiros, dos quais uma mulher nova. Vimos sair os viajantes do banco de trás, vimos o carro inverter a marcha e dirigir-se à portagem da alfândega, vimos três homens avançar para leste, a corta-mato, vê-la-íamos, com este luar, se a linha de fronteira estivesse marcada no chão, nada nos falta para concluir que se trata aqui de passar a salto a fronteira de Espanha.
Muitas voltas dá o mundo, o certo é que nalguma se há-de repetir. Preparemo-nos para a intervenção próxima do mesmo pequeno carro branco, agora já em carreteira espanhola, lá dentro um jovem casal que já passou a fronteira, atrás dois lugares vazios, se não é este o pezinho que ao meu sapato serve, onde estará.
Hevemos de reparar que vai mais afogueado o companheiro que na derradeira marcha, razão seria para que os outros o metessem no meio, por menos pesados erros tácticos está inchada a história de batalhas perdidas. Não sabemos nós de batalha que aqui se trave, ou será por tanto perigo haver na expedição que nenhuma hierarquia de galões se mostra nos ombros destes soldados. Tenhamos apenas por certo que, a haver derrota, dalgum canto sairá um general qualquer a salvar a honra dos que ficarem vivos, a justificar o sacrifício dos que vierem a morrer. Este da derradeira será um deles, ouve-se-lhe o tropeçar frequente, e, pior que tudo, já por duas vezes caiu, acaso tem pernas menos acostumadas a este rústico segredo de caminhar de noite por onde caminhos abertos não há, demais seria exigir que houvesse estradas reais para passar a fronteira a salto. Um dia virá esse tempo, a Europa será ela toda um lugar de encontro e livre trânsito, tanto como isso era nestes anos que o livre trânsito fazia falta, há dez anos que não temos visto mais que multidões de homens fugindo a salto por estes e outros montes, por que será, que febre lhes deu.
Perto estará a linha que dos castelhanos nos separa, tão roída de séculos no traçado que nos é impossível distingui-la, acaso a saberão de cor os guardas e mais carabineiros por dever de ofício, quem a conhece bem é este mestre passador, às vezes de pão ou de café, se não de simples caramelos viuda ou mais valiosos minerais, é de homens a carga desta vez, que por seu pé marcham enquanto nos folgam os ombros. Porém, sendo gente importante ou não, aumenta a responsabilidade, que estes não podemos alijá-los num valado qualquer, se um guardiãovier a mostrar-se mais activo. Acautelemo-nos no esconso desta moita, que tanto nos pediram sem mais nos explicar, isto é o que certamente exprime o gesto de mão do mestre passador, que acabámos de ver. (cont.)