sexta-feira, 16 de abril de 2010

Relíquia antiga - XVII

E agora aqui estou eu no meio da rua, perdido na húmida noite da charneca, sem cama onde dormir, e sobre o mais taxado de ladrão de viúvas. Realmente, que não acreditar que o mundo é uma arca de surpresas, o melhor é não sair de casa. Nem sei por onde começar, para vos contar a história.
Aqui há uns anos, quando os primeiros arqueólogos começaram a espinotear nas fragas do côa, à procura de auroques e de cabras montesas picotadas nos calhaus, tive que fazer um levantamento do achado. Peguei no teodolito, não sei já como transportei a mira e o tripé, corri a apanhar o último comboio e era noite crescida quando vim parar aqui a foz-côa, numa camioneta da pré-história. Debaixo dum temporal de fins do mundo, lá me inculcaram a pensão da genoveva, única no planalto e sem quartos disponíveis. Mas há portas que uma azada juventude consegue abrir, toda a gente sabe isso. A genoveva arranjou-me instalação privada em sua casa, no primeiro andar da pensão, e a noite foi um sossego.
Algum tempo depois do regresso, fui surpreendido por uma estranha contra-fé da polícia. E um amigo meu, advogado previdente, que almoçava comigo nesse dia, achou melhor acompanhar-me na audição, sabendo muito bem que o diabo passa a vida a tecê-las. O agente recebeu-nos muito fechado em copas, disse que a intimação perdera a pertinência ou que havia um lapso de alguém, nem sequer abordou o assunto. E eu fui para casa resolver as triangulações, até que o percalço me saiu da cabeça.
Mas tantas vezes o mundo se repete, será porque é redondo. Hoje tive que voltar a foz-côa e procurei a pensão da genoveva. Foi uma trabalheira dar-me a conhecer, a viúva já não se lembrava do hóspede nocturno de há tantos anos. A minha obstinada persistência lá acabou por desenterrar-lhe na memória o jovem topógrafo, aqui arribado numa noite medonha, com todo o ar de náufrago das índias. E logo a genoveva reconheceu em mim o antigo ladrão dum finíssimo cordão de ouro, que tinha lá em casa. Se eu tivesse tranquila a consciência, não teria ido à polícia acompanhado por advogado, arguiu severamente. Na altura, bem contra a sua vontade e a opinião do genro, agente local da autoridade, a polícia arquivara a queixa por escassez de provas, dando sinais dum fraco desempenho que só protegia os ladrões, e era causa dos males do mundo. Ademais sabia muito bem que eu não era flor que se cheirasse, visto o mau conceito em que era tido pelos vizinhos.
Abriu-se-me a boca de espanto, e não fui capaz de encontrar formas de a fechar. É bem verdade que o mundo não pára enquanto um homem dorme, pois a genoveva tinha uma absurda explicação inteira para tudo, e de pouco valeram as minhas alegações. A filha apareceu também, a secundar as invectivas agrestes da progenitora. E eu achei melhor bater em retirada, antes de qualquer ataque ainda mais demolidor, vindo do posto da guarda.
Agora a humidade nocturna ameaça dissolver-me os ossos, e não há outra estalagem por aqui. Vou a pé até ao pocinho, antes que engendrem contra mim as provas que faltaram.