Voaram durante seis horas, as asas fatigaram-se. E quando
poisaram para descansar era ainda muito escuro. Agora deslocavam-se pouco
durante o dia. Mas, logo que o sol se punha, o maçarico conduzia a fêmea para
as alturas do céu e encaminhava-se sempre para Noroeste. A cada noite as asas
ganhavam força, e, uma semana depois, voaram sem parar, do pôr-do-sol até à
madrugada.
E assim
continuaram, o macho sempre à frente e a fêmea um pouco atrás, arrastada pelo
turbilhão numa das pontas da asa. Na escuridão falavam continuamente,
enviavam-se pequenos sinais, um pouco mais fortes do que o rumor do vento
cortado pelo voo. E o macho foi esquecendo lentamente a sua antiga solidão de
sempre. Encontravam muitas tarambolas. Mas os dois bastavam-se a si próprios, e
a sua relação preenchia-os tão completamente que nunca se juntaram a qualquer
bando. A maior parte das vezes voavam sozinhos.
A rota
do Norte diferia da rota do Sul. Deixaram para trás as Pampas e a zona dos
ventos de Oeste. Agora tinham por diante as regiões florestais do norte da
Argentina, onde não era fácil encontrar comida. Oitocentos quilómetros a Oeste
ficava o Pacífico e as suas praias, mas pelo meio erguia-se a cadeia dos Andes.
Chegaram à zona dos alísios de Sueste. Para terem vento de lado, teriam que
voar para Nordeste ou para Oeste. Podiam escolher entre as selvas infindáveis
do Brasil, onde quase não havia alimento nem lugar onde poisar, em 2500
quilómetros. Ou então as alturas dos Andes, com a sua atmosfera instável e
rarefeita. Instintivamente o maçarico rumou a Oeste.
Durante
uma noite inteira voaram sobre contrafortes montanhosos cada vez mais altos.
Hora após hora foram subindo, até as asas vibrarem de cansaço. De manhã poisaram
num planalto coberto de ervagem densa. A terra ondeava sem fim diante deles,
ondeava subindo, até onde a vista alcançava. O horizonte parecia uma folha de
serra. Nuvens brancas e cumes nevados fundiam-se uns nos outros.
Logo que
o sol mergulhou atrás dos Andes, os maçaricos reiniciaram o voo. Avançavam
lenta e penosamente, uma vez que tinham de ir subindo sempre. O ar tornara-se rarefeito,
oferecia às asas menor sustentação e menos oxigénio aos pulmões
sobrecarregados. Eles eram aves de planície, e não possuíam os enormes pulmões dos
lamas e seus pastores índios, que possibilitam a vida a cinco mil metros de
altitude. Em breve ficaram cansados. Algumas horas antes do amanhecer poisaram,
esgotados, na saliência duma falésia. Uma escassa camada de líquenes e musgos
tinha-se agarrado à rocha. Descansaram ali o resto da noite, encostados um ao
outro, defendendo-se das rajadas do vento cortante.
Caiu a
luz da manhã sobre um mundo áspero e desolado. Falésias cinzentas e pedaços de
nuvens em movimento, que pareciam asas brancas de um vento eterno. E ainda não
tinham atingido o ponto mais elevado. Os cumes que agora tinham de ultrapassar
estavam escondidos atrás de massas de nuvens agitadas. Em nenhum outro lugar do
mundo, salvo nos Himalaias, se encontram altitudes tão elevadas.
Mas
mesmo aqui viviam insectos, e os maçaricoes puseram-se à procura de alimento.
Era uma operação lenta e difícil, não por haver pouco alimento, mas porque cada
movimento era extenuante, exigindo muito oxigénio. À noite o ar arrefeceu
rapidamente. Começou a nevar e eles não retomaram o voo. As turbulências
atmosféricas e as enormes barreiras de falésias e glaciares só podiam ser
ultrapassadas com a luz do dia.
Nessa
noite não puderam dormir, e quase não descansaram. O vento rugia estridente
contra a parede da falésia e empurrava os duros flocos de neve. Por momentos,
mal se conseguiram resguardar. Então uma poderosa rajada retirou-lhes o chão
debaixo dos pés e arremessou-os na escuridão, no medonho vazio do espaço. O
macho lutou, defendeu-se, retomou o controlo das asas e poisou. Mas a fêmea
tinha desaparecido.
Desesperado,
tentou gritar mais alto que o rugido da tempestade. O vento não trouxe qualquer
resposta, para além dos seus próprios gritos. Quando este amainou o maçarico
levantou voo, descreveu pequenos círculos a baixa altitude, gritou, e procurou,
e gritou em vão. O vento cresceu de novo e ele não pôde manter-se em voo.
Agarrou-se aos musgos da falésia e esperou, sem respiração. A tempestade
amainou por um momento e ele voltou a levantar voo, mas a sua resistência
acabou rapidamente. Não podia continuar. Então encontrou um buraco na falésia
que o defendeu da tempestade. Encolheu-se lá dentro, arfando, de bico aberto. O
corpo precisava de oxigénio. E quando retomou forças voou de novo pela noite
escura e bravia, descreveu círculos e gritou pela fêmea. Torturava-o a antiga
solidão.
Encontrou-a
uma hora depois. Tinha-se escondido da tempestade por baixo duma saliência de
xisto, na falésia, e estava tão perturbada e exausta como ele. Encostaram-se um
ao outro, e o calor dos seus corpos derreteu um pequeno círculo de neve
granulosa.
Pela
manhã o vento amainou. O macho sabia que tinham de continuar a voar, não podiam
ficar ali mais tempo. Quando as nuvens carregadas de neve se dissolveram e o
sol atravessou a névoa com uma luz amarelada, levantaram voo e avançaram para o
manto que ocultava os cumes. Um minuto depois encontravam-se num mundo
fantástico de neblina branca, cuja humidade lhes pesava nas penas. Subiam
penosamente, em círculos. Tinham de ganhar altitude, mas o ar era agora tão
rarefeito que pareciam mover-se no vazio. Mesmo com os pulmões cheios,
respiravam com dificuldade.
A camada
de nuvens era muito instável e cheia de turbulência. Ocasionalmente encontravam
camadas de ar mais denso, que as asas cortavam melhor, e ganhavam altitude
rapidamente. Mas logo o ar se rarefazia, e, por momentos, mal se podiam manter.
Uma vez clareou por cima deles, e o maçarico sabia que estavam perto de atingir
o céu claro. Mas, antes de conseguirem furar as nuvens, uma rajada descendente
arrastou-os consigo. Caíram desamparados, e perderam em poucos segundos a
altitude que lhes levara muito tempo a ganhar.
(Cont.)