domingo, 21 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 22

Finalmente deixaram para trás as camadas agitadas de nuvens e voaram num céu claro e tranquilo. Era um estranho mundo encantado, de um frio penetrante e uma luz que cegava, e que parecia desligado de tudo o que havia na terra. A camada de nuvens estendia-se por todo o horizonte, uma planície branca, ondulada e vastíssima. Quase parecia sólida bastante para poisarem. O sol reflectia nela o seu brilho intenso. Mil e quinhentos metros adiante deles, um pico nevado rompia as nuvens. O seu cume era um penhasco nu e inteiriçado. Ao longe havia outros cumes, como ilhas, num vasto mar de brancura.
            Os maçaricos voaram rente à camada de nuvens, ao encontro do pico. Avançavam lenta e penosamente. Voavam de bico aberto, ofegantes no ar rarefeito, e os corpos doíam-lhes.
            Ao aproximarem-se do cume o vento refrescou de novo. Farrapos de neve turbilhonavam pela encosta. Evitaram-nos e poisaram, para descansar numa aresta do penhasco, donde o vento varrera a neve. E de novo tinham que padecer. O ar seco e rarefeito tinha-lhes perturbado fortemente o equilíbrio dos líquidos. As gargantas ardiam-lhes de sede.
            Menos de cem quilómetros adiante floriam exuberantes orquídeas e cactos do verão tardio sul-americano. Mas aqui, no tecto das duas Américas, seis mil metros acima do nível do mar, reinava um inverno sem fim. Mesmo por baixo deles encontrava-se um mundo incerto e assustador. Massas brancas misturavam-se umas nas outras, mal se distinguia onde terminavam os montes nevados e começavam as nuvens. Nenhuma criatura podia manter-se aqui por muito tempo. E apesar disso encontravam-se traços de vida, uma vez que grande parte da falésia era constituída por esqueletos fossilizados de animais marinhos, que tinham vivido há milhões de anos, quando os continentes ainda não existiam, e o cume da montanha era apenas lodo no fundo dos oceanos.
            As dores abrandaram e os maçaricos continuaram para Oeste, sobre a neve que o vento moldara, acima da camada de nuvens. E longo tempo continuaram em frente, evitando o manto branco, pelo menos quando não sabiam exactamente o que havia lá por baixo. Atrás deles desapareceu o pico, num véu de neve e neblina. E então abriu-se o tapete de nuvens. A camada contínua e plana deu lugar a fundas depressões de causar vertigens, e a elevadas colunas brancas. Vieram ainda poços maiores, e num deles caíam a pique as paredes sem fundo. Através dele avistaram um planalto arenoso, parecido com um deserto, com manchas verdes e acastanhadas, de cactos e cascalho. Estava quatro ou cinco mil metros abaixo deles, pois a Oeste caíam os Andes abruptamente para o Pacífico.
            Tinham-se mantido silenciosos durante todo o dia, já que o voo a tão grande altitude reclamava toda a energia de que dispusessem. Mas agora, ao conduzir a fêmea descendo a pique entre paredes de nuvens, o maçarico gritava, excitado. O poço atmosférico alargou-se e o ar assobiava à sua volta. Voavam em glissagens laterais, para reduzir a velocidade de descida. A princípio o ar era tão rarefeito que não podiam travar com as asas. Quase não tinham controlo sobre si próprios, e despenhavam-se de encontro ao solo. Mas o ar foi-se tornando mais denso, forneceu resistência às asas, e começaram a descer mais lentamente. A pressão crescia rapidamente e causava-lhes dores nos ouvidos. Depois de passarem a camada de nuvens, nivelaram o voo e dirigiram-se para o Pacífico, que viam no horizonte, como leve linha azul.
            Em dois ou três minutos tinham chegado com uma rapidez dramática a regiões muito diferentes do ermo gelado e luminoso de há pouco. Voavam ainda tão alto que só podiam distinguir contornos difusos. Muito embora, a terra era de novo sua. Lá em baixo havia solo e pedras e plantas, não já o nada aéreo das nuvens. Mas aqui o céu era opaco, não havia sol nem qualquer luz brilhava, na atmosfera quente. E o ar sentia-se novamente. Tinha de novo substância, dava às asas força e impulso e enchia os pulmões, sem que, ao expirar, eles sofressem de dolorosa dispneia.
            Sem perder tempo continuaram em frente, seguindo o terreno que caía a pique. E poisaram, já tarde avançada, numa estreita faixa de praia, à beira do Pacífico. Durante alguns minutos beberam sofregamente água salgada. Depois comeram, até escurecer.
            Ao crepúsculo clareou um pouco. E os grandes cones vulcânicos dos Andes desenhavam-se cruamente a Leste, ganhando um ímpeto e uma força aterradores. Todos os anos o instinto do maçarico o conduzia sobre esta poderosa barreira de calcário, de tempestades e neve. E todos os anos lançava um olhar para trás, antes que a lembrança se lhe apagasse. Por mais lento de raciocínio que o seu cérebro fosse, ficava sempre espantado com a resistência das asas.


O CORREDOR DA MORTE
           
            A comissão de protecção das aves receia que tenham de ser colocadas na lista dos animais ameaçados de extinção as seguintes espécies: o condor californiano (em 1939 já não existiam sequer 50 exemplares), o bico-de-marfim (são conhecidas menos de 30 aves), o maçarico-esquimó (efectivo desconhecido, caso ainda exista)...
            Não temos disponível nenhuma outra informação sobre o maçarico-esquimó. É perfeitamente possível que esta ave esteja extinta. Mas os relatos esporádicos de que dispomos, relativos aos últimos dez anos, deixam a esperança de que ele tenha sido casualmente avistado por alguns observadores. Apesar disso parece-nos aconselhável que a Liga Americana de Ornitólogos estabeleça ligação, quer na Argentina quer noutras repúblicas sul-americanas, com organizações ou pessoas individuais que estejam em condições de efectuar novas pesquisas. No caso de serem detectados maçaricos-esquimós que passam o Inverno na Argentina, poderiam ser tomadas medidas que lhes garantam uma melhor protecção, seja através da direcção do Parque Nacional Argentino, seja de qualquer outro modo...
(Cont.)