sexta-feira, 5 de julho de 2019

O último maçarico-esquimó 16


Quando a noite chegou já tinham atravessado o braço da corrente do Golfo que se dirige para Leste. Encontravam-se agora no meio do Atlântico, numa zona de cinco milhões de quilómetros quadrados, onde nenhuma corrente agita a água salobra e onde bóiam ilhas de algas esponjosas. Estavam sobre o Mar dos Sargaços, o mais estranho de todos os mares. E voavam há vinte e quatro horas sem descanso.
            Enormes tapetes de algas castanhas passavam por baixo deles. Quando perdiam altitude, viam os peixes-voadores com as suas barbatanas peitorais semelhantes a asas, lançando-se sobre os rolos húmidos de algas marinhas. Entre elas viviam caranguejos, camarões e caracóis. Em anos passados, por esta altura, já o maçarico tinha avistado os picos baixos do Sear’s Hill, nas Bermudas. Mas desta vez tinham sido afastados muito mais para Leste pela tempestade nocturna. O sol caía no mar sem fim. Quando escureceu, a água cintilava com o brilho claro e frio de milhões de seres fosforescentes.
            O maçarico conduziu o bando em frente, e durante toda a noite voaram a uma altitude de cerca de mil metros. De tempos a tempos, as aves comunicavam entre si através de pequenos gritos. Quando o maçarico seguia no comando, tinha que aplicar todos os sentidos para estar atento aos caprichos do vento e aos impulsos cósmicos. O seu cérebro traduzia estes impulsos num sentido de orientação. E, quando cedia o comando a uma tarambola, voava num estado de semi-sonolência. As asas batiam automaticamente, os olhos mantinham-se meio fechados, e ele seguia o turbilhão da ave precedente quase inconscientemente.
            Nessa noite, a estrela polar e as constelações do Árctico já se perdiam no horizonte. Para os lados do Sul apareciam estrelas novas. Pouco antes do romper do dia o vento tornou-se mais fresco. Soprava de Nordeste, forte, constante e monótono. Tinham atingido a zona dos alísios. Era um vento de bombordo, que lhes acelerava a velocidade nuns bons quinze quilómetros por hora.
            Apesar do vento, o dia estava quente. E por vezes deslizava à superfície da água a sombra azul escura dum tubarão. O bando estava perto dos trópicos, o mar tornava-se cada vez mais azul, e na atmosfera quente formavam-se maciças nuvens cumuliformes, cujas sombras salpicavam a água. Grossos montões de nuvens empilhavam-se, imóveis, no horizonte, a Oeste. Eram marcas de itinerário. Por baixo delas havia ilhas, cada uma com o seu capacete de nuvens, que podiam observar-se muito antes de elas se avistarem. O bando tinha agora diante de si o mar das Caraíbas e as Pequenas Antilhas. E lá à frente, por detrás do horizonte, à distância de doze horas de voo, encontravam-se as selvas e os montes da América do Sul.
            Após trinta e seis horas sobre o mar, os músculos e os nervos começaram finalmente a acusar cansaço. O voo deixou de ser um acto reflexo inconsciente e infatigável. Agora exigia esforço de vontade, e só a concentração determinada na tarefa fazia ainda bater as asas debilitadas. Duas noites e um dia sem alimento tinham afrouxado os processos no corpo das aves, que arfavam no ar quente dos trópicos. Mantinham os bicos abertos, pois tinham que respirar velozmente, para cobrir as necessidades de oxigénio dos pulmões. Três tarambolas novas, que faziam pela primeira vez a longa viagem sobre o oceano, atrasavam-se lentamente. O maçarico reduziu a velocidade, até ao ponto de as aves mais fracas se poderem aguentar.
            Ele sabia que havia ilhas além, a Oeste, por baixo das espessas nuvens do horizonte. Ficavam apenas a uma ou duas horas de voo. Porém, para as alcançar era preciso seguir um rumo em que o vento soprava directamente de cauda. E isso prejudicava o voo, tanto como o vento de frente. Por isso o maçarico mantinha a rota inicial. Ele sabia que havia de passar uma terceira noite antes que chegassem à costa. E se alcançassem terra firme na escuridão, numa noite cerrada e cheia de nuvens, só poderiam poisar quando os contornos dos mangais venezuelanos e das ilhas de areia dos estuários se pudessem desenhar na claridade da manhã.
            O dia demorou muito a passar. Mas finalmente o sol mergulhou no mar das Caraíbas, e rapidamente ficou escuro, quase sem crepúsculo. As nuvens cresceram e ocultaram a lua e as estrelas. Caíram as primeiras gotas, o bando chegava aos trópicos em pleno tempo das chuvas. Era uma chuva ligeira e fina, que refrescava o ar e facilitava a respiração. E assinalava a proximidade da costa.
            Durante duas horas voaram à chuva. O maçarico não podia ver nada, mas reconheceu imediatamente quando deixaram o mar e se acharam sobre terra firme. Primeiro trovejou, no escuro, a rebentação, e logo a seguir surgiram as turbulências das correntes térmicas, a elevar-se do solo quente.
            As aves não podiam senão continuar em frente, hora após hora. E agora, sabendo que por baixo delas se estendia terra firme, o voo tornou-se uma prova de força cruel, e cada batida de asa uma luta atormentada contra a inércia e o esgotamento. Muita energia era agora desperdiçada, uma vez que as rémiges estavam de tal modo estafadas que já não cortavam o ar como pás duma hélice. Tal como o faziam ao princípio, ao deixarem o Lavrador, com batidas ligeiras e fáceis.
            O maçarico sabia que, por trás da faixa costeira com praias e estuários de rios, havia mangais pantanosos. Eles estendiam-se ao longo de 250 quilómetros, e poisar neste emaranhado era tão difícil como fazê-lo no mar alto. Assim, quando clareasse, teriam que continuar a voar em frente, até atingirem os Llanos relvados da Venezuela. As asas tinham-se tornado pesadas, mas o maçarico ganhava altura para poder ultrapassar os montes costeiros. Era um tormento. Atravessaram os montes e o cansaço mantinha-se, crescia de repente em guinadas agudas, e fazia vibrar cada fibra dos seus pequenos corpos.
(Cont.)