Quando a noite chegou já tinham atravessado o braço da
corrente do Golfo que se dirige para Leste. Encontravam-se agora no meio do
Atlântico, numa zona de cinco milhões de quilómetros quadrados, onde nenhuma
corrente agita a água salobra e onde bóiam ilhas de algas esponjosas. Estavam
sobre o Mar dos Sargaços, o mais estranho de todos os mares. E voavam há vinte
e quatro horas sem descanso.
Enormes
tapetes de algas castanhas passavam por baixo deles. Quando perdiam altitude,
viam os peixes-voadores com as suas barbatanas peitorais semelhantes a asas,
lançando-se sobre os rolos húmidos de algas marinhas. Entre elas viviam
caranguejos, camarões e caracóis. Em anos passados, por esta altura, já o
maçarico tinha avistado os picos baixos do Sear’s Hill, nas Bermudas. Mas desta
vez tinham sido afastados muito mais para Leste pela tempestade nocturna. O sol
caía no mar sem fim. Quando escureceu, a água cintilava com o brilho claro e
frio de milhões de seres fosforescentes.
O
maçarico conduziu o bando em frente, e durante toda a noite voaram a uma
altitude de cerca de mil metros. De tempos a tempos, as aves comunicavam entre
si através de pequenos gritos. Quando o maçarico seguia no comando, tinha que
aplicar todos os sentidos para estar atento aos caprichos do vento e aos
impulsos cósmicos. O seu cérebro traduzia estes impulsos num sentido de
orientação. E, quando cedia o comando a uma tarambola, voava num estado de
semi-sonolência. As asas batiam automaticamente, os olhos mantinham-se meio
fechados, e ele seguia o turbilhão da ave precedente quase inconscientemente.
Nessa
noite, a estrela polar e as constelações do Árctico já se perdiam no horizonte.
Para os lados do Sul apareciam estrelas novas. Pouco antes do romper do dia o
vento tornou-se mais fresco. Soprava de Nordeste, forte, constante e monótono.
Tinham atingido a zona dos alísios. Era um vento de bombordo, que lhes
acelerava a velocidade nuns bons quinze quilómetros por hora.
Apesar
do vento, o dia estava quente. E por vezes deslizava à superfície da água a
sombra azul escura dum tubarão. O bando estava perto dos trópicos, o mar tornava-se
cada vez mais azul, e na atmosfera quente formavam-se maciças nuvens cumuliformes,
cujas sombras salpicavam a água. Grossos montões de nuvens empilhavam-se,
imóveis, no horizonte, a Oeste. Eram marcas de itinerário. Por baixo delas
havia ilhas, cada uma com o seu capacete de nuvens, que podiam observar-se
muito antes de elas se avistarem. O bando tinha agora diante de si o mar das
Caraíbas e as Pequenas Antilhas. E lá à frente, por detrás do horizonte, à
distância de doze horas de voo, encontravam-se as selvas e os montes da América
do Sul.
Após
trinta e seis horas sobre o mar, os músculos e os nervos começaram finalmente a
acusar cansaço. O voo deixou de ser um acto reflexo inconsciente e infatigável.
Agora exigia esforço de vontade, e só a concentração determinada na tarefa
fazia ainda bater as asas debilitadas. Duas noites e um dia sem alimento tinham
afrouxado os processos no corpo das aves, que arfavam no ar quente dos
trópicos. Mantinham os bicos abertos, pois tinham que respirar velozmente, para
cobrir as necessidades de oxigénio dos pulmões. Três tarambolas novas, que faziam
pela primeira vez a longa viagem sobre o oceano, atrasavam-se lentamente. O
maçarico reduziu a velocidade, até ao ponto de as aves mais fracas se poderem
aguentar.
Ele
sabia que havia ilhas além, a Oeste, por baixo das espessas nuvens do
horizonte. Ficavam apenas a uma ou duas horas de voo. Porém, para as alcançar
era preciso seguir um rumo em que o vento soprava directamente de cauda. E isso
prejudicava o voo, tanto como o vento de frente. Por isso o maçarico mantinha a
rota inicial. Ele sabia que havia de passar uma terceira noite antes que
chegassem à costa. E se alcançassem terra firme na escuridão, numa noite
cerrada e cheia de nuvens, só poderiam poisar quando os contornos dos mangais
venezuelanos e das ilhas de areia dos estuários se pudessem desenhar na
claridade da manhã.
O dia
demorou muito a passar. Mas finalmente o sol mergulhou no mar das Caraíbas, e
rapidamente ficou escuro, quase sem crepúsculo. As nuvens cresceram e ocultaram
a lua e as estrelas. Caíram as primeiras gotas, o bando chegava aos trópicos em
pleno tempo das chuvas. Era uma chuva ligeira e fina, que refrescava o ar e
facilitava a respiração. E assinalava a proximidade da costa.
Durante duas
horas voaram à chuva. O maçarico não podia ver nada, mas reconheceu
imediatamente quando deixaram o mar e se acharam sobre terra firme. Primeiro
trovejou, no escuro, a rebentação, e logo a seguir surgiram as turbulências das
correntes térmicas, a elevar-se do solo quente.
As aves
não podiam senão continuar em frente, hora após hora. E agora, sabendo que por
baixo delas se estendia terra firme, o voo tornou-se uma prova de força cruel,
e cada batida de asa uma luta atormentada contra a inércia e o esgotamento.
Muita energia era agora desperdiçada, uma vez que as rémiges estavam de tal
modo estafadas que já não cortavam o ar como pás duma hélice. Tal como o faziam
ao princípio, ao deixarem o Lavrador, com batidas ligeiras e fáceis.
O
maçarico sabia que, por trás da faixa costeira com praias e estuários de rios,
havia mangais pantanosos. Eles estendiam-se ao longo de 250 quilómetros, e
poisar neste emaranhado era tão difícil como fazê-lo no mar alto. Assim, quando
clareasse, teriam que continuar a voar em frente, até atingirem os Llanos
relvados da Venezuela. As asas tinham-se tornado pesadas, mas o maçarico
ganhava altura para poder ultrapassar os montes costeiros. Era um tormento.
Atravessaram os montes e o cansaço mantinha-se, crescia de repente em guinadas
agudas, e fazia vibrar cada fibra dos seus pequenos corpos.
(Cont.)