quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

As Aves 6

Nestas coisas, o melhor é ter as despedidas sempre feitas, e este esclarecimento veio do condutor da minúscula viatura, parece impossível que tal estatura possa meter as pernas no espaço dos pedais, este consegue-o e mantém um ar seguro e decidido, mais tranquilos vamos nós nas mãos deste são cristóvão, o qual acrescenta, despedidas feitas e nada de pessoal, o que é pessoal tolhe gestos e decisões, retira disponibilidade para uma luta geral em que cada um de nós não toma mais que uma ínfima parte.

Cada um de nós pouco vale, o que conta é a vitória final e a confiança que havemos de ter nos amanhãs que cantam, onde é que eu já ouvi isto, perguntou a si mesmo Gaspar, o queixo apoiado na palma da mão e os olhos correndo a paisagem castelhana através do vidro minúsculo. O luar desenha rápidos vultos de ainheiras torturadas que trotam sem descanso, ao longe perpassam luzes de alguma finca isolada, ou serão apenas cristais duma lágrima que da taça deste peito transbordou.

Mas um homem não é de pau, com perdão do lugar-comum e de rasteiras insinuações, e muito poucas são as têmperas de puro aço. Gaspar alheou-se da circunstância, perdido nos seus pensamentos ou nos descampados infindos de Castela, raras aldeias desfilam a tempos no silêncio geral do mundo adormecido, o resto é estrada aberta sem encruzilhadas nem escolhas, este é um comboio que já não pára, não há apeadeiro para quemnele montou.

A lua deslocou-se no céu, esconde-se agora sobre o tejadilho do carro, e Gaspar pensa que a esta hora já não bate o luar nas janelas do terceiro andar do Areeiro, se nalguma delas haverá ainda luz, se estarão já dormindo os filhos, ou se uma voz está justamente deslindando o final da história dos dois meninos que foram passear ao monte e se perderam. Que bosque é este, em que se perderam estes dois que aqui vão, e se esta história acabará, como a outra, em bem, no meio de abraços gerais e grande júbilo familiar, rico filho da minha alma, que julguei não tornar a ver-te. A outra é uma história de inventar, para adormecer meninos, há uma luzinha ao longe, no monte, e acaba por saber-se que, afinal, é a janela da casa dos ladrões, mas isso não passa duma peripécia que introduz o mal num jogo em que o bem acaba sempre por vencer. (cont.)