domingo, 18 de fevereiro de 2024

As Aves 8

Está ali encostado na cama, neste abandono lasso de membros, há muito que escolheu campo mas tem agora as suas hesitações, além de campo escolhido tinha o práprio Cristo o seu fadário, com mais adequada linguagem falaríamos dum destino, se o profeta não terá mesmo referido uma imposição categórica do pai, e por aqui se vê que não são de agora estes desconcertos de gerações, e apesar disso tudo o mesmo Cristo hesitou na hora da verdade, se for possível, pai, deixa que passe por mim este cálice sem que eu o beba. Gaspar hesita, e não é de fel o copo que tem que recusar, difícil não será isso para deuses mas ele é um simples mortal, o que teme é o risco, a insegurança, ai o aconchego tranquilo desta casa de terceiro andar. Gaspar hesita, a dar-nos tempo de contarmos aqui as contraditórias forças que o reclamam, há coisas que mais tempo levam a contar do que o fugaz relance em que sucedem, qualquer um sabe disso.

Vinha Gastar descendo a avenida João XXI, para o Campo Pequeno, à procura duma pensão, era ainda um menino dentro da sua farda de aviador. Trazia nos olhos aflitos o fascínio das paisagens de Angola, e as saudades dos amigos que tinha visto morrer, e as imagens absurdas que lhe povoavam os pesadelos e o aterravam, depois daquele encontro assim de cara aberta com a morte, num desastre aparatoso. Tinham-no mandado, ainda menino, defender a pátria. E ele acreditava que havia pátria, e que esta era uma e a mesma grande mãe de todos, e que devia defender-se, lá onde fosse preciso. E foi, e lá pôs a sua força generosa nas mãos dos que mandavam na pátria, e agora estava ali, regressado à rectaguarda para recuperação no hospital, como se rectaguarda houvesse, e trazia a alma cheia de rasgões e de medos, a precisar dum bálsamo, a precisar duma atenção da pátria, a precisar de um seu gesto suave no cabelo, como fazem as mães. E ao descer a avenida João XXI, desamparado que nem um cão à chuva, à procura duma pensão, de Gaspar falamos, pois claro, teve a revelação dolorosa da inutilidade de tudo. Poisou no chão o pequeno saco de viagem e encostou-se a uma ombreira alta. A multidão passava, era Setembro, e havia formas bonitas de mulheres expostas nos trajes exíguos, e havia um desdém ocupado nos homens que passavam engravatados, aos pares, com largos gestos de mão, a discutir importantíssimos interesses, e havia indiferença nos olhares que às vezes desciam até ele, sentado assim sem forças no degrau de pedra dum patamar, se dentre eles algum era olhar de poeta chegava-lhe embrulhado num cetim de fastio, ou numa grande tristeza, como se fosse um lamento, e havia um desprezo altivo nos lábios vermelhos das matronas que lá iam, agitando braceletes douradas. Havia olhos tristes e risadas escancaradas, a vida passava ao seu lado, como um rio, indiferente ao seu naufrágio interior, cega e surda à hecatombe da juventude que apodrecia lentamente nos planaltos africanos, que endoidecia lentamente nos planaltos africanos, afinal é mentira tudo quanto diz a propaganda oficial,e eu prefiro rosas, meu amor, à Pátria, afinal está pátria é uma madrasta galdéria que tem vergonha do abcesso africano, que prefere desconhecer o abcesso africano, que esquece, para não sentir, a dor que todos os abcessos provocam.