Porém, não é de passeio que aqui se trata, isso mesmo afiançam os fracos cavalos desta carruagem que por Castela nocturna vai avançando, esgotados e raivosos já desta maratona, e melhor do que eles o poderia fazer Gasparse nos dissesse em que pensa, não foi um convite para passear que o acordou naquela manhã, haverá três meses. Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer, e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, raivosos e esgotados como estes que agora nos transportam, mas menos dóceis e previsíveis, e a voz que apareceu ao telefone e assim arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar, e o seu tom era ainda mais seguro e voluntarioso do que hoje foi, quase triunfalista, se não era apenas exercício táctico de quem faz das fraquezas forças, ou ligeireza de quem mete os cães à fieita e na sombra se fica.
Assim mergulhado na penumbra matutina do quarto ficou Gaspar estremunhado e hesitante, já sabemos que o nome ainda não era este, a história já estava acontecendo mas ainda não tinha passado dos começos, chamemos-lhe por isso Gaspar, modo de falar para melhor nos entendermos. Estes olhos fechados têm pesadas olheiras de cansaço, e a cabeça que assim repousa encostada à cabeceira da cama parece, por momentos, agir por conta própria e buscar uma decisão. Gaspar sentiu o corpo da mulher abandonado ao lado, que mais verdes prados haverá no mundo do que estas tépidas campinas onde um vento enlouquecedor sopra sempre, ou do que estas ondulações a esconder na paisagem do corpo abismos de fogo e mel a que ele nunca soube resistir.
Na rua crescia a agitação matutina, alguém subiu e voltou a descer as escadas de madeira do terceiro andar, talvez o padeiro, a mulher-a-dias não teria ido embora sem bater, e ainda é cedo, que disparate, para ela chegar dos lados das barracas de Chelas, é assim, uns a comer as carnes da vida e para outros apenas a sobrarem os ossos, se não haverá mais justas formas de administrar os trabalhos e as incomodidades do mundo, descansem estes aqui no abençoado choco dos lençóis que outros lhes virão trazer à mesa os pãezinhos de leite para o café, as carcaças de farinha ainda assim cheirosa e quente, basta pôr-lhes dentro a manteiga que por ela mesma se derrete, e para quê pensar no trabalho que deu a produzir se por milagre aqui apareceu, com tão fraco merecimento nosso e tão a tempo de calar o apetite matinal que esta suada e gemida noite provocou. É o caso destes dois insignificante exemplo, que assim se toma por estar aqui à mão, são as pequenas coisas que mais claro significado têm e mais profundo sulco nos deixam na consciência, calhando um homem tropeçar nela.
É o caso de Gaspar, insistamos no indevido nome, para bem ou para mal fruto da sua pessoal história, ou de certo currículo de vida, tem a revolução destes surpreendentes caprichos, como seja empurrar cada um até esta encruzilhada e forçá-lo a escolher um dos caminhos, agora diz lá de que ldo ficas tu nesta batalha que aqui se trava, a que vozes juntas a tua voz para gritar, porque a revolução é um grito que deixou de poder calar-se, se nunca tiveste direito a gritar aproveita agora, muitos nem assim se decidem, apura-se o ouvido e nada, nem preta nem branca, preferem ver primeiro em que param as modas, como quem escolhe cavalo só depois da chegada à meta, para terem a certeza de não perder a aposta que sobre a mesa está. Não é este o caso de Gaspar, que já escolheu campo, e acredita ainda que a vida se rege por princípios, e que tem ideais, e que está na hora de lutar por uns e por outros. (Cont.)