Já outros entendiam a vida das sociedades como uma barcaça antiga, a hesitar entre disputas e ralhos, dirigida porémpelos escolhidos em eleições democráticas e livres, ou por alguns mais expeditos, como vezes bastantes se tem visto e se há-de tornar a ver. Porém, enquanto uns e outros se tomavamde tais razões, velhos senhores de ânimo recobrado começaram a mover armas e tropas, afinando estratégias em segredo, enquanto bombistas multiplicavam assaltos e atentados, e o governo preparava a saída de Lisboa, declarando greve à impossível função de governar. Por isso Gaspar ficou surpreendido quando as movimentações das tropas rebentaram, participou nelas com o sobressalto que já vimos e as dúvidas quenos confidenciou, e aguardou um desenlace que lhe não traria surpresas. Foi só asi próprio que enganou, se engano houve. Porém, mais por saber o que não queria, do que por estar certo daquilo que buscava, nunca cedeu aos sinais de derrocada, como fazem os ratos em cheirando a água nos porões.
Derrocada, porém, não foi o que agora aqui houve, nada mais que um desfalecimento passageiro, um baque no chão de que este companheiro já se recompôs, a embaixada segue rua adiante, o caminho espera por nós.
E é longo, este caminho. Rodando no céu, a lua descaiu para o indistinto horizonte, não chega este luar para claramente iluminar o mundo, se o mundo se terá tornado vasto demais para nós, ou nós por demais minúsculos perante ele.
E talvez seja isso. São todos os homens formigas demasiado minúsculas perantea vida, mesmo as que seguem de vaidoso rabo alçado no carreiro, bêbedas deste verão que aí está e não vai durar muito. São bonitos os sonhos que na arca do peito lhes rebentam, mais fáceis de sonhar quede materializar, que estes sonhos pedem o que nunca foi feito, e exigem, para viver, um mundo que ainda não houve. É demasiado simples decretar a igualdade geral, e que nenhum homem construa a sua felicidade com o sofrimento alheio. E tavez aí se funde este azedume que em Gaspar desvendámos, e esta intolerância com fraquezas que a si próprio não permite. Em rigor, o que ele sente é o desconforto de ter persistido em acreditar, mesmo quando a sua intuição lhe segredava os perigos que aí vinham, em acreditar na litania da capacidade milagrosa das massas,dos operários, dos camponeses, dos soldadose dos marinheiros, em acreditar que só os pequeno-burgueses pusilânimes descrêem da força e do avanço imparável da história, sem se darem conta, uns e outros, de que apenas são já uma trupe de robertos de feira, nas mãos de quem recuperou o comando dos acontecimentos, e os manipula em silêncio.
Poderia Gaspar ter ficado estendido, como outros, debaixo da grande figueira bíblica que esta vida é, olhai as aves do campo, que não semeiam nem colhem. Sejas tu homem cordato e reverente, sabendo esperar alguma coisa te há-de vir à mão, quando os figos maduros, em Setembro, vierem a cair. Foi culpa sua ter desprezado este saber de séculos, se presunção temerária não foi antes o seu pecado original. Já ao pai adão rebentaram os beiços deste leite, e mais eram do paraíso os figos verdes que comeu. (cont.)