Hoje não há literatura, nem há os críticos dela. O que há por aí é o mercado e os seus divulgadores.
E o leitor está condenado a arruinar orçamentos, trazendo para casa romances que não lê, ou começa e não acaba. Prémios disto, e daquilo, e daqueloutro. Que o mercado negoceia como rabanetes.
De forma que me pus a andar para trás, a retomar coisas velhas que vale a pena reler. Como esta página de Os Cus de Judas.
"- Uma doença, doutor - insistia o tenente - anemia, leucemia, reumatismo, cancro, bócio, uma doençazeca, uma doença de merda que me passe à reserva: o que fazemos nós aqui? Você já se perguntou o que fazemos aqui? Pensa que alguém nos agradece? Ainda por cima, imagine o meu azar, recebi ontem carta da minha mulher a participar-me que a criada se despediu, foi-se embora, pirou-se: não estava lá o rapaz para pôr o selo na pequena e o resultado viu-se. Vá por mim, doutor, sopeira em que o patrão não se ponha nunca chega a criar amor à casa. Tinha-lhe comprado meias de renda pretas e cuecas vermelhas, as cores da Artilharia, a minha mulher saía cedo para o emprego, ela trazia-me o pequeno-almoço à cama com as meias e as cuecas, boa como o milho, levantava o lençol, olhava e dizia Ai senhor tenente que hoje está tão grande. Ó doutor, só queria que provasse aquela competência. E os modos? E a delicadeza? Nunca lhe ouvi nenhum palavrão, era sempre o coiso. O seu coiso isto, o seu coiso aquilo, dê-me o seu coiso, senhor tenente, gosto tanto do seu coiso, meta o seu coiso na minha coisinha. Que é que me responde a isto, hã?
De olhos fechados, com a voz enorme do tenente a rebolar pelo quarto, eu pensava: há onze meses que não vejo cortinas, nem tapetes, nem cálices, nem alcatrão, e era como se essas quatro ausências constituíssem a base elementar de qualquer espécie de felicidade, há onze meses que só vejo morte e angústia e sofrimento e coragem e medo, há onze meses que me masturbo todas as noites, como um puto, a tecer variações adolescentes em torno das mamas das fotografias do cubículo das transmissões, há onze meses que não sei o que é um corpo ao pé do meu corpo e o sossego de poder dormir sem ansiedade, tenho uma filha que não conheço, uma mulher que é um grito de amor sufocado num aerograma, amigos cujas feições começo inevitavelmente a esquecer, uma casa mobilada sem dinheiro que não visitei nunca, tenho vinte e tal anos, estou a meio da minha vida e tudo me parece suspenso à minha volta como as criaturas de gestos congelados que posavam para os retratos antigos.
- Amanhã sigo de bimotor para Luanda. Quer que dê uma trancada na sopeira por si?"