Na última segunda-feira fui a uma primeira consulta de ORL onde uma jovem médica me observou com o desvelo e a delicadeza que está longe de imaginar quem lê jornais, vê televisão, ouve rádio ou frequenta redes sociais, sem conhecer o SNS.
Aliás, é esta a regra de várias consultas a que recorro e que me levam a suspeitar que os médicos e enfermeiros elegeram, como bastonários, os porta-vozes de Cavaco e Passos Coelho, para a saúde, com forte vocação sindical.
Perante a forma como sou tratado e os recursos usados para um idoso sénior, que ora me define, tenho a impressão de que o acesso aos meios de comunicação é a prerrogativa de militantes dos partidos que votaram contra a criação do SNS, cada vez mais exigentes e desejosos de satisfazerem o sector privado e a rede hospitalar das Misericórdias.
Volto à médica especialista em ORL. Marcou-me nova consulta e um audiograma que a antecederá, e preveniu-me de que a idade e a perda natural da acuidade auditiva podiam levar a ter de (me) aparelhar.
Felizmente não se apercebeu de um leve e irreprimível sorriso que esbocei. Num ápice, a previsão de ‘me aparelhar’ devolveu-me à infância onde o avô materno me dizia para aparelhar a burra e levá-la ao Espadanal onde a avó já teria mondado as ervas daninhas antes de iniciar a rega com a escassa água que não escolhia raízes.
Às vezes punha-lhe as cangalhas para trazer quatro cântaros de água porque as fontes da aldeia estavam secas.
E lá ia eu à corte, orgulhoso da tarefa, a enfiar o cabresto à burra, a pôr-lhe a albarda, a apertar-lhe a cilha e a atirar os alforges para cima da albarda, para trazer legumes e algumas batatas que se arrancassem durante a rega. Depois era correr, montado na burra que não se ressentia do peso-pluma do corpo do garoto, passando a trote à Fonte do Vale e acabando a galope duas centenas de metros depois junto à portaleira da horta.
Quando chegava, era um divertimento desaparelhar o animal, colocar-lhe a belfa, ajeitá-la ao cambão e vendá-la antes de a pôr a rodá-lo, enquanto a água do poço esvaziava no vaivém dos copos da nora, a correr pela regueira nas leiras de feijões, cebolas, tomates, alfaces e batatas para onde a avó sucessivamente a encaminhava.
Há quase sete décadas era eu que aparelhava uma burra, com a alegria de desempenhar a tarefa, agora é a jovem clínica que admite aparelhar-(me) as orelhas, para melhorar a acuidade auditiva que o endurecimento da membrana do tímpano embotou.
Ouvi. Sem zurrar. É preferível o aparelho auditivo ao cabresto, mas há de custar mais a suportar do que os atafais à burra, que se deslocava pacientemente, ligada pelo rabeiro à mão que a conduzia.
Aliás, é esta a regra de várias consultas a que recorro e que me levam a suspeitar que os médicos e enfermeiros elegeram, como bastonários, os porta-vozes de Cavaco e Passos Coelho, para a saúde, com forte vocação sindical.
Perante a forma como sou tratado e os recursos usados para um idoso sénior, que ora me define, tenho a impressão de que o acesso aos meios de comunicação é a prerrogativa de militantes dos partidos que votaram contra a criação do SNS, cada vez mais exigentes e desejosos de satisfazerem o sector privado e a rede hospitalar das Misericórdias.
Volto à médica especialista em ORL. Marcou-me nova consulta e um audiograma que a antecederá, e preveniu-me de que a idade e a perda natural da acuidade auditiva podiam levar a ter de (me) aparelhar.
Felizmente não se apercebeu de um leve e irreprimível sorriso que esbocei. Num ápice, a previsão de ‘me aparelhar’ devolveu-me à infância onde o avô materno me dizia para aparelhar a burra e levá-la ao Espadanal onde a avó já teria mondado as ervas daninhas antes de iniciar a rega com a escassa água que não escolhia raízes.
Às vezes punha-lhe as cangalhas para trazer quatro cântaros de água porque as fontes da aldeia estavam secas.
E lá ia eu à corte, orgulhoso da tarefa, a enfiar o cabresto à burra, a pôr-lhe a albarda, a apertar-lhe a cilha e a atirar os alforges para cima da albarda, para trazer legumes e algumas batatas que se arrancassem durante a rega. Depois era correr, montado na burra que não se ressentia do peso-pluma do corpo do garoto, passando a trote à Fonte do Vale e acabando a galope duas centenas de metros depois junto à portaleira da horta.
Quando chegava, era um divertimento desaparelhar o animal, colocar-lhe a belfa, ajeitá-la ao cambão e vendá-la antes de a pôr a rodá-lo, enquanto a água do poço esvaziava no vaivém dos copos da nora, a correr pela regueira nas leiras de feijões, cebolas, tomates, alfaces e batatas para onde a avó sucessivamente a encaminhava.
Há quase sete décadas era eu que aparelhava uma burra, com a alegria de desempenhar a tarefa, agora é a jovem clínica que admite aparelhar-(me) as orelhas, para melhorar a acuidade auditiva que o endurecimento da membrana do tímpano embotou.
Ouvi. Sem zurrar. É preferível o aparelho auditivo ao cabresto, mas há de custar mais a suportar do que os atafais à burra, que se deslocava pacientemente, ligada pelo rabeiro à mão que a conduzia.
(Do Ponte Europa do Carlos Esperança)