terça-feira, 26 de novembro de 2019

Em três actos

1 - Acabado o quinto ano ano liceal, em tempos pré-históricos, matriculei-me em Letras no sexto. E lá estive uma semana. Depois passei para Ciências, e fui encontrar os meus novos colegas no laboratório de Física. Foi depois disso que as coisas descambaram.

2 - O exército é o espelho da nação, era isto o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótica, o exército português é tão bom como os melhores.
Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem, entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas.Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.

3 - Eram sete horas, Gaspar dormia um sono pesado, os dias eram frenéticos como só sabe quem os viveu e ainda não se esqueceu deles, e as noites pequenas para leituras, dos clássicos para aprender de cor a revolução, e dos jornais da tarde para saber o que a revolução fazia acontecer e que descaminhos tomava. Andavam loucos os cavalos da revolução, e a voz que apareceu ao telefone e arrancou Gaspar ao sono dizia justamente que havia estranhos cavalos à solta nos verdes prados da revolução, o melhor era pôr-se em campo. A mesma voz, a voz que apareceu ao telefone era a mesma voz que hoje de manhã lhe entregou o passaporte falso, quando passou a chamar-se Gaspar. (...)
Havia tropas amigas na rua, nos últimos dias era duma evidência transparente que ficaria sem cabeça quem a expusesse, e por isso Gaspar não compreende, sabe só que as tropas nunca se movimentam sem ordens, não sabe ainda que nunca saberá donde tais ordens vieram. Vai para uma base militar onde encontra confinada num salão toda a oficialidade, pastoreada pela tropa alevantada enquanto joga às damas, enquanto dá umas tacadas no bilhar, enquanto a meia voz comenta o insólito, quem sabe se inesperado, súbito lance. Gaspar ensaia uma explicação do que está a acontecer, tenta mostrar os limites da sublevação, procura legitimar-lhe os objectivos. Ainda não sabe que a razão não desempenha aqui qualquer papel, outros são os motivos que levam os homens a ver, não o que está, mas o que querem ver, numa revolução. E é ele próprio quem vê, pela primeira vez, o ódio nos olhos dos camaradas de ontem, que lhe chamam traidor e não entendem, alguns cospem-lhe aos pés e não entendem que se possa desejar outra coisa, que se pretenda substituir a definitiva rigidez de cadáver dos códigos deontológicos pelo calor suado e desprezível do povo, não entendem que se possa trocar esta vazia, mas certa, segurança, pela duvidosa aventura de indefinidas utopias, por sonhos incertos de transformar o mundo. (...)
Os viajantes chegam à fronteira quando a noite caía. E só João interrompeu o mutismo geral para recolher os passaportes, saiu devagar da viatura e dirigiu-se à casa dos guardas. O silêncio tornou-se mais espesso e constrangido, e Gaspar não pôde evitar um sobressalto no peito, fruto só da pouca habituação a estes andamentos, um carabineiro veio espreitar os passageiros que vêm em turismo, debruçou-se para a minúscula janela, cotejou as caras com os retratos e mandou avançar.
Nada é mais contraditório do que os homens. Passámos a fronteira de França,e sendo isto motivo de particular alívio e geral distensão, a tristeza nos peitos é maior. Estes viajantes deixaram de ter razões de insegurança, ninguém aqui virá saber quem são e ao que vêm, indagar dos falsos passaportes, esmiuçar-lhe um dente irregular no selo branco. Há longos anos tem sido esta terra um local de refúgio de portugueses, dos clandestinos da fome, dos refractários duma comprida guerra, não vai deixar de sê-lo agora para os que doutra guerra escapam. E no entanto cresce a melancolia nestes olhos, passámos a vida a pensar que a liberdade é tudo e enganámo-nos, estamos finalmente soltos e preferíamos não estar, temos o mundo todo à mão e o nosso a ficar-nos para trás, cada vez mais distante.
João é que não esconde o seu contentamento. Procura um restaurante aprimorado, esmera a selecção das vitualhas, pede para nós um beaujolais. O jantar é um consolo para o corpo, a gentileza da França faz o resto. Leva-nos ao comboio, falamos de João que fortemente nos envolve nos braços compridos, antes de dobrar ao fundo a esquina da calçada, uma chuva angustiada cai.
Na vida é como no cinema, conclui Gaspar, preso ainda no relance final do carro branco, insistentemente chove quando alguém se vai embora para sempre.Nos filmes entendemos porquê, na vida não.