sexta-feira, 20 de março de 2009

Vidas vãs - 2

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Não temos uma terra nossa, e por isso passámos o inverno nos olivais da terra quente, saíamos de casa ainda a manhã vinha em Castela, levávamos uma côdea na bolsa e ao romper da alva estávamos lá para pegar ao trabalho, enterrados os dedos na geada da manhã onde a azeitona se sumia, tiritávamos de frio como fantasmas assustados por entre as oliveiras perdidas na névoa, passa um homem um dia inteiro nas vinhas de Vila Garcia a podar as videiras, a atar-lhes os braços, a descavar-lhes o tronco retorcido, a ampará-las como se fossem filhas nossas, e vai-se a ver o caso não no são, que outros lhes hão-de provar o fino mosto, fica-te lá tu com os dez reis do teu salário. Com tanto nos ficamos nós, e tão pouco nos pesa no caminho de casa onde chegaremos alta noite, tempo de dormir que amanhã havemos de partir de novo, antes que nos luza o buraco. E tu ficarás, mulher, assentada ao tear, e os vizinhos hão-de ouvir o teu matraquear na teia de estopas, que nos há-de afugentar de casa as precisões.
O segundo filho já nasceu, não que tenhamos nós ajardinado um propício lugar para nele vir ao mundo, é isto um modo de dizer que tão grande foi o nosso desejo de o fazer como a vontade dele em ter nascido, nestas coisas cada um faz o que lhe compete sem se ater a perguntas que ninguém lançou, porque nasceste tu, porque morreu aquele, o destino é que manda, e quem sobre ele está ainda nada disse nem mandou dizer.
Não temos uma terra nossa, arrendada que fosse, e quando chegar o verão havemos de partir de novo, para os trigais do Mogadoiro, e por lá nos quedaremos um mês enquanto a seara resistir, e tu ficarás, mulher, nas suaves colinas de Foz-Côa, e hás-de ferir as mãos encordoadas na apanha das garrobas, e beberás a água dos charcos, e apanharás sezões. E dali havemos de partir para os fenos da serra, e até que os braços nos caiam e o peito se recuse ao peso da gadanha, havemos de levar até ao fim a empreitada, se nos sobrará o génio para receber o salário que nos compete.
A nós competia-nos agora ter uma terra nossa, pois o terceiro filho vem a caminho e não se calam as precisões dos dois cadetes, vive a gente para aqui sem haver entre nós e os bichos fundamental diferença, tão vasto é o mundo e tão madrasta a terra que não há no coração dela lugar para os filhos próprios, enteados seremos nós sem disso nos darmos conta, acaso a miséria duns servirá neste mundo para engordar a barriga doutros, aí está um caso que talvez fosse bom esclarecer, e em que barrigas caberá toda a penúria que passamos, e os ingénuos sonhos que desde o nascer nos rebentam na arca do peito e nela morrem sem cumprimento, melhor fora não termos nós cabeça para pensar nem alma para sentir as faltas, acaso é essa a última coisa que não nos tiraram ainda, quem sabe se por já não lhes caber na barriga, ou se por aumentar assim o nosso desconforto e menosprezo. É esta vida um vale de lágrimas, a tanto se resume o que sempre nos quiseram ensinar, e se desde o princípio do mundo assim tem sido, muitas barrigas se fartaram já do nosso mau viver, do nosso medo pânico da fome e da opressão aflita em que nascemos e morremos.
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