sexta-feira, 13 de março de 2009

Portugalmente (31)

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O viajante fecha o rádio. Com tais tribulações passou agora mesmo por um anjo guardador, que estava ali sentado num marco da estrada, e nem deu conta dele. No meio da destruição geral, há-de ser obra do anjinho este milagre, um pinheiral que resistiu aqui, no início da subida, tão inteiro e natural como os seus irmãos do paraíso, antes do pecado original. Oxalá se mantenha o velador, de asa viva e olho atento, oxalá não venham a distraí-lo mais estranhos viajantes. A nós compete-nos seguir, pois já nos deram os olhos no espelho da barragem, ali à mão direita. Já chegámos ao largo onde a estrada se bifurca, o Terrenho está na nossa frente.
Diversamente de outros mais falados, este largo nunca foi o centro de mundo nenhum. Bem ao contrário, foi sempre um sítio distante, um triângulo de roseiras bravas, cercado de castanheiros. Mais tarde as casas foram-se aproximando, um dia vieram ter com ele, e hoje a aldeia começa mesmo aqui, nesta oficina de automóveis.
O viajante estaciona o carro no terreiro. A tarde vai ainda a meio e ele vem cheio de sol, por isso fica uns bons minutos regalado, à fresca dum castanheiro. O dono da oficina está debruçado nas entranhas dum carro velho, distraído com um enigma de fios. E este falso cliente evitaria interrompê-lo, se não fosse justamente de conversa que ele vem à procura.
- A trabalhar assim, mestre?! Apetecia era um banho fresco, lá em baixo!
A represa foi obra da senhora câmara e dos fundos da Europa. Uns espanhóis vieram aí fazê-la, a ver se matam de uma vez a sede à vila. Aqui há décadas, quando construíram a barragem de Ranhados, lá para as terras do demo, a senhora câmara desdenhou associar-se à obra, que já tinha água mais que suficiente. Realmente já tinha sugado as nascentes todas da serra, umas atrás das outras, foi ele a do Prazo, e a do Santo Menino, e a do Tornadoiro, já tinha deixado secas todas as levadas que desciam a encosta, e durante séculos regaram hortas e chãs, e todos os quintais da aldeia. Mas a vila foi crescendo e nenhuma água lhe foi suficiente. Só faltava levar a ribeira para completar a obra, e foi o que fizeram agora.
O mestre vai alternando as tiradas da conversa com os gestos do seu trabalho. Melhor para o viajante, que assim aprecia uns, enquanto vai ouvindo as outras. Antigamente, quando a riqueza estava toda na terra, não havia aldeia com a força desta, em todo o concelho. Não falando, claro está, da terra quente, para lá daqueles montes, onde se colhe o vinho e o azeite, que são o maior calor da vida. Afora isso, havia aqui águas à fartura e largueza de campos, que davam tudo o que lhes era natural. Saíam do Terrenho as melhores castanhas do mundo, ouviu muitas vezes este mestre a quem percebia do assunto.
Não quer isto dizer que não houvesse fome, isso houve sempre no mundo. A gentinha era muita e as terras também, mas todas tinham dono. Um dia, em sessenta, começou a debandada para a França e nunca mais parou. E tudo isto ficou ao desamparo. Sem os braços antigos a trabalhar por uma côdea, a gente abastada foi viver para a cidade, perdeu interesse nas terras e vendeu-as por bom preço aos emigrantes. Ainda por cima a troco de moeda forte, que não queriam receber escudos. Mas isto, vendo o mundo em ponto grande ou em ponto pequeno, quem paga as sobras de uns são sempre as faltas dos outros, como é sabido.
Mais tarde veio a agricultura da Europa, e essa acabou com tudo. E esta aldeia, mais que todas, vai morrendo lentamente, sem gente, nem préstimo, nem vida. Até os castanheiros foram desaparecendo, a doença derrotou aí gigantes que podiam contar a nossa história toda.
Já se viu que ao mestre não agrada a barragem, porém toda a moeda tem as caras e as coroas. Ela engoliu as melhores terras, é verdade, e a aldeia perdeu o que lhe deu o ser. Mas os donos não saberiam hoje o que fazer com elas, se ainda as tivessem na mão. As coisas estão de tal maneira que não vale a pena mortificar o corpo. Ao menos receberam as indemnizações, sempre hão-de ter alguma serventia.
Por sobre ser um cidadão atento às coisas da vida, este mestre é um artista. Trazem-lhe carros velhos, tão velhos que já nem existem, e saem-lhe da mão como no dia em que a fábrica os deitou cá para fora. Este, por exemplo, é tão antigo que partes dele são de madeira. Fizeram-no os ingleses e um dia chegou aqui numa lástima, foi um amador que o trouxe da América. Qualquer dia sai daqui como novo.
O viajante, que é desprovido do mais elementar jeito de mãos, observa fascinado estes labores, os cuidados do gesto, os vagares todos duma minúcia lenta. Muitas peças são feitas à mão, já nada disto existe no mercado. Mas este mestre gosta do que faz. É um homem sereno e vive em paz com a vida, apesar da barragem que lhe fizeram à porta. Nem mesmo lhe falta um filho disposto a aprender estas artes mecânicas e a dar continuidade à ciência do pai. Se não tivesse à espera o resto da jornada, quem ficava aqui até à noite era este viajante. Não é todos os dias que assim se vai ao deserto encontrar um oásis.
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