quarta-feira, 16 de setembro de 2009

Portugalmente (57)

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Segue por montes e vales, por aldeias que não vêm no mapa, avista a outra face do Almansor com quem já fez amizades, cruza pontões de ribeiras ao fundo de encostas que o fogo descarnou, chega finalmente ao Carapito de que alguma vez falou e onde nunca pensou ir, deixou para trás um Mosteiro sem ver mosteiro nenhum, passou por quintas perdidas onde já ninguém habita, conheceu Sobral Pichorro, conheceu Forno Telheiro, e voltou ao mundo dos vivos quando parou nas cancelas duma passagem de nível, ao lado duma estação de comboios.
O viajante está perto de Celorico. E logo depois da ponte que atravessa o rio Mondego, dá de caras com um Centro de Investigação Gastronómica. Em bom rigor desconhece do que trata a descoberta, com tão apurado nome. Mas tinha-se esquecido do almoço e resolve tomar parte nas investigações. É dupla sorte a sua. Porque na margem bucólica do rio, entre salgueiros e freixos verdejantes, o que descobre é um restaurante aprimorado, e um comensal solitário. Matou a fome, o viajante, com sabores muito antigos. E com breves diligências ouviu do companheiro de repasto muito mais do que esperava saber. O restaurante é obra da câmara, e salvou da ruína um velho lagar de azeite abandonado. O trabalho é mais-que-perfeito, ninguém lhe discutirá o resultado. O pior é o que fica por dizer.
Se por junto povoarem o concelho uns oito mil habitantes já é muito. Os funcionários da câmara são trezentos e cinquenta. O orçamento anual rondará oito milhões. As dívidas acumuladas somam vinte e tal milhões. A cinco milhões vão as obrigações de curto prazo.
Com tantos milhões a zumbir-lhe nos ouvidos, o viajante lembra histórias já passadas. Gostava de conhecer o partido da câmara, mas o conversador iludiu a pergunta. Houve mudanças de partido, nas passadas eleições. E o presidente novo, ao entrar no gabinete, encontrou um ecrã cego no computador, e logo ao lado uma arma, um carregador de balas, e uma folha de papel em branco, para as últimas vontades. A primeira notícia que o telefone lhe trouxe vinha da companhia de electricidade. Ameaçava cortar os fornecimentos, por falta contumaz de pagamento.
O viajante dá consigo a imaginar enredos duvidosos, mas o filme ainda agora começou. Há uns anos fez a câmara uma escola profissional que nunca teve cursos nem alunos, hoje ninguém sabe ao certo a quem pertence. A empresa municipal tem a seu cargo esta cozinha de investigação, e um museu do queijo e do agricultor, e um centro de coordenação dos transportes, seja lá isso o que for, e um centro cultural com biblioteca e Internet, e um posto de turismo, e uma esplanada num jardim. O complexo das piscinas, apetrechado com sauna e banhos turcos, está encerrado há anos por não haver dinheiro para o manter. E o solar do queijo da serra, aí num palacete que vale a pena ver, já teve uma loja no Chiado lisboeta para levar ao mercado as produções locais. Esse tanto não pôde o viajante comprovar.
A realidade já ultrapassou a mais fértil fantasia. Mas o confidente junta ao rol de extravagâncias um hotel de cinco estrelas, que foi criado à custa do orçamento e se mantém encerrado. O viajante não quer acreditar. Paga a conta e vai à procura do hotel, não sabe o que há-de fazer da sua incredulidade. Passa por quatro rotundas, uma delas duplicada, e depois de muito mourejar vem a achar-se em frente do solar Corte-Real, e do irmão Brandão de Melo, na aldeia-fortaleza de Linhares. O bufão tinha razão. Os dois solares são agora a luxuosa pousada de Santa Eufêmia, fechada por enquanto aos turistas que hão-de vir, porque não houve dinheiro para lhe comprar a mobília. Querendo Deus, lá chegaremos um dia, confessa a hospedeira do turismo. E este viajante, incréu de milagres caprichosos, ouviu-lhe o desabafo piedoso e bateu em retirada.
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