quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Portugalmente (75)

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Camilo é escrivão num tribunal do Porto, passa agora umas férias em Almendra, que é a sua terra e fica perto. E seria uma vergonha não ter visto ainda os cavalinhos, se em casa de ferreiro os espetos de pau não fossem de uso corrente, conforme diz o ditado. Decidiu-se hoje, espera a sua vez juntamente com uns franceses. E trouxe ao viajante a sorte grande, conforme adiante se verá.
O fim do dia vem perto. Mas este condutor que acaba de chegar não está aqui para outra coisa senão servir os clientes e ganhar o seu salário. Nem que fosse ao lusco-fusco haveria cavalinhos. E os visitantes metem os pés ao caminho, salvo seja.
A quinta da Ervamoira, que além na encosta fronteira se derrama sobre o rio, é um presépio natural que o espelho da barragem haveria de inundar. O guia confidencia que houve tranquibérnias várias, terraços improvisados, plantações de última hora e compromissos bancários, para engordar as indemnizações. Com a suspensão das obras a expropriação não veio, aos bancos não lhes agrada esperar, e a quinta acabou nas mãos dum vinhateiro francês. Mas o vinho não perdeu qualidades nem fama, e seria a maior perda se a barragem se fizesse.
Na praia da Penascosa encontram os visitantes três fragas iluminadas, três telas de arte rupestre. Já forçaram os fatigados olhos a deslindar os auroques filiformes, entrelaçados com cabras montesas, veados picotados e cavalinhos de crinas ao vento. Outra vez voltam a ver, ou a tentar, e a ouvir num francês estropiado que as gravuras têm pelo menos 18.400 anos, datados pelo carbono 14. Não sabem se estas figuras demarcavam territórios, se eram rituais propiciatórios de nómadas caçadores, ou se tinham função mais transcendente. Olham em volta a rudeza da paisagem que se abandona ao crepúsculo, e as ovelhas que recolhem, a tasquinhar pela margem, quem sabe se a recordarem os primos antepassados. O silêncio em que regressam é o da melancolia. Já o destes visitantes denota constrangimento, para não dizer alguma decepção. É Camilo quem o rompe.
Que nada vai subtrair à importância das gravuras. Serão elas capital para uma nata de académicos, uma elite de arqueólogos, um escol de especialistas. Mais do que isso não despertam emoções nem provocam romarias, e os números aí estão para o ilustrar. O significado próprio dos cavalinhos não tem correspondência visual, pouco diz a espíritos iletrados, nunca será espectáculo que atraia multidões. Por isso quem prometeu eldorados turísticos com a suspensão da barragem foi vendedor de ilusões. E o museu que andaram a construir é outra peça da mesma encenação. Um dia, festivamente, alguém há-de vir inaugurá-lo. E depois desse breve sobressalto, de romaria de verão, cumprirá o papel dos elefantes brancos, que tem largas tradições na nossa terra.
O viajante sustenta que uma barragem é sempre um compromisso, entre o que se perde nela e tudo quanto se ganha na sua construção. Veja-se o caso do Tua, uma linha de montanha das mais belas da Europa, que a empresa logo exigiu em troca dos cavalinhos. O património e a história que nela vão enterrar é de valor incalculável, sem qualquer forma de mitigar as perdas.
Chegou ainda a falar-se em deslocar as gravuras, e noutras soluções de remissão. Mas logo uns eruditos gritaram heresia, que os cavalinhos ficavam sem contexto, privados de chão terreno. Era a história que perdia o pé, e lá pararam as obras. Mal convencido por semelhante argumento, o viajante não sabe em que ficar.
Agora há quem se agarre ao pequeno negócio, há quem defenda o precário trabalho, há quem tenha receios do clima e dos míldios de Junho. A empresa das barragens procurou outros lugares, onde provocará danos maiores. E aos mestres da ciência arqueológica servem os cavalinhos do Côa de muletas de carreira e modos de afirmação. Josué tinha razão, a suspensão da barragem foi um erro clamoroso. E mais razão tinha um sábio que já houve, ao lembrar que a solução dum problema qualquer nunca pode ser achada nas mãos de quem o criou.
O farpão é de Camilo, que já não conheceu o padre Júlio, velho conterrâneo seu de quem estaremos lembrados. Nem sabe das histórias de Ramón vermelho, que ficaram lá para trás. Mas picou-lhe logo a pulga na orelha, quando vieram à baila.
Ou ele é verdade que há horas de sorte, como já se ouviu dizer, ou simples fortuna deste viajante. Ganha um jantar em Almendra, em troca de explicar ao companheiro como foi que o padre Júlio se tornou o pai dos pobres. E ganha um anfitrião, que amanhã lhe há-de mostrar este reino de colinas encantadas.
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