Invenção não é, porém, este bando de presos comuns que agora mesmo escancarou as grades da ala norte da prisão,blina e vem abrindo cela a cela a estes encarcerados. Têm nas unhas as chaves do armeiro e deixaram já livre o caminho até ao pátio interior, ecoam por estes muros difusos gritos das famílias que lá fora se anunciaram, enquanto vão retumbando os estampidos das armas automáticas, não há janelas para ver o que acontece mas cada um de nós o adivinha, e aos poucos nos vamos encontrando no corredor, ainda desconfiados deste livramento que por tão ínvios caminhos nos chega, ainda suspeitosos, perguntando a quem no-las oferece, de que nos servem as chaves que armas devem cerrar e não abrir, quando um velho, de autorizado aspecto, se dá conta da cilada que ali está sendo urdida, se nos apanham lá fora, pior de armas na mão, somos todos ceifados, recolher à cela, camaradas, recolher à cela.
Quem se vai recolher, mas não à cela, é Gaspar, mais a restante embaixada. Assim sem darmos conta chegámos a Palência, onde tínhamos parada prometida, as horas são já mortas, maneira de dizer que a cidade está dormindo. Cruzou a pequena viatura por essas ruas, a esta hora livres de constrangimentos de trânsito, como se buscasse pelo faro esta praceta onde nos apeámos. Ninguém disse palavra, muito natural em se tratando de escolher pousada em terra estranha, concluamos não ser hoje a primeira vez que este carro aqui vem parar, ali está o hostal chocolate esperando por nós há uma vida, um pequeno letreiro verde a piscar na algidez da neblina.
Um recepcionista ensonado entregou as chaves aos hóspedes que em silêncio vão já subindo a escada circular, tudo decorre sem hesitações, como se tudo estivesse previsto, e Gaspar vai correndo os dedos no macio corrimão enquanto sobe ao primeiro andar, nunca a palavra se ajustou assim fisicamente ao gesto, como esta mão aflorando a madeira, se a causa não for o peso da minúscula mala, sê-lo-á o cansaço da noite, que é já longa. Cada um fechou a porta atrás de si, e terá sido o peso das pálpebras a impedir-nos de atentar no jovem par que já desapareceu, se afinal é um casal a sério, se dormirão juntos os dois, esta era a oportunidade de o saber, que assim desperdiçámos.
Gaspar relanceou a vista ao ambiente, como que faz um reconhecimento, notou o vasto espelho sobre o toucador a devolver-lhe uma sugestão nua de frio, ninguém estranhará as prevenções dos olhos que assim buscam na paisagem adversa as cores preferidas, e o olfacto os aromas, afinal é este o refúgio em que vamos baixar a guarda e nos renderemos ao descanso. Não são estes por demais singulares, nem aromas nem cores, o cansaço fez o resto, ao enrolar-se nos lençóis parecia que Gaspar se enrolava no sono. E ainda bem, porque Gaspar não deseja pensar. Viu partir do cais esta nau em que tomou lugar, vem assitindo do convés ao soltar lento das amarras, abre-se-lhe em frente um grande mar que desconhece, e não pode adivinhar os caprichos da rota que o espera. Foi-lhe dito que a ausência será longa e imprevisível o evoluir das coisas, bem poderá contar com dez anos lá fora, melhor será refazer a vida de raiz nalgum porto de abrigo, o mundo é grande.