Mas a cara gelada deste espelho é que não tinha só o frio para lhe devolver. Diz-se que, em sonhando, se estende a lógica dos sonhos, mesmo de pesadelos não passando. Não é assim com Gaspar, ao menos neste caso, que, entre visões e espectros, o que está vendo ao espelho é a sua própria imagem devolvida. O retrato é quase de corpo inteiro e revela-nos um ventre transparente, onde o celofane tomou o lugar da pele opaca, como nos manequins das aulas de anatomia. Vêem-se claras as circunvoluçõesdas tripas ensanguentadas, o volume dos órgãos íntimos, estranho é não lhe causar isto repugnância, e se não for por se tratar dum sonho, será porque deste interior todos nós somos feitos. A cabeça tem de lado uma parede refeita, diremos restaurada, uma das têmporas é de baquelite castanha, entalhada no crânio. E assenta sobre um pescoço desproporcionado, exageradamente fino e alongado, a prolongar uma coluna também reconstruída, descarnada a espaços, as vértebras cervicais são polidas e brilhantes, apetece aflorar-lhes um dedo, parecem talhadas em chifre cinzento.
Gaspar deixa as mãos descer ao longo do corpo e não encontra as coxas, não encontra as pernas, se quiser mover-se não consegue mais do que arrastar-se sobre os braços, a si próprio faz lembrar a cena dum filme em que os soldados tinham vindo da guerra e estavam pendurados num tecto de hospital, suspensos duma rede como vasos de flores, como presuntos na cura, mergulhados em penumbra e silêncio.
A respiração ofegante e descompassada vai traindo a aflição que se apodera dele, e agora falamos deste real Gaspar que dorme, sai-lhe às vezes do peito um grito abafado, um roncor se diria, benesse caridosa era acordá-lo, já noutras ocasiões em que isto mesmo aconteceu o teríamos feito, assim pudéssemos nós usurpar poder e competências, ademais nos faltando, para tão bicudos casos, um patrono encartado de quem lançar mão, ele há um para a fome, outro para a peste, algum para a guerra, se não todos num só, aqui não édela que se trata, porém antes dos estragos que deixou.
São coisa já antiga, estas assombrações que assim chegam sem marcar visita, vêm do tempo em que Gaspar andou pelos sertões de Angola, chamado a defender a pátria. Havia nas vazias amplidões do Congo alguma coisa de fascinante e hipnótico, com elefantes solitários a passear o tédio por chanas sem limite, com vastos bandos de pernaltas brancas que lavavam todo o dia os pés nos charcos, e anafados crocodilos de pedra tomando eternamente o sol nas margens das lagoas. Um homem sentia-se minúsculo, esmagado por tamanha grandeza. E se era da vastidão sem fim dos horizontes que o feitiço provinha, se da aterradora força das florestas, ou das serras majestosas donderios se despenhavam, Gaspar não chegou a sabê-lo ao certo. A vida decorria num limbo de inconsciência e voluntarismo perigoso, como num jogo de roleta russa, e as energias da juventude aprisionada assim nos limites do arame farpado fervilhavam em circuito fechado, sem objectivos nem sentido claro. Os mais velhos refugiavam-se na família que traziam atrás, ancorados no cais de miúdos e privados interesses, alguns almejavam cruzes de guerra para enfeitar a carreira. Os outros faziam por sobreviver, morriam às vezes em acidentes vãos e desatinados, poucos se davam ao incómodo de formular perguntas a que ninguém queria responder. O mais importante era queimar o tempo, era queimar as forças, era queimar infindáveis horas de voo numa ilusão de utilidade, enquanto os dias tombavam um a um, como folhas de outono, riscados num calendário. (Cont.)