quinta-feira, 3 de outubro de 2024

As Aves 3-3

Assim perderá ele o espectáculo desta récua de prisioneiros que chegou à invicta cidade do Porto, algum deles viajou acorrentado aos ferros da aeronave, para que nem um grão se perdesse da requerida segurança, e durante dois dias nenhum deles comerá pão de vida, e antes disso, horas a fio, vão ficar aqui na aerogare, algemados de mãos e esperando transporte seguro, viremos a saber para onde, aqui serão alvo da caçoada pública e receberão nas caras roxas de frio as chufas e motejos da populaça em fúria, ela sim esquentada ao rubro pela retórica santificada de algum distinto clero, não faltam por aí activíssimas sotainas rasas, arciprestes e cónegos, fossem ele os tempos de el-rei D. Manuel, e estando nós no largo de S. Domingos em Lisboa, tudo acabaria no queimadoiro, ateêmo-lo já que o Santo Ofício está aí não tarda, com dobrada razão se diria, aqui também, remédio santo.

E perderá também as emoções da fuzilaria que há-de haver, não demora, no descampado fronteiro a esta prisão, onde cento e vinte militares encarcerados dividem espaços com os presos comuns. Numa tarde hão-de chegar as famílias, não sabemos se em visita ou manifestação, quiçá por ambas, diz-se que em breve todos estes virão a ser levados a uma prisão, nas serras da Beira, oxalá venham a aproveitar a oportunidade que assim lhes é ofertada de ver o mundo a partir destas altas cotas, numa excelente perspectiva global com que todos terão muito a aprender e alguma coisa a corrigir, o pior é o gelo, o pior é o isolamento, o pior é o que se vai ouvindo e se teme, as falanges de um general de olho de vidro que foi, no tempo próprio, visitar o cerco de Estalingrado e por lá afinou estratégias, operam a partir de Espanha e têm já prevista a emboscada no caminho, tão fácil de fazer naquelas serranias, é isso que nós queremos evitar.

Já saiu a cavalo uma patrulha a conter esta multidão de clamadores, sobretudo aqui divisamos crianças e mulheres gritando, se os homens estão lá dentro, e o quê só o coração delas o dita, um cavalo espantou-se, a história da cavalaria está cheia destes eqídeos poltrões, se não fracos dos quartos, porém nem sempre um graduado, de sabre em riste, desaba assim de costados no chão, como agora pudemos ver. Já relincham cavalos de crinas ao vento, de puro contentamento por se verem assim livres de tão descomedida carga, já um pelotão de guardas infantes atravessa o portão e assenta joelhos em terra, a lavar esta afronta, já se ouvem pelo ar detonações das armas, se não também estridentes farpões e setas várias que pelo ar espesso voam. Dois mortos não se erguerão mais deste chão, e uma criança levará para casa uma bala no corpo, como poderia ela turvar a água a esta béstia, o mais seguro é que, não sendo sua a culpa, tenha sido do pai, quites ficamos, para tanto se inventaram as fábulas, (Cont.)