domingo, 20 de outubro de 2024

As Aves 3-6

O terror insano que alastrara no Congo, nos primeiros anos da guerra, foi maré tempestuosa que a exaustão do tempo apaziguara. As primeiras companhias de soldados saíam dos porões dos navios ao som do Angola é nossa, e eram recebidas por multidões de colonos tomados por um misto de pânico e delírio, acreditando uns que a vingança seria arrasadora e terminal, e outros que a pacificação estava ao alcance duns breves tiros de morteiro. De resto, a maioria da tropa era da mesma estirpe do colono africanista. Vinha das mesmas aldeias onde nada mudara há séculos, a abarrotar de gente que não tinha dois palmos de terra onde plantar uma couve e cair morta, das mesmas aldeias onde a vida era rudíssima, e onde o único futuro era a bem-aventurança mítica dos cartazes de propaganda da Lição de Salazar, a abarrotar de gente que já não sabia fazer outra coisa senão tirar o chapéu à casta de figurões que a bem da nação tinha o país por conta, para suprir as faltas do povo sempre hão-de bastar os carregamentos da caritas da América, que isto é gente de boa e desenfastiada boca, do queijo de plástico e do leite em pó das fábricas da América, distribuídos por um abade qualquer, louvado seja Deus que tão equilibrado e aprazível fez o mundo. Era gente que andara a fugir da miséria a vida toda, por onde mundo houvesse, pelos subúrbios da Europa ultimamente, por Índias e Brasis desde há séculos, pelas Áfricas quando lho permitiram, um dia desembarcou numa baía dos trópicos esta gente a quem disseram, tudo quanto a vista alcança é Portugal.

Ninguém entende bem como isso possa ser. Mas depressa todos se dão conta de que basta a cor da pele para definir uma condição no mundo, afinal sempre valeram a pena as canseiras do Vasco da Gama. Passámos a vida toda numa servidão insuperável, a desbarretar-nos à passagem de condes e doutores, e finalmente aqui nos deparamos com criaturas mais vilipendiadas do que nós, ainda mais oprimidas do que nós, muito mais desprezadas do que nós. Esquecer depressa o sofrimento antigo, enterrar fundo a humilhação dura do passado, é exercício vital se queremos assumir um papel no mundo. Pomos por isso uns óculos escuros no nariz e aprendemos a beber whisky com gelo, armados duma pasta cheia de ar e vento mas carregada de significados, enquanto vamos estalando na calça um cavalo marinho que nos há-de compor a figura e realçar o ar de mando. Roubamos na compra, na venda enganamos, são quentes as pretas e de fadário submisso, o administrador é mais que todos cúmplice e venal, o resto, que é muito, não é nada que um bom sipaio não faça com gosto, é só dar-lhe mão livre. E eis que do mais mesquinho súbdito tirámos um patrão, não foi para outra coisa que os impérios se fizeram. (Cont.)