quarta-feira, 1 de junho de 2016

Embondeiros

Em 1968 passei a tarde na Feira do Livro ao fundo da avenida, à espera dum avião que me levou cinco dias até chegar a Luanda. A pátria precisava lá de mim, que me queria baptizar a ferro e fogo numa antiga sé do Congo. Pelos vistos não tinha pressa! E eu comprei o Miguel Angel Astúrias das Lendas da Guatemala e a Terra de Neve do Yasunari Kawabata, que me acompanharam na aventura.
Nesse tempo havia literaturas que desciam à avenida nas tardes de sol. Hoje marcam rendez-vous com os leitores nos jardins do parque, lá ao cimo. E eu passo outra vez a tarde na Feira, sentado na banca duma editora que me pediu a presença. Entretanto leio a Carta de Achamento do Pero Vaz de Caminha, a anunciar a um rei que era Venturoso as novas que tinha achado. Eu já ouvira falar muito da Carta a uns académicos do discurso épico, sobre a importância que tinha. Mas nunca a tinha lido como agora, assim de cabo a rabo, que a comprei na banca ali ao lado.
Acabo a rir-me dos pobres académicos que se alimentam de mitos. A Carta só diz ao rei que os índios se mostram nus, e exibem vergonhas invejáveis sem terem vergonha delas. Que são crédulos e pacíficos, e têm casas de palha, e desconhecem os gados, e comem muitos inhames que os alimentam redondos e bonitos. Que não escondem segundas intenções, bem ao contrário dos súbditos de sua majestade. E se manifestam prontos a aceitar a fé cristã, tão depressa o rei lhes mande as cruzes suficientes para os trazer ao redil e às luzes da salvação. E não diz mais novidades do que isso.
Eu converso meia hora com um leitor, que me leu e gostou muito. Sem vaidadezinhas eu fico orgulhoso mas não lho confesso, porque respeito o autor e o leitor. E vou dar uma volta pela Feira, lá onde estão jacarandás em flor que o Vaz de Caminha trouxe, e são da cor da paixão.
Pela Feira há matas de embondeiros, transformados em pasta de papel. E os leitores passam plácidos, à sombra deles, porque agora são consumidores. Lêem pouco mas têm à discrição páginas e páginas ilustradas de bonecos, para recrearem a vista. Literatura a sério vê-se pouca, deixou de vir à avenida apanhar sol. E os embondeiros fariam mais falta nas paisagens do mundo do que nos escaparates das editoras de agora. Sacrificados aos tempos, para não dizer imolados ao mercado.
A tarde chega ao fim e eu vou à vida, a namorar frases e as palavras delas, e o mistério musical que levam dentro.