quarta-feira, 29 de junho de 2016

Livros

Se um autor escrever uma novela, e a editar em livro que o leitor leva para casa e lê, seguindo uma diegese em que o próprio livro se tornou protagonista da trama narrativa, o resultado é insólito e só pode ser surpreendente... 
A certa altura diz o protagonista:
« (...) Era natural que nos quisessem dar um nome, chamar-nos qualquer coisa, porque eles [os homens] chegaram primeiro. Mas acha que foi por acidente que escolheram uma palavra que, em muitas das suas línguas, é do género feminino? Um livro é, para um grande número de seres humanos, uma ela. Assim, o nosso lugar no grande esquema das coisas ficou definido desde o início no seu mundo dominado pelos homens. Na sua sociedade, éramos equivalentes às mulheres - uma posição, como é bem sabido, não muito invejável.
O nosso primeiro dever era dar-lhes prazer. (Está certo, iluminar também: mas o iluminismo é apenas uma das formas que o prazer assume, ainda que não particularmente um prazer popular.) Em primeiro lugar, prazer masculino, claro,  já que o vício de ler foi, durante muito tempo, privilégio dos homens. Mais tarde, também algumas mulheres a ele sucumbiram, mas, no fundo, nada mudou, a situação tornou-se apenas mais perversa. Ninguém, claro, nos perguntou alguma vez se queríamos seguir por este caminho, se nos dava prazer. Longe disso! Tínhamos simplesmente de ser atraentes, obsequiosos, e estar disponíveis sempre que algum homem tivesse vontade de se divertir um pouco connosco.
Iniciavam a relação a qualquer momento, em qualquer lado - quanto mais público fosse o espaço melhor, de modo que satisfizessem o seu exibicionismo. (...)»
Muito mais tarde, sobre o nascimento dum livro:
«(...) Com os editores [a mãe] acontece mais ou menos o mesmo. Aqui, o papel do macho insaciável é preenchido pelos autores. Quem mais? E de que serve dizer-lhes que existem já demasiados livros no mundo, que está tudo cheio, as bibliotecas e as livrarias estão a deitar por fora, as prateleiras terrivelmente congestionadas, os armazéns e depósitos arqueados como malas demasiado apinhadas, que está tudo prestes a atingir o ponto de ruptura? O comedimento é desconhecido, há muito que não existe qualquer sentido de proporção natural. São absolutamente surdos à voz da razão. 
É certo que os impulsos instintivos são inatos, é compreensível, mas nos tempos que correm estão disponíveis contraceptivos. Deixai que os leitores escrevam tudo o que querem, se isso os deixa felizes, ninguém lhes leva a mal, mas que usem preservativos; nem toda a escrita tem de conduzir ao nascimento dum livro. Mas não, o mero prazer não é suficiente para estes tipos, não é a realidade. O prazer de nada vale, se o fruto da sua masculinidade não for exibido aos olhos de todos. Tem de ser um livro. Sem um livro, sentem que não alcançaram nada. (...)»
[Dois excertos de O Livro, Zoran Zivkovic, Ed. Cavalo de Ferro, Maio 2016, Lx]
O autor tem uma grande imaginação, muita criatividade, às vezes fantasia. Tem um discurso narrativo poderoso e substantivo, dispõe de recursos invejáveis para o ofício. 
Só que... a novela que prometeu ao leitor não está neste livrinho; o que lá está são conceitos, são ironias, são conselhos, ao menos implícitos, sempre pertinentes. 
É por isso que o livrinho é um equívoco. Podia ser um ensaio, surpreendente embora. Mas Literatura, com as malas-artes dela, é que não é.