[Toto, 17 de Maio de 1969]
«(...) Vinha Gaspar descendo a avenida João XXI, para o Campo Pequeno, à procura duma pensão, era ainda um menino dentro da sua farda de aviador. Trazia nos olhos aflitos o fascínio das paisagens de Angola, e as saudades dos amigos que tinha visto morrer, e as imagens absurdas que lhe povoavam os pesadelos e o aterravam, depois daquele encontro assim de cara aberta com a morte, num desastre aparatoso. Tinham-no mandado, ainda menino defender a pátria. E ele acreditava que havia pátria, e que esta era uma e a mesma grande mãe de todos, e que devia defender-se, lá onde fosse preciso. E foi, e lá pôs a sua força generosa nas mãos dos que mandavam na pátria, e agora estava ali, regressado à retaguarda para recuperação no hospital, como se retaguarda houvesse, e trazia a alma cheia de rasgões e de medos, a precisar dum bálsamo, a precisar duma atenção da pátria, a precisar dum seu gesto suave no cabelo, como fazem as mães. E ao descer a avenida João XXI, desamparado que nem um cão à chuva, à procura duma pensão, de Gaspar falamos, pois claro, teve a revelação dolorosa da inutilidade de tudo. Poisou no chão o pequeno saco de viagem e encostou-se a uma ombreira alta. A multidão passava, era Setembro, e havia formas bonitas de mulheres expostas nos trajes exíguos, e havia um desdém ocupado nos homens que passavam engravatados, aos pares, com largos gestos de mão, a discutir importantíssimos interesses, e havia indiferença nos olhares que às vezes desciam até ele, sentado assim sem forças no degrau de pedra dum patamar, se dentre eles algum era olhar de poeta chegava-lhe embrulhado num cetim de fastio, ou numa grande tristeza, como se fosse um lamento, e havia um desprezo altivo nos lábios vermelhos das matronas que lá iam, agitando braceletes douradas. Havia olhos tristes e risadas escancaradas, a vida passava ao seu lado, como um rio, indiferente ao seu naufrágio interior, cega e surda à hecatombe da juventude que apodrecia lentamente nos planaltos africanos, que endoidecia lentamente nos planaltos africanos, afinal é mentira tudo quanto diz a propaganda oficial. e eu prefiro rosas, meu amor, à Pátria, afinal esta pátria é uma madrasta galdéria que tem vergonha do abcesso africano, que prefere desconhecer o abcesso africano, que esquece, para não sentir, a dor que todos os abcessos provocam. Gaspar confundiu aqui os alhos com os bugalhos, o seu desespero interior não lhe deixou ver mais um cão à chuva em cada transeunte, quando é disso que em verdade se trata, perdoemos-lhe nós a metonímia aflita, estamos apesar de tudo mais folgados, nós fazemos pela vidinha em cada dia, ele não pode. Talvez Gaspar sinta apenas inveja de não poder, isso não é muito claro, mas a verdade é que meteu dó a si próprio, tinham-no atraído assim com falas patrióticas para o violarem atrás do capim, atrás de todas as roças de café que existiam no planalto, atrás de todas as cantinas do mato que trocavam milho e feijão por reles chitas coloridas, atrás das mesas de todos os bares nocturnos da ilha de Luanda, onde inglesas de Moscavide cavalgavam um estropiado can-can, antes de se meterem às estradas de Malange e Salvador do Congo, tinham-no atraído para o violarem atrás da pesporrência vil de todos os colonos que cheiravam a suor e pediam armas, que desprezavam a tropa e exigiam armas para massacrar os pretos todos e resolver a guerra num ai, tinham-no violado atrás do palanque azul do 10 de Junho, à beira do Tejo que marulhava indiferente a tudo, à beira de viúvas também elas violadas pela cicatriz gelada das cruzes de guerra póstumas ao peito.
O exército é o espelho da nação, e isto era o que se lia nos panfletos colados a esmo nas ruas da cidade, virava-se uma esquina e logo tropeçavam os olhos naqueles rectângulos de cor envergonhada e baça, não tão baixos que pudesse mão herética meter-lhes a unha e silenciá-los, nem tão altos que risco houvesse de perder-se na atmosfera da tarde a jaculatória patriótrica, o exército português é tão bom como os melhores. Muito melhor que os melhores, diremos nós para que a verdade se saiba, pois convém a César dar o que de César é, e para o provar vamos ali à foz do Massanza, um destacamento avançado onde um pelotão de atiradores vai defendendo a soberania, do outro lado do rio alastra na paisagem , entre arames farpados, uma sanzala de realojados, que estendem ao sol as misérias da lepra. Um dia os rústicos soldados saíram dos abrigos e deram-se a construir uma pista de aterragem, tinham-lhes prometido uma avioneta que poisaria ali uma vez por quinzena, não há nada melhor para romper o isolamento, para resistir à loucura ou receber o correio que houver, sempre se tem a ilusão duma ligação ao mundo. À custa de tempo e de suor aplainaram à mão esta faixa com dez metros de largo, esquartejaram umas dúzias de mangueiras bravas que arrastaram para as bermas, a pista começava logo à beira do rio e alongava-se até tropeçar ao fundo na colina, o resto do milagre haviam de fazê-lo os aviadores. E um deles o terá feito, uma vez sem exemplo, aterrou um dia a passarola mas só saiu daqui deixando atrás a carga toda e metade da gasolina, que a pista foi celebrada com cerveja mas não ia além de sessenta metros mal medidos, tudo quanto podemos fazer é passar em voo rasante e largar os sacos de biscoitos e massa, é largar as latas da marmelada e do atum, é largar os sacos do chouriço e da carne, se a houver. E foi a partir daí que toda a canzoada da sanzala passou a regular a vida por um estranho calendário, mal se ouve ao longe o roncar dum avião e logo os bichos se põem a atravessar o rio, espadanando na água as patas frenéticas. Cada um escolhe o seu terreno ao longo da pista, e é vê-los a disputar aos irados soldados os restos dalgum saco rebentado, lá vai este a fugir para o mato com um par de chouriços nos dentes, aquele abocanhou um pão, a princípio ainda se ouviam tiros e rajadas a afugentar os bichos, agora já nem isso, toda a gente afinal concluiu que a vida custa a todos, que todos ficam parecidos no retrato, o exército português é melhor do que os melhores.
Dizia isto a pátria, enquanto empilhava nos anexos do hospital militar os destroços dos mutilados, Gaspar tinha-os visto passar de relance em cadeiras de rodas, amamentados por enfermeiros discretos, o olhar vazio confinado a corredores sombrios que apenas pesadelos habitavam, dizia isto a pátria ao mesmo tempo que escondia atrás de muros altos, para que ninguém os visse, os restos da guerra que o furor de marés longínquas vinha arrojar ali, como troféus perversos. Nessa tarde, ao descer a avenida João XXI a caminho do Campo Pequeno, Gaspar ouviu claramente o que a pátria dizia, olhou para si próprio e sentiu-se um cordeiro imolado.
Mais tarde voltou à África, ao aroma azedo dos bairros negros e aos lamaçais do Corubal, às evacuações de soldados estropiados das pistas de terra do mato, leve-me depressa, meu alferes, não me deixe morrer, meu alferes, ambulância à chegada com médico e sangue, médico e sangue, médico e sangue, voltou aos alertas dia e noite com aviões de museu, despejavam-se bombas em catadupa sobre as bolanhas silenciosas, sobre a paisagem de rios indiferentes, sobre a África inteira, e do chão subiam cogumelos de fumo espesso que eram a raiva das acácias violentadas, que eram a fúria dos embondeiros a desmoronar-se, e ondas de choque faziam ranger as velhas carcaças dos aviões que se retiravam à pressa. Voltou aos alertas dia e noite, para aliviar os quartéis flagelados a toda a hora pela artilharia do inimigo, pelos morteiros do inimigo, pelos foguetões do inimigo, abria-se um buraco na barriga dos velhos dakotas e semeavam-se bombas à mão pela noite africana, lá em baixo acendiam-se fiadas de pequenos fogachos brilhantes, fogos-fátuos de fim do mundo, espécie de rosários sacrílegos, berravam os capitães da tropa ao rádio o seu desespero indefeso, enquanto desencravavam a espingarda automática em subterrâneos lúgubres, cobertos de sacos de areia e troncos de palmeira apodrecidos.
Um dia voltou a Lisboa, já a revolução tinha tomado o freio nos dentes. Percorria a cidade uma euforia que só acontece uma vez na vida, porque não há energia que a viva duas vezes, e inundava praças e avenidas uma grande catarse colectiva... (...)»
[As Aves Levantam Contra o Vento, Jorge Carvalheira, Ed. Quasi, Famalicão 2007]
[Flor à beira dum pântano, no sertão]